Tombamento que blinda centenas de casas contra avanço de prédios em Pinheiros entra na reta final

Reconhecimento divide opiniões na vizinhança e em conselho de patrimônio; órgão diz que há subsídios para análise e que interessados tiveram oportunidade de colaborar

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Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

O tombamento provisório de mais de 600 construções nos distritos de Pinheiros e Jardim Paulista, zona oeste de São Paulo, motivou polêmica ao longo do último ano. Em meio à verticalização do entorno, o reconhecimento como patrimônio cultural foi visto também como uma opção para frear o avanço do mercado imobiliário, com grande interesse na região, o que gerou controvérsias.

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O pedido de preservação compulsória — que restringe eventuais demolições e reformas — dividiu a vizinhança, com mobilizações contrárias e favoráveis nas reuniões do Conpresp, responsável por definir se haverá ou não tombamento definitivo. O órgão municipal de patrimônio diz que ao longo do processo os “interessados tiveram oportunidade de se manifestar” (leia mais abaixo). Agora, o debate está perto do desfecho.

Uma das últimas votações foi nesta segunda-feira, 27, quando o órgão deliberou pela continuidade dos estudos sobre o tombamento da Praça Benedito Calixto (a das feiras de sábado), da Vila Cândida, do antigo Mosteiro de Santa Gema (atual Instituto Goethe), da Igreja do Calvário, da Biblioteca Alceu Amoroso Lima, do Colégio Stella Maris e do Edifício Tabafer (do famoso arquiteto Vilanova Artigas). Outros predinhos e casas de quadras próximos tiveram o tombamento negado e arquivado.

Vila Cândida, em Pinheiros, está entre os tombamentos em análise Foto: Felipe Rau/Estadão

A discussão do tombamento está dividida em 13 subáreas, tratadas separadamente nas reuniões. Do total, ao menos sete passaram por deliberação ao longo de 2024.

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Ainda falta a decisão final sobre algumas centenas de imóveis. Embora a maioria seja de casas e outros imóveis baixos, há também outras construções, algumas conhecidas, como a Paróquia Senhor Bom Jesus dos Passos, o Mercadão de Pinheiros, o edifício da Fundacentro e o Templo Espiritualista de Umbanda São Benedito.

Por ora, a maior parte das decisões negou o tombamento ou indicou a continuidade do reconhecimento provisório (não definitivo). A lista de arquivamentos inclui os conjuntos de casas da Rua Irmão Lucas, das travessas Julio Sevestre e Paulo Padilha, assim como o Edifício Emília (projetado pelo arquiteto romeno Israel Galman, nos anos 1950) e o Edifício João Carlos de Oliveira (do renomado arquiteto Eduardo Kneese de Mello), dentre outros.

Os únicos tombamentos definitivos aprovados foram da Escadaria das Bailarinas — junto a três casinhas do entorno — e da Escadaria Marielle Franco. Além dos casos desta segunda, também foi decidida a continuidade do estudo sobre as “Vilas do Sol”, com tombamento ainda provisório, agora sem os imóveis de uso não residencial e dos proprietários contrários à preservação. O tombamento temporário também foi estendido para uma casa da Rua Fradique Coutinho, nº 297.

Localizada na Rua Cardeal Arcoverde, Igreja do Calvário está em estudo de tombamento em São Paulo Foto: Taba Benedicto/Estadão

Na prática, o tombamento provisório de Pinheiros tem impacto em mais algumas centenas de imóveis, classificados como “envoltórios”. Isto é: podem ter demolições e alterações desde que respeitem restrições delimitadas para novas construções, geralmente de altura e tamanho. Nesses casos, o objetivo costuma ser o de evitar que grandes prédios “escondam” os bens tombados da paisagem.

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Por enquanto, as decisões dificilmente unem todos os conselheiros, a maioria representantes de órgãos municipais. Houve registros de abstenções, votos divergentes e críticas, especialmente com alegações de que faltam estudos mais aprofundados, vindas das votantes do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As duas organizações fizeram cartas abertas apontando problemas. “Permanece bastante genérico”, diz um dos textos.

