Você sabe onde é a ‘Capital do Lobisomem’, escondida entre as montanhas da Mantiqueira? Conheça

Cidade na divisa com Minas Gerais tem a segunda maior cachoeira do Estado e lendas de séculos atrás

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Foto do author João Ker

“Quem conta um conto aumenta um ponto”, diz o ditado. A cerca de 120 quilômetros de São Paulo e na divisa com Minas Gerais, o município de Joanópolis mantém há séculos uma lenda que permanece desde sua fundação, ainda no século 19, e que já tomou tantas formas e relatos ao longo dos anos que fica difícil entender quem dentre seus pouco mais de 10 mil habitantes realmente acredita nela e quem apenas embarca no mito de que aquela é, de fato, a capital brasileira do lobisomem.

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Tudo teria começado com histórias passadas de geração em geração sobre um dos fundadores de Joanópolis ter sido, na verdade, um lobisomem. Ao longo dos anos, multiplicaram-se os relatos de moradores que teriam encontrado o bicho em noites de lua cheia pela Serra da Mantiqueira, uma tradição oral mantida até hoje pelos “mais antigos”, como afirma qualquer pessoa que você parar pela cidade.

O burburinho foi oficializado em 1983, quando a folclorista Maria do Rosário de Souza Tavares de Lima resolveu investigar as origens de tantas histórias sobre esse personagem em sua cidade natal e transformou sua pesquisa no livro “Lobisomem: Assombração e Realidade”.

Naquele mesmo ano, uma matéria publicada pelo próprio Estadão sugeriu que Joanópolis fosse batizada como “Capital do Lobisomem”, título que foi cimentado em 1998, quando um comercial do McDonald’s gravado na cidade espalhou a fama para todo o Brasil.

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Tudo teria começado com histórias passadas de geração em geração sobre um dos fundadores de Joanópolis ter sido, na verdade, um lobisomem Foto: Tiago Queiroz/Estadão

“Essa lenda começa na fundação da cidade, quando surge uma série de causos falando que um dos fundadores era lobisomem. Ele era um homem grande, da maçonaria, descendente de português e andava muito à noite”, conta o historiador Valter Cassalho, de 56 anos.

A lenda sobre a maldição do sétimo filho que se transforma em lobo nas noites de lua cheia existe desde a Roma Antiga e chegou ao Brasil trazida pela colonização portuguesa. Mas ao contrário da versão hollywoodiana, o lobisomem brasileiro, principalmente na cultura caipira, é mais amigável do que amedrontador, segundo Cassalho. “É mais ‘meu vizinho é lobisomem e tá tudo bem, ele só fica estranho em algumas épocas do mês’.”

Aos 77 anos, o joanopolitano Bento Pinheiro discorda de Cassalho. Ele conta que quando tinha 30 anos esteve frente a frente com um lobisomem que tentava invadir sua casa no meio da noite para roubar sua segunda filha, Helena Pinheiro, nascida apenas três dias antes. “Quando a criança não era batizada, ele vinha pegar”, explica.

“Quando a criança não era batizada, ele vinha pegar”, conta Bento, fotografado ao lado da filha, Helena Pinheiro Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Seu Bento lembra da figura “como um cachorro magro de orelhas grandes que andava com os cotovelos, gosta muito de escuro e tinha medo de fogo”, que ele usou para afugentar o bicho. Na sua versão da lenda, a maldição é ativada toda quarta e sexta-feira de lua cheia e dura 7 anos. Depois, a pessoa “vira homem de novo”. Hoje com 42 anos, Helena diz que já está tão acostumada a ouvir a história que não duvida mais da sua veracidade.

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“Todo mito tem uma função social. Eles não existem à toa, são motivados por alguma coisa”, diz Cassalho. “Nos séculos 19 e 20, uma pessoa morrer sem ser batizada era uma danação, porque você ia para o limbo. Pessoas que ficam muito tempo sem ir na igreja ou andavam muito à noite, também podiam ser comidas. Nosso bicho-papão era o lobisomem.”

Lenda contemporânea

Logo na entrada de Joanópolis já é possível ver em frente à Praça do Portal Turístico a figura enorme de um lobisomem com roupas caipiras, olhar amigável e a língua de fora, mais em tom de brincadeira que de ameaça. Outras versões em maior ou menor tamanho do modelo criado pelo artista André Collins estão espalhadas pelos bancos, lojas e pontos turísticos da cidade.

Mesmo que as novas gerações não mantenham a mesma crença inabalável que Seu Bento defende sobre a existência de lobisomens, é inegável que a popularização da lenda se tornou o carro-chefe do turismo em Joanópolis.

Aos 51 anos, o artesão Pedro Mineiro se mudou para a cidade em 2000 e diz que suas esculturas do bicho “vendem como água” até hoje. E ele acredita nas lendas? “Os antigos falam que tinha e batem o pé, né. Eu que não vou duvidar”, diz, sério.

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O artesão Pedro Mineiro se mudou para a cidade em 2000 e diz que suas esculturas do bicho “vendem como água” até hoje; na foto, um dos modelos, cuja cabeça foi confeccionada usando um crânio real de javali que o artista encontrou na serra Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Apaixonada desde criança por tudo que diz respeito a lobisomens, Marina Neves, hoje com 28 anos, se mudou em 2016 para Joanópolis e jura de pés juntos que as lendas são reais.

