Quase totalmente demolida há quatro anos, a vila da Rua João Migliari — no distrito Tatuapé — é o mais novo patrimônio cultural da cidade de São Paulo e não poderá mais ser derrubada. Decisão de 4 de setembro determinou o tombamento dos cinco remanescentes do conjunto na zona leste paulistana, que já teve 60 sobrados. Os proprietários são contrários à preservação e buscam uma forma de recorrer.
O reconhecimento é visto como uma vitória por quem liderou a mobilização popular pela preservação da vila. Moradores da zona leste e apoiadores fizeram abaixo-assinado, abraço coletivo, ação judicial e até uma intervenção com cruzes sobre escombros para barrar as demolições desde 2019. O pedido de tombamento foi aberto por um deles.
“Vale a pena se mobilizar e lutar por isso”, diz o arquiteto Lucas Chiconi, de 29 anos, autor do pedido de tombamento. Morador do Tatuapé e frequentador da vila antes das demolições, ele avalia que o reconhecimento pode ser uma semente para que outros bairros menos centrais se mobilizem pela preservação de espaços significativos. “Esses lugares também têm marcos importantes para a história da cidade.”
O tombamento foi decidido em reunião do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), na qual obteve a maioria dos votos. Pedidos de vistas, contestações variadas e a pandemia estão entre os motivos que adiaram a decisão fina diversas vezes.
A preservação envolve os cinco remanescentes do conjunto do Tatuapé e outras duas vilas do distrito Belém, todas ligadas ao imigrante italiano Raphael Parente e seu genro João Migliari. Os imóveis datam da 1ª metade do século 20, construídos para serem alugados a famílias de classes baixa e média baixa, como era comum à época, especialmente nos bairros de histórico industrial e operário.
As vilas do Belém seguem com uso predominantemente residencial, embora algumas também abriguem outras atividades, como na área de costura. Já o que restou do conjunto do Tatuapé está esvaziado após o início da demolição, em 2019, precedido pela saída dos inquilinos.
Os cinco sobrados só permaneceram por meio da mobilização de moradores, apoiadores e um dos inquilinos, que entrou na Justiça para barrar a demolição. Após o início da derrubada, o Conpresp aceitou “com urgência” o pedido de Chiconi para iniciar o estudo de tombamento, medida que resultou no veto à derrubada do imóvel até a decisão final, de 4 de setembro.
Todos os imóveis pertencem a descendentes de João Migliari e Raphael Parente (ligados à Voga Empreendimentos), que são contrários ao tombamento. “Tomamos ciência da deliberação no Conpresp que decidiu pelo tombamento não só das casas remanescentes do Tatuapé, como também dos restantes 41 imóveis da nossa família. Por discordar do teor dessa deliberação, adotaremos as medidas cabíveis tão logo seja publicada aquela decisão”, destacou Bruno Lembi, da Voga, em nota.
O que restou da vila está vazio e sem manutenção desde 2019. Algumas esquadrias da porta e das janelas foram retiradas, aspecto distinto do que tinha há quatro anos, quando os sobrados eram endereço de barberia, cafeteria, salão e outros comércios e serviços do bairro. Nos terrenos onde não há mais casas, foi construído um supermercado e um edifício.
‘Representatividade para história da cidade e memória de grupos sociais’
A decisão pela preservação destacou a representatividade da decisão. Hoje, a grande maioria dos tombamentos na cidade estão concentrados no centro expandido. O distrito Tatuapé tem, por exemplo, apenas outros quatro bens considerados como patrimônio cultural da cidade: o Parque Piqueri, a EMEI Presidente Dutra, a Casa do Sítio do Tatuapé e a Escola Visconde de Congonhas.
Em parecer conjunto, as conselheiras relatoras do processo salientaram que a decisão pode ser um marco, “substituindo a ênfase no reconhecimento de edificações isoladas do seu contexto de inserção, para dar lugar à valorização de tecidos urbanos representativos da história e da memória de grupos sociais diversos”.
O documento ainda fala sobre o quase destino da vila e o destino de outros bens simbólicos: “trechos valiosos da história da cidade vão-se embora junto como os detritos da demolição”. “A prosseguir essa tendência de deslegitimar o patrimônio cultural ambiental urbano, restarão cidadãos desmemoriados perambulando por espaços genéricos, ocupados por edifícios igualmente genéricos recém-construídos sobre escombros das edificações demolidas.”
O parecer é assinado pelas conselheiras titulares e suplentes das seccionais paulistas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP) e do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/SP). São elas: Stela Da Dalt, Eneida de Almeida, Grace Laine Pincerato Carreira Dini e Lilian Regina Gabriel M. Pires.
A decisão não foi unânime no Conpresp. As conselheiras (titular e suplente) da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, Giselle Flores Arrojo Pires e Larissa Castro de Santana Carneiro, apresentaram parecer contrário.
As conselheiras destacaram que os sobrados restantes são menos de 10% da vila. “O tombamento dessas unidades não traria nenhum benefício para o bairro, sendo que o a história pode ser conservada com a melhoria de estratégias que o bairro exige, até porque a história do bairro não se resume à essa vila”, afirmaram.
O grupo Voga também contestou a decisão ao longo da tramitação do processo. Apresentar pareceres de um arquiteto e um abaixo-assinado de parte dos vizinhos contrários ao tombamento. O argumento principal é que a vila do Tatuapé não teria valor estético ou arquitetônico para ser preservada e que está descaracterizada, ainda mais após a demolição.
Sobrados foram preservados por décadas
O rosa salmão das paredes externas da vila chamava a atenção naquele trecho do Tatuapé. Antigos inquilinos contam que o proprietário determinava que a cor deveria ser mantida na fachada dos imóveis, independentemente de funcionarem como casa ou estabelecimento de comércio e serviços. Segundo relatos, a situação mudou quando o principal dono morreu e os herdeiros passaram a manifestar o interesse em encerrar os contratos de aluguel.
A primeira demolição envolveu os 20 sobrados que ficavam na Rua João Migliari, o que deu início à mobilização no começo de 2019. O terreno deu lugar a um empreendimento da Porte Engenharia e Urbanismo, que informou ter comprado a propriedade em 2014.
Já a segunda demolição ocorreu meses depois, com o movimento pela preservação já tinha ganhado mais apoiadores. À época, autoridades públicas criticaram o início da derrubada, como o então secretário municipal de Cultura, Alê Youssef.
A vila era caracterizada pelos sobrados de dois pavimentos, com quintal nos fundos e muros baixos. Foi erguida por volta dos anos 1950. As mesmas cores salmão que lhe eram características também estão nos dois conjuntos recém-tombados no Belém, nas Ruas Paulo Andrighetti e Marcos Arruda.
“Temos em mente muito senso comum de que patrimônio é prédio antigo. Na verdade, patrimônio é memória ligada aos processos de transformação da cidade”, diz o arquiteto Lucas Chiconi. Ele identificou as demais duas vilas enquanto pesquisava sobre o conjunto do Tatuapé e decidiu incluí-las no pedido de tombamento.
Para ele, a manutenção dos cinco sobrados restantes também será um registro visual da mobilização. “Pela primeira vez em tantas décadas de transformação da região, tivemos uma luta mais significativa no Tatuapé por preservar um espaço de uma memória que foi bastante significativa, que é o período da industrialização.”
O arquiteto destaca que não foi uma mobilização contra a verticalização ou o desenvolvimento do bairro, mas pela preservação de um bem simbólico. Para o futuro, espera que o que restou da vila do Tatuapé seja recuperado e volte a ter uso.
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