Em nota, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade (Conpresp) disse ao Estadão que as informações que fundamentaram a abertura do pedido de tombamento “já forneciam elementos para sopesar a sua continuidade da proteção preliminar ou seu arquivamento”. Os interessados, segue o texto, “tiveram oportunidade de se manifestar e muitos colaboraram de forma a subsidiar a tomada de decisão do conselho”.

A reivindicação de parte dos conselheiros é de ter mais subsídios para análise. Não se trata, portanto, de defesa do tombamento generalizado dos imóveis incluídos no estudo, mas de avaliação de que as informações atuais são insuficientes para a decisão.

As grandes dimensões do processo, equipes de tamanho limitado e a fila de mais pedidos em avaliação impactam no desenvolvimento dos estudos. Há casos mais antigos, como o de um conjunto de casas da Vila Mariana (de 2019), que ainda não passaram por deliberação definitiva. Já o de Pinheiros foi aberto no fim de 2023, com a primeira deliberação em maio, sobre a Escadaria das Bailarinas.

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Antigo Mosteiro de Santa Gema (atualmente sede do Instituto Goethe) está em estudo de tombamento  Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Mesmo entre os conselheiros que reivindicam mais estudos, há o entendimento de que fala-se demais de “zoneamento” e pouco de patrimônio nas discussões. As demolições e a verticalização são mencionadas com frequência. O atual mapa de zoneamento de São Paulo está, contudo, suspenso pela Justiça por tempo indeterminado.

A própria legislação urbana tem sido citada como argumento para arquivar os pedidos, visto que incentiva construir edifícios altos para aumentar o número de moradores do entorno de estações de metrô. Até mesmo os altos investimentos públicos em infraestrutura na vizinhança foram mencionados.

A relatoria é do representante do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) — o qual defende que a análise deve ser conjunta entre urbanismo e patrimônio.

A própria abertura do estudo de tombamento cita a transformação intensa da região. O processo foi criado a partir de quatro solicitações de diferentes moradores em busca do reconhecimento e, também, de “blindar” partes de Pinheiros da construção de prédios altos. O total de imóveis incluídos foi ainda maior após levantamentos do DPH entre 2022 e 2023.

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Única casinha ainda voltada para Escadaria das Bailarinas foi tombada, na região da subprefeitura Pinheiros Foto: Taba Benedicto/Estadão

Para parte dos conselheiros, não há características suficientes que justifiquem tombar grande parte das construções listadas. Também é apontado o impacto desse reconhecimento para os proprietários, quase como um ônus, pela responsabilidade de preservar os imóveis e a eventual desvalorização imobiliária.

Isso porque a maior parte do tombamento abrange quadras próximas de estações de metrô e corredores de ônibus, as quais têm incentivos urbanísticos atrativos para a construção de prédios com apartamentos. Com essas características, os locais são classificados como “eixo de transformação” no zoneamento e, consequentemente, são valorizados no mercado.

Como o Estadão mostrou, o entorno da estação Sumaré é um dos três mais transformados pelo Plano Diretor de 2014 e a Lei de Zoneamento de 2016. Em meio a esse boom recente, casas, sobrados e predinhos têm sido demolidos para dar lugar a prédios altos.

Conselho decidiu pelo tombamento definitivo da Escadaria das Bailarinas, entre as Ruas Cardeal Arcoverde e Alves Guimarães Foto: Taba Benedicto/Estadão

Embora o tombamento provisório faça referência à Vila Cerqueira César, com origem no século 19, envolve imóveis de diferentes momentos do século 20, especialmente da segunda metade. A lista inclui casas, sobrados, predinhos, edifícios, construções religiosas, travessas, vilas e equipamentos públicos. Alguns são quase anônimos; outros são mais conhecidos (como o Mercadão de Pinheiros).

