Prestes a completar seu primeiro ano no comando do Ministério da Saúde, Nísia Trindade afirma que os primeiros 12 meses de governo foram para “reerguer os alicerces” e retomar programas que foram “desestruturados” na gestão anterior. Para seu segundo ano à frente da pasta, promete lançar uma ação específica para as filas de exames e consultas e um programa que aumentará o acesso a atendimentos com médicos especialistas com a ajuda da telemedicina - a iniciativa estava prevista para o primeiro semestre de 2023, mas, de acordo com a ministra, ficou para o começo de 2024.
“(O programa) Está ligado a várias mudanças que estamos propondo nas residências médicas para formar os especialistas naquilo que o SUS e a sociedade mais precisam e vamos lançar um programa voltado para mais acesso a especialistas que vai se juntar com o SUS digital. Estamos fazendo os ajustes finais para anunciar no início do ano”, declarou, em entrevista exclusiva ao Estadão, sobre o primeiro ano de sua gestão e os projetos para 2024.
A ministra destacou, como principais avanços do período, o aumento das coberturas vacinais, o programa de redução das filas de cirurgias e a retomada dos programas Mais Médicos e Farmácia Popular, mas reconheceu problemas como o fato de a alta nas coberturas vacinais não ter sido suficiente para que as metas de imunização fossem alcançadas, as dificuldades de acesso da população a tratamentos oncológicos e a falta de integração de dados que impede que o ministério saiba, por exemplo, o tamanho real da demanda represada por procedimentos eletivos no SUS.
“A nossa meta é ter um controle dessas filas com sistemas de informação. Estamos trabalhando com Estados e municípios para que a gente possa ter esses números com transparência e para que eles nos ajudem na gestão porque não podemos ficar sem esses dados para avaliar o que está sendo feito”, afirmou.
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A ministra falou ainda sobre como enfrentar o aumento de transtornos mentais e destacou a necessidade de uma política mais ampla de tratamento e acolhimento focada no bem-estar.
“Vivemos numa sociedade individualista, que exacerba o narcisismo e que faz com que as pessoas tenham objetivos que vão muito longe do que seria uma vida em harmonia, com solidariedade e paz. Isso tudo tem um efeito na saúde mental. O ministério está investindo na reestruturação de uma rede que possa fazer a diferença nesse atendimento, mas temos também que buscar construir uma nova forma de relação social, de acolhimento em todos os níveis, o que passa por emprego, respeito e combate a todas as formas de violência”, diz.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista da ministra ao Estadão.
O que destacaria como principais avanços e como pontos a melhorar desse primeiro ano de gestão?
Encontramos um Ministério da Saúde com a desestruturação dos principais programas. Se não houvesse a emenda constitucional que garantiu recursos para os programas prioritários desse primeiro ano, nós teríamos muita dificuldade de fazer esse balanço. Havia cortes previstos de 70% em programas, não havia o devido planejamento para vacinas e medicamentos, então esse primeiro ano foi para recuperar essa confiança no Ministério da Saúde.
As primeiras ações foram o Movimento Nacional pela Vacinação e o programa de redução de filas para cirurgias eletivas. Desde 2016, se verificava a queda de coberturas e isso se agravou nos últimos quatro anos, e nós conseguimos ter um acréscimo de um terço dos municípios que atingiram a meta de 95% em vacinas fundamentais para a proteção das crianças e um aumento de cobertura vacinal entre 4 e 8 pontos porcentuais para sete vacinas do calendário infantil, não só indicando uma interrupção da tendência de queda, mas já um aumento que precisa de uma ação continuada nossa.
Sobre o programa de redução de filas, nossa meta é chegar a 500 mil cirurgias feitas. Os dados registrados estão na faixa de 380 mil, mas esse dado chega com um atraso de dois meses ao sistema. Estou confiante que, em janeiro, vamos poder anunciar que fizemos a cirurgia de número 500 mil com os R$ 600 milhões repassados.
Esse valor será reforçado e é uma prática que vai ser constante porque tivemos, além de todo o impacto de desestruturação do SUS, o impacto da pandemia, quando cirurgias eletivas foram postergadas.