“Não tem como dizer que não existe”, afirma. Ela elenca uma série de explicações “racionais” sobre a origem do bicho na cidade, desde possíveis sacrifícios realizados por povos originários da Serra do Lopo à existência de animais de grande porte com hábitos noturnos e um surto de “licantropia clínica”. “Pode ser tudo isso, não acho que uma teoria precisa anular a outra.”

Em 2019, Marina abriu a Barbearia do Lobisomem, um espaço amplamente decorado com quadros, livros e imagens do bicho, que também é visível em uma tatuagem na sua mão esquerda.

Paralelamente, ela promove aulas de dança no Espaço Cultural da Capital do Lobisomem, que fundou em outro ponto da cidade e onde uma figura do animal dançando com uma sereia estampa a entrada. “Curto muito a história, mesmo. Acredito nessa entidade selvagem do lobo”, diz.

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Apaixonada desde criança por tudo que diz respeito a lobisomens, Marina Neves, hoje com 28 anos, se mudou em 2016 para Joanópolis e jura de pés juntos que as lendas são reais Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A manutenção da fama de Joanópolis como Capital do Lobisomem, entretanto, não foi apenas obra do acaso ou sorte. Boa parte desse reconhecimento nacional e do respeito das novas gerações de joanopolitanos pela lenda se deve ao próprio Valter Cassalho, que ajudou a fundar a Associação dos Criadores de Lobisomens para “difundir este precioso mito”.

“Nossa ideia é exatamente preservar os ‘causos’, incentivar que eles sejam contados. A gente trabalha no patamar da oralidade, da tradição e dos contos, para que isso seja preservado”, diz. Hoje presidente da associação, ele conta que o objetivo é realmente usar o título de Capital do Lobisomem para atrair pessoas a Joanópolis, assim como Botucatu explora o mito do saci-pererê e Varginha, em Minas Gerais, faz com os ETs. “O intuito é incentivar o folclore e o turismo, girando a economia em torno desse mito.”

Jóia da Mantiqueira

Apesar do apelo, a fama de Capital do Lobisomem geralmente ofusca outros atrativos de Joanópolis, que é conhecida também como Jóia da Mantiqueira pela beleza natural que preserva em todos os cantos. Mesmo quem não se interessa tanto assim por lendas e folclore consegue encontrar na cidade alguns dos pontos de turismo ecológico mais exuberantes de São Paulo, principalmente pelas cachoeiras.

A principal delas é a Cachoeira dos Pretos, que fica a 18 quilômetros do centro e é a segunda maior de todo o Estado, com 154 metros. O acesso é fácil e feito por um caminho de madeira que chega até o pé da queda d’água. A entrada tem estacionamento, opções variadas de restaurantes, bares e lanchonetes, além de hospedagem e agências que promovem programas com tirolesa, arvorismo e passeios de trem até o topo.

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A Cachoeira dos Pretos fica a 18 quilômetros do centro e é a segunda maior de todo o Estado, com 154 metros Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Nem ali, entretanto, é possível fugir do morador mais ilustre de Joanópolis. Antes da entrada de acesso à cachoeira, uma “Casa do Lobisomem” foi construída para abrigar um espécime mais domesticado do mito, que está sempre preparado para tirar foto com os turistas (e receber uma caixinha por isso) aos fins de semana.

Perto dali, em uma estrada de terra cujo acesso fica no meio do caminho para a Cachoeira dos Pretos, a Cachoeira Escondida também é uma boa opção para se refrescar nos dias de calor e curtir a tranquilidade em meio à natureza. Nem tão escondida assim (há várias placas sinalizando o caminho), ela é mais rasa, menor, mas tão bonita quanto sua vizinha, com vários “degraus” ao longo da queda d’água. A infraestrutura, entretanto, conta com apenas uma opção de restaurante.

Avistado de vários pontos dentro e fora da cidade, o Gigante Adormecido também aumenta o clima de misticismo em Joanópolis e na vizinha Extrema, já em Minas, por formar a figura de um homem deitado entre as montanhas da Serra do Lopo. Mas essa lenda já é outra história.

Serviço

  • Praça do Portal Turístico

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Endereço: Entrada de Joanópolis - SP, 12980-000

  • Barberia do Lobisomem

Endereço: R. Capitao Antonio Mathias, Nº57 - Centro, Joanópolis - SP, 12980-000

Mais informações: https://www.instagram.com/barbeariadolobisomem/

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  • Restaurante e Emporio Lobo Cansado

Endereço: Rua Francisco Wohlers, Joanópolis - SP, 12980-000

Mais informações: https://www.facebook.com/olobocansado/

  • Associação dos Criadores de Lobisomem

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Contato: (11) 98022-3613

  • Cachoeira dos Pretos

Endereço: Estrada dos Pretos, Km 18 s/n Bairro dos Pretos, Joanópolis - SP, 12900-000

  • Cachoeira Escondida

Endereço: Estrada dos Pretos, Km 14 s/n Bairro dos Alves, Joanópolis - SP, 12900-000

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