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Já os defensores do tombamento destacam que a discussão sobre patrimônio cultural hoje não envolve mais apenas grandes excepcionalidades arquitetônicas, mas também a preservação de desenhos urbanos (vias estreitas e com paralelepípedos, por exemplo), conjuntos de imóveis, tamanho de lotes e outros elementos que registram a “ambiência” de determinado momento. Fala-se na preservação de um “modo de vida” que estaria em extinção em Pinheiros.

Entre posicionamentos contrários ao tombamento, há desde construtoras com projetos para o entorno a pequenos proprietários de imóveis. Parte recorreu a advogados especializados em urbanismo e patrimônio cultural, que trouxeram pareceres de arquitetos para apontar o que seria uma falta de características para a preservação compulsória. Houve relatos de desistências de compra e venda após o tombamento provisório.

Entre os favoráveis, organizações de bairro, como o Pró-Pinheiros, reuniram moradores, proprietários e apoiadores para argumentar pela preservação de diferentes construções. Esses grupos reúnem pessoas de formações variadas, incluindo arquitetos e urbanistas.

O tombamento chama a atenção pela quantidade de imóveis, pouco comum na cidade. Em comparação, um dos principais exemplos de maior número de construções em um mesmo tombamento é o do Bexiga, que contempla cerca 200 imóveis.

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Conselho irá deliberar sobre tombamento da Praça Benedito Calixto, conhecida pela feirinha de sábado Foto: Taba Benedicto/Estadão

O que foi analisado nesta segunda?

Por maioria, o conselho deliberou pela continuidade do processo e do tombamento provisório do atual Instituto Goethe, da Igreja do Calvário, da Praça Benedito Calixto, da Biblioteca de Pinheiros, do Colégio Stella Maris, da Vila Cândida e do Edifício Tabafer. Não há previsão para uma decisão definitiva. Os demais imóveis avaliados nesta subárea tiveram o tombamento arquivado, assim como as “áreas envoltórias”.

A Praça Benedito Calixto é uma das “manchas” tombadas provisoriamente, com deliberação prevista para esta segunda. Por enquanto, precisa manter as características da vegetação atual e a distribuição dos espaços livres. Não há data para uma decisão definitiva.

Entre os vizinhos, também está a atual sede do Instituto Goethe. A instituição alemã ocupa o antigo Mosteiro de Santa Gema, que se mudou do espaço décadas atrás.

Outra construção religiosa incluída é a Igreja do Calvário, que integra a Paróquia São Paulo da Cruz, dos anos 1920, com expansões nas décadas seguintes. Segundo a Arquidiocese de São Paulo, a obra foi projetada pelo engenheiro Padre Armelini, enquanto o altar foi do engenheiro Benedito Calixto.

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Nesse caso, o tombamento em debate prevê preservar as características arquitetônicas internas e externas. Além disso, discute se novas construções no terreno poderão ultrapassar a altura da parte principal da igreja.

Outro destaque é o Edifício Tabafer, de autoria do modernista João Batista Vilanova Artigas, um dos mais importantes arquitetos brasileiros. É um dos poucos projetos para apartamentos assinados por ele — conhecido pelo Estádio do Morumbi, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e o Edifício Louveira, em Higienópolis.

O prédio fica na Rua João Moura, 942, com projeto de 1958 e entrega na década seguinte. Como o Louveira, tem as fachadas da frente e dos fundos sem janelas, com as aberturas voltadas às laterais.

Conselho vai deliberar sobre tombamento da Igreja do Calvário, em Pinheiros Foto: Taba Benedicto/Estadão

O condomínio é favorável ao tombamento, tanto que já havia requerido o reconhecimento antes mesmo da decisão provisória.

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A deliberação também inclui a Vila Cândida. O conjunto de cerca de 25 casas tem entrada por um portal antigo na Rua João Moura, onde está gravado o ano de 1928.