Outra realização foi a retomada do programa Mais Médicos com inovações. Estamos chegando perto da meta de ter 28 mil profissionais (no último dia 29, após a realização da entrevista, o ministério divulgou que o programa chegou a 28,2 mil médicos alocados). Tivemos como inovações incentivo aos médicos brasileiros, com uma maior presença de médicos brasileiros nessas chamadas, maior adesão dos municípios.
Também retomamos o Brasil Sorridente, fizemos uma coisa inédita de incluir serviços de saúde bucal em cidades com até 20 mil habitantes. Mais de 30 serviços novos foram entregues e habilitamos serviços que estavam sob responsabilidade das prefeituras, sem nenhum apoio do governo federal.
Voltando ao tema da vacinação, houve reversão da tendência de queda das coberturas vacinais, mas elas ainda estão longe das metas de 90% a 95%. O que que vai ser feito em 2024 para que as coberturas aumentem mais?
Estamos justamente avaliando e fechando o ciclo dessa etapa de microplanejamento para ter ações mais direcionadas. Só lembrando que nós temos hoje 2,1 mil municípios aproximadamente que alcançaram a meta de cobertura para a maior parte das vacinas para a infância, mas vamos continuar com a mobilização e fortalecer algumas estratégias, como é o caso da vacinação nas escolas.
Neste ano, 3.900 municípios usaram estratégias de vacinação nas escolas, o que está associado, por exemplo, ao aumento de 30% no número de doses da vacina de HPV aplicada em adolescentes. Isso nos mostra que estamos no caminho, mas temos que aperfeiçoar.
Alguns diretores de escolas têm resistência em oferecer a vacinação dentro das unidades. Como vencer essa resistência?
É um trabalho em conjunto com o MEC (Ministério da Educação). Esse trabalho já começou a ser feito com o programa Saúde na Escola, que hoje vê se a carteira de vacinação está atualizada, faz o diálogo com a comunidade, e temos uma adesão de 99% dos municípios.
Além disso, vamos trabalhar com o convencimento das comunidades familiares. A gente tem que considerar que grande parte dessa responsabilidade sobre a vacinação recai sobre as mulheres, que têm muitas vezes tripla jornada de trabalho, então o que nós temos que fazer é facilitar o acesso à vacinação.
Sobre as filas do SUS, tanto o governo federal quanto os Estados têm uma dificuldade de saber o tamanho real dessas filas, então até quando a sra. fala em 500 mil cirurgias realizadas, o número absoluto é significativo, mas a gente não tem noção de quanto isso representa da demanda represada. O ministério tem hoje noção de qual é o tamanho dessa fila e quanto essas 500 mil cirurgias representam de redução?
Uma avaliação com os dados que temos indicaria que seria mais ou menos metade do da fila estimada no início do ano, entre 45% e 50%. Mas vale dizer que isso não é uma coisa estática e, a medida que você faz um programa como esse, há até um aumento na demanda. A nossa meta é ter um controle dessas filas com sistemas de informação.
Estamos trabalhando com Estados e municípios para que a gente possa ter esses números com transparência e para que eles nos ajudem na gestão porque não podemos ficar sem esses dados para avaliar o que está sendo feito. Então estamos em processo e isso será a base para nossa política de média e alta complexidade. Queremos trabalhar com linhas de cuidado, que tenhamos a consulta, o diagnóstico, os exames necessários e cirurgia, quando necessário. Isso é uma meta, mas, sem a integração dos dados, não vamos chegar a um lugar adequado. Estamos investindo também em telessaúde.
Quando foram anunciados os R$ 600 milhões para cirurgias, o ministério afirmou que a ideia era que o programa fosse ampliado também para financiar exames e consultas de pacientes que estavam na fila, mas isso ainda não aconteceu. Vai haver verba também para essas outras filas?
Nós vamos desenhar uma ação específica para exames e consultas, sim. Ao todo, estamos destinando cerca de R$ 2 bilhões para essas ações.
Com relação ao Mais Médicos, vocês conseguiram um aumento significativo no número de profissionais, mas ainda há um gargalo grande no acesso a médicos especialistas. No início da gestão, a sra. falou de um programa mais focado em médicos especialistas. Há algo previsto nesse sentido?
Temos avançado com habilitações de policlínicas, por exemplo, porque as secretarias foram criando iniciativas nesse sentido, mas elas não estavam contando com uma política do Ministério da Saúde nem com apoio de recursos federais. Já começamos a fazer isso, o que fizemos foi habilitar, fazer o repasse de recursos de média e alta complexidade em todos os Estados.
