Décadas de arruinamento deixaram praticamente irreconhecível o que é uma das casas mais antigas ainda existentes na cidade de São Paulo: o Sítio Mirim, cujos registros mais antigos remetem a 1750. Não há mais telhado, portas ou janelas. O que restou das paredes será a base para uma reconstrução quase completa, determinada pela Justiça após quase 10 anos de disputa com a Prefeitura e objetivo de uma licitação que terá resultado divulgado ainda neste mês.
Originalmente rural, a residência fica em uma praça na Avenida Doutor Assis Ribeiro, no distrito da Vila Jacuí, na zona leste, e é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1965. O projeto também prevê a transformação em um centro cultural, com oficinas, exposições e outras atividades de pequeno porte, com espaço interno de 199 metros quadrados. A previsão é que a obra comece neste semestre e dure 20 meses. O custo é estimado em R$ 3,5 milhões, com recursos municipais, porém a licitação selecionará a proposta de menor valor.
Durante os quatro primeiros meses, haverá também acompanhamento arqueológico, pois mais de 200 artefatos foram encontrados em prospecção parcial de equipe do Museu do Ipiranga no terreno, em 1982. Para a proteção dos trabalhos, será instalada uma cobertura temporária sobre o perímetro das ruínas.
A reconstrução utilizará principalmente o chamado “solo cimento”, produzido a partir da mistura de saibro umedecido e cimento e esmagado em formas de madeirite. Segundo o projeto, do escritório Restarq Arquitetura (contratado pelo Município), o material foi escolhido pelas características semelhantes às originais da residência, feita em “taipa de pilão” (terra socada em formas de madeira), comum no início da colonização paulista, chamado de período “bandeirista” ou “sertanista”.
Antes, os remanescentes passarão por um processo de limpeza e recuperação, por estarem hoje erodidos pelas chuvas, com a presença de insetos (como cupins, vespas e formigas) e recobertos de fungos e liquens. Na avaliação técnica, foi identificado que estão fragilizados e precisarão ser manipulados com cuidado, para evitar maior deterioração.
Para o projeto, a principal referência foi a reconstrução da chamada “Casa Bandeirista do Itaim”, que esteve em estado de arruinamento semelhante. Ela foi reconstituída há cerca de 10 anos no vão do Pátio Victor Malzoni, edifício da Avenida Brigadeiro Faria Lima também conhecido por ser a sede do Google e de outras empresas.
Do lado externo, o Sítio Mirim receberá uma pintura a cal, resgatando a tradicional cor branca de edificações bandeiristas (como a Casa do Grito e o Pátio do Colégio, por exemplo). Na área interna, contudo, as partes originais de taipa de pilão não serão revestidas nem pintadas, a fim de mostrar a técnica construtiva e também lembrar o passado de arruinamento da casa. Porém haverá a aplicação de produtos para conservação.
Já as telhas serão de cerâmica, como as originais, mas “grampeadas” com arame, pela identificação de que o local é “extremamente exposto aos ventos”. Por sua vez, o piso será de concreto polido e colorido em marrom claro, para remeter ao chão batido original.
As novas sete portas e 10 janelas serão semelhantes às identificadas em documentação e fotos antigas, assim como será reconstruída a varanda que envolvia grande parte da construção. Haverá implantação de estrutura de elétrica, hidráulica e segurança contra incêndios, além de acessibilidade. No caso da madeira, por exemplo, em vez da canela preta, não mais comerciável, são sugeridas cedro, ipê, jatobá e outras equivalentes.
Para o pátio, o projeto prevê a implantação de um caminho de pedras irregulares e gramado. O paisagismo terá o objetivo de reduzir o impacto da urbanização do entorno na paisagem (especialmente da linha de trem, do viaduto e das casas do entorno), porém permitindo que a casa seja avistada desde a avenida. Para isso, foram indicadas espécies nativas arbustivas e de árvores de pequeno porte, incluindo algumas frutíferas.
Tombado pela autenticidade, Sítio Mirim está em degradação desde os anos 1970
O Sítio Mirim foi tombado em 1965, por sugestão do arquiteto Luís Saia, um dos nomes mais importantes da história do Iphan. Na justificativa, ele dizia que a casa era a de estilo mais autêntico entre as do bandeirismo paulista e que as características da planta apontavam “interferências individualistas”, em vez de serem meras reproduções do que era predominante na época.
“O empenho (de preservação) maior deve incidir sobre este exemplar único, diferente, ilustrativo e, portanto, valioso. Sua perda seria irreparável”, justificou em documento da época. Entre os aspectos que assinalava, estava que a fachada principal ficava voltada ao Rio Tietê, demonstrando que o terreno do antigo sítio era maior que o atual.
A documentação encontrada até hoje indica que a residência existe ao menos desde 1750, quando pertencia ao guarda-mor Francisco de Godoy Preto, porém especialistas apontaram que provavelmente seja mais antiga. Segundo levantamento do escritório Restarq, foi habitada ao menos até 1945, mas já em "mau estado de conservação".
A casa passou por um processo de restauro pelo Iphan em 1966. Cerca de cinco anos depois, nos anos 1970, após a morte do zelador, começou a ser alvo de saques, com a retirada das janelas e outros componentes, o que acelerou o arruinamento em conjunto com a exposição às intempéries, a trepidação provocada pela circulação de trens e a falta de manutenção.