Nesse caso, o tombamento provisório prevê manter o desenho da via interna da vila, assim como o calçamento em pedra portuguesa e do portal de acesso. A associação dos moradores do espaço é favorável ao reconhecimento.

Inicialmente, havia uma sinalização de que o Tabafer e a Vila Cândida pudessem ter o tombamento provisório arquivado. Porém, após a apresentação de representantes de ambos durante a reunião e a demonstração da anuência dos moradores e proprietários, optou-se pela continuidade do processo.

A lista da reunião desta segunda ainda incluiu quatro predinhos, o conjunto de sobrados da Rua Francisco Leitão, uma casa na Rua Lisboa transformada em um pequeno hotel, o Edifício Santo Antônio e um conjunto de casas geminadas na João Moura.

Portão de entrada Vila Cândida, junto à Rua João Moura Foto: Felipe Rau/Estadão - 31/07/2023

O que já foi tombado?

O primeiro tombamento definitivo foi a Escadaria das Bailarinas, que liga as ruas Cardeal Arcoverde e Alves Guimarães. É conhecida por esse nome por causa de intervenção artística feita em 2018 pelo artista Kobra. A proteção engloba as características arquitetônicas, como a distribuição dos lances, patamares e canteiros, além da vegetação de porte arbóreo.

Até poucos anos atrás, havia casinhas com entrada voltada para o escadão, que funciona também como praça. A demolição desses imóveis está entre os fatores que motivaram o estudo de tombamento, que reconheceu a única casa remanescente. Empreendimentos imobiliários de maior porte estão em desenvolvimento para o restante da área, mas deverão seguir restrições como “área envoltória”.

A decisão também determinou o tombamento de duas casinhas próximas ao acesso da escadaria. Outros 18 imóveis da Cardeal Arcoverde e da Alves Guimarães foram excluídos da área envoltória definida no tombamento provisório.

A resolução de tombamento diz que o conjunto da Escadaria da Alves Guimarães revela “processos históricos de ocupação desse acidentado trecho do bairro”. Também aponta que a necessidade de se preservar um trecho “urbanisticamente qualificado”. Na reunião, também foi destacado o valor afetivo para a comunidade.

Escadaria das Bailarinas é um dos poucos tombamentos definitivamente aprovados no processo da Vila Cerqueira César Foto: Taba Benedicto/Estadão

O outro tombamento definitivo é da Escadaria Marielle Franco, conhecida pela intervenção artística que homenageia a vereadora assassinada. Dos anos 1950, o espaço fica a uma quadra da Escadaria das Bailarinas, ligando a Cardeal Arcoverde com a Rua Cristiano Viana.

O escadão deverá manter as características arquitetônicas, como lances e patamares, e as luminárias ornamentais, semelhantes às vistas em partes do centro e na Escadaria do Bexiga. Os demais imóveis indicados tiveram o reconhecimento arquivado.

No tombamento, também foram destacadas as intervenções de arte urbana incorporadas ao escadão.

E o que mais teve o tombamento arquivado?

A maior parte dos imóveis já analisados teve o tombamento arquivado. Algumas dessas construções já não existem mais, como nas proximidades da esquina da Rua dos Pinheiros com a Cunha Gago, em que casinhas e predinhos foram demolidos e seus terrenos formam o lote de um novo empreendimento imobiliário.

Em setembro, o conselho mandou arquivar o estudo de tombamento que envolvia cerca de 60 casas e predinhos nas ruas Silvio Sacramento e Arruda Alvim, por exemplo.

Em dezembro, ao todo, cerca de 350 construções tiveram o tombamento provisório e o registro de área envoltória arquivados. Isso inclui endereços em ruas como Mourato Coelho, Cristiano Viana, Artur de Azevedo, Capitão Prudente, dos Pinheiros, Deputado Lacerda Franco, Irmão Lucas, Francisco Iasi e Simão Álvares, além da Vila Santa Adelaide.