Mas e o programa de jovens especialistas?
Isso está ligado a várias mudanças que estamos propondo nas residências médicas para formar os especialistas naquilo que o SUS e a sociedade mais precisam. Mas além dos jovens especialistas, vamos lançar um programa voltado para mais acesso a especialistas e que vai se juntar com o SUS digital. Estamos fazendo os ajustes finais para anunciar no início do ano.
Depois do foco em programas como vacinação, Mais Médicos, redução de filas no primeiro ano, qual é a sua meta para o segundo ano de gestão?
Teve um programa do primeiro ano que eu não falei, que foi o Farmácia Popular, retomamos com inovações. Ele passou a garantir a gratuidade de todos os medicamentos aos beneficiários do Bolsa Família, ampliamos medicamentos disponíveis, credenciados 180 farmácias nas regiões Norte e Nordeste, onde havia maior carência.
Para 2024, há um elenco de ações estruturantes que queremos desenvolver, isso é uma prioridade do governo como um todo. Estamos muito engajados na mudança e na garantia do acesso. Então, garantir mais acesso a especialistas e o SUS digital são programas que estaremos trabalhando. Este foi um ano de reerguer os alicerces e, nos próximos anos, temos que fazer, de fato, os avanços.
Com a aprovação da Política Nacional do Câncer, o que vai mudar na assistência oncológica no SUS?
O ministério trabalha o câncer como uma das prioridades na política de média e alta complexidade e tivemos a aprovação e sanção de uma lei, e ela vai ser implementada. O diagnóstico precoce é um dos elementos mais importantes. A gente olha muitas vezes a medicalização, que, sem dúvida, é importante porque precisamos garantir os tratamentos, mas precisamos pensar no diagnóstico no tempo certo.
Sobre o tratamento, estamos investindo no Complexo Econômico-Industrial da Saúde. O ministério destinou R$ 100 milhões para uma pesquisa clínica, que vai ser realizada ao longo de um ano, de uma terapia inovadora, a CAR-T cell, que é uma terapia celular para alguns tipos de câncer. Esse estudo é de uma terapia desenvolvida no Brasil, pelo Instituto Butantan e pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
A outra ação é tentar incorporações sempre levando em conta as terapias adequadas a uma política de saúde universal como o SUS. Nem sempre a última terapia é necessariamente a melhor. Nós retomamos também um programa que foi estabelecido na época da presidenta Dilma, que é o de descentralização dos aceleradores para radioterapias no País porque há pessoas que precisam percorrer 700 quilômetros para fazer um tratamento de câncer.
A gente está vendo um aumento de transtornos mentais e de suicídios. O que o ministério fez ou pretende fazer no tema da saúde mental?
Estamos reestruturando a rede de atenção psicossocial, com Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em todo o País. Para isso, já foram destinados recursos que vão totalizar em 2023 e 2024 aproximadamente R$ 400 milhões. Há também uma rede de pesquisa que nos apoia para que nossas ações vão ao encontro daquilo que é mais necessário. Estamos retomando uma política pública que veio da Reforma Antimanicomial, que foi uma política exemplar (ela prioriza atendimento ambulatorial e reinserção social em vez de internações psiquiátricas).
Estamos garantindo esse acesso, mas também discutindo que a saúde mental tem que ser vista na linha do bem viver. Há muito sofrimento que não é doença mental, mas que tem um impacto muito grande na vida das pessoas. Vivemos numa sociedade individualista, que exacerba o narcisismo e que faz com que as pessoas tenham objetivos que vão muito longe do que seria uma vida em harmonia, com solidariedade e paz. Isso tudo tem um efeito na saúde mental, sem contar o impacto direto da pandemia de covid-19, que tem que ser vista, como bem descreveu o psicanalista Joel Birman, como um trauma. E os traumas precisam ser tratados, enfrentados com políticas públicas, com acolhimento.
Então o ministério está investindo na reestruturação de uma rede que possa fazer a diferença nesse atendimento, mas temos também que buscar construir uma nova forma de relação social, de acolhimento em todos os níveis, o que passa por emprego, respeito e combate a todas as formas de violência.
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