Neto e filho de pessoas que viveram na antiga casa, o contador Jaime Carlos Glass, de 72 anos, recorda-se de ouvir histórias sobre o local e como era feita a manutenção da taipa. “Sou de opinião que as obras sejam realizadas, mas precisamos preservar todo o espaço existente, criando ao lado nesta reforma uma estrutura cultural. E preservar também a memória dos antepassados, ou seja, criar um memorial indígena sobre os guaianazes”, disse.
Algumas obras de recuperação da antiga casa chegaram a ocorrer nas décadas de 1970 e 80, mas de forma parcial. Em 2007, o Município apresentou um projeto para o local, com arquitetura contemporânea, em que as ruínas seriam mantidas na forma atual, com a implantação de uma cobertura para evitar maior deterioração e a construção de outra edificação para atividades culturais, porém não foi adiante.
A degradação do imóvel levou a críticas de diferentes setores. Morto em 2021 e de forte presença na zona leste, o padre Antonio Luiz Marchioni (mais conhecido como Padre Ticão) foi uma das principais lideranças da reconstrução do Sítio Mirim e transformação em um espaço para a comunidade.
Por quase 10 anos, a casa foi alvo de uma disputa judicial em uma ação aberta pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), no nome do então promotor José Eduardo Ismael Lutti, que foi parar até no Supremo Tribunal Federal (STF). Um acórdão de 2019 determinou de vez a reconstrução. Na sequência, o projeto de restauro foi elaborado, mas enfrentou resistência no órgão estadual de patrimônio, por ser uma reconstrução quase integral. O resultado da licitação agora em curso é previsto para 21 de julho.
“Sempre que se restaura um bem histórico e o disponibiliza para sociedade está se resgatando a história não só do bem, mas da própria cidade e, no caso, do próprio País”, diz Lutti, hoje procurador de Justiça no MPSP. “A única forma de se manter preservado o bem histórico é dar a ele uma utilidade pública, especialmente se for para visitação pública e de educação histórica”, acrescenta.
Em nota, a Prefeitura não informou detalhes sobre o funcionamento da casa após a reconstrução e se será incorporada à rede Museu da Cidade, que inclui outros espaços culturais sediados em antigas residências. “O Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), da Secretaria Municipal de Cultura, informa que no momento o foco das ações está voltado para a licitação e o projeto de restauração das remanescentes históricas existentes.”
Moradores criticam falta de diálogo e reivindicam melhorias na praça do Sítio Mirim
Moradores envolvidos em movimentos pela valorização do Sítio Mirim consideram que a elaboração do projeto de reconstrução não ouviu a população local, tanto que nem sequer sabiam da publicação da licitação. Eles também reivindicam melhorias na praça em que a antiga casa está inserida, que não tem bancos, lixeiras ou qualquer outro tipo de mobiliário ou equipamento urbano.
Idealizador do Sarau Urutu, que faz atividades na Praça Sítio Mirim há sete anos, o educador cultural Edson Lima, de 36 anos, celebra a reconstrução da antiga casa, mas questiona se o projeto será efetivo sem uma infraestrutura no entorno.
“Acho legal que seja um ponto turístico, mas vamos pensar mais. A praça é grande, passa de um quarteirão a outro”, diz. Hoje, avalia que há uma sensação de insegurança no local à noite, por exemplo. “(Precisa ter) Uma mínima estrutura, muito básica, com bebedouro, parquinho para as crianças, para que a gente possa utilizar esse espaço de forma mais presente.”
Lima também questiona a falta de diálogo. “Os moradores não serem consultados é uma ideia invasiva”, avalia. “Acho super importante ter um olhar para esse espaço, que seja valorizado, pela dimensão que tem, mas, (precisa ser) principalmente, (valorizado) pelo olhar dos moradores, que querem há muito tempo esse espaço para ser frequentado, e não ser apenas visitado.”
O pesquisador Danilo Morcelli, de 34 anos, morador da região, também defende maior diálogo com a população, especialmente na configuração das atividades do futuro espaço cultural. “As comunidades e os grupos devem estar envolvidos em todas as etapas do processo, inclusive na gestão e na utilização do equipamento", afirma.
“O Sítio é vivo, as crianças brincam no local, a comunidade utiliza ele como caminho de passagem. Por vezes, diversas manifestações culturais estão ocorrendo no espaço, de origens afro brasileiras, indígenas e populares”, diz ainda. “O espaço deve ser protegido para que se mantenham vivas memórias e tradições culturais que fazem parte da cultura brasileira.”
Também morador da região, o arquiteto Ruy Barbosa Silva, de 58 anos, faz críticas à insuficiência de informações sobre o espaço anteriores a 1750. Ele defende a hipótese de que a construção é mais antiga e teve uso não residencial, possivelmente ligado à guarda de minas de ouro do Rio Baquirivu-Guaçu. Além disso, considera que a reconstrução com solo cimento deixará a casa frágil aos efeitos da trepidação da linha de trem.
Procurada, a Prefeitura se manifestou em uma nota na qual ressalta que ações de zeladoria “são realizadas continuamente” na praça. Sobre iluminação pública, respondeu que as vias do entorno “se encontram adequadamente iluminadas por meio de luminárias equipadas com tecnologia LED” e que, no interior da praça, “existem postes para iluminar uma passagem de pedestres”.
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