THE WASHINGTON POST – Branneisha Cooper perdeu 25 quilos e continua perdendo desde que começou a tomar Mounjaro, um medicamento para diabetes que causa considerável perda de peso, em novembro. Sua inflamação diminuiu, assim como a pressão arterial e os níveis de colesterol. Ela diz que está muito grata por esta nova classe de medicamentos para diabetes e perda de peso.
“Achava que todo mundo acordava pensando no café da manhã, no almoço e no jantar. Antes eu tentava de tudo para emagrecer, mas a voz da comida sempre vencia”, disse ela.
Para ela, a voz da comida agora ficou muito, muito baixa. E como escritora de gastronomia e fanática por comida a vida toda, acho que esse silêncio é perturbador.
Sei que os semaglutídeos – também chamados de agonistas do receptor do peptídeo 1 semelhantes ao glucagon (GLP-1) – estão se preparando para ser a grande corrida do ouro da Big Pharma nas próximas décadas, e por boas razões. Em muitos casos, eles ajudam as pessoas a perder mais de 20% do peso corporal. Ozempic, Wegovy, Rybelsus, Saxenda, Trulicity, Mounjaro: quase todas as empresas farmacêuticas lançaram ou vão lançar novos produtos nessa linha.
Ao contrário dos medicamentos anteriores para perda de peso, que muitas vezes prometiam demais e traziam efeitos colaterais perigosos, esses remédios funcionam em parte acalmando a mente “faminta” e entorpecendo os centros de prazer. Os pacientes podem reduzir o consumo de calorias em até 30%, principalmente porque a comida deixa de ser tão importante. Eles têm menos prazer comendo. E isso significa muita perda de peso, o que por sua vez significa menos diabetes e doença hepática gordurosa, provavelmente menos acidentes vasculares cerebrais e mais qualidade de vida.
Excesso de comida e dieta inadequada têm sido associados a câncer, diabetes, hipertensão, acidentes vasculares cerebrais, doenças cardíacas, doenças respiratórias, artrite, obesidade e doenças orais.
As doenças relacionadas ao estilo de vida estão associadas a 7 em cada 10 mortes de americanos todos os anos, por isso os riscos são elevados e, para muitas pessoas, as compensações valem a pena. Mas não consigo conceber uma qualidade de vida superior que não tenha comida e seus muitos prazeres no centro de tudo.
Pense em todos os feriados que seriam estragados pelo desinteresse na comida: Dia de Ação de Graças, já era. Natal e Páscoa, um grande baque. E todas as outras coisas universais? Nascimento e morte e amor e sexo? A comida tem lugar em cada uma delas.
Você diz “Acho que gosto de você” ou, então, “Sinto muito por ter feito isso” com uma caixa de chocolates. E quando alguém morre? Você leva um ensopado ou uma lasanha para a família. Comida é recompensa, consolo, promessa.
Cozinhar para alguém é um ato de amor completamente diferente de lavar roupa ou levar ao aeroporto. Trata-se de dar prazer, não de fazer um favor. Cozinhar para alguém é um jeito de dizer: vejo você, presto atenção em você, sei do que você gosta.
Cooper teve de sentar com os avós e lhes pedir que não se ofendessem com o pouco que ela come agora. Ela costumava querer algo doce logo depois de cada refeição, costumava fazer happy hours com as amigas, saboreando a camaradagem junto com aperitivos e drinks com desconto.
“Cozinhar realmente virou um desafio desde que comecei. Só fico olhando para a comida e penso, ah. Simplesmente não tenho mais paladar. Não tenho vontade nem quero cozinhar nada em particular”, disse a jovem de 27 anos, que é compradora da Target na região de Dallas. Os happy hours estão diferentes. As compras de supermercado também. Comida virou combustível, não prazer.
Temo que a adoção generalizada dessa classe de medicamentos possa transformar as pessoas que comem por prazer numa espécie em extinção – ou pelo menos em objeto de escárnio.
Estas são as pessoas que procuram a polpa estranha e arenosa dos figos maduros ou o toque sedoso do foie gras tostado na frigideira. São pessoas que ficam entusiasmadas ao relembrar o prazer untuoso e salgado do caviar regado com uma vodca gelada e adstringente.
Seus gostos nem sempre são sofisticados. Um prato de costelinhas pegajosas, mastigadas à vontade numa mesa de piquenique lascada ao sol, também vai muito bem. A saciedade é só uma pequena parte da força motriz desse consumo.
Adoro lembrar das enguias brancas servidas com um delicado caldo de ervas por Daniel Boulud no Le Cirque, quando eu tinha vinte e poucos anos. Ou das travessas de pato laqueado tarde da noite no Tommy Toy’s em São Francisco, no final dos anos 1980 – a pele incrivelmente crocante e os pães macios são um truque de mágica que me deixa com água na boca até hoje. Ou mesmo da baguete de presunto e manteiga comida sob um guarda-chuva debaixo de um dilúvio de verão parisiense.
O antigo vomitorium romano foi desmentido (na verdade, eles provavelmente não usavam penas para induzir a regurgitação, para que pudessem voltar à festa), mas o gosto humano por delícias, independentemente da densidade calórica ou nutricional, é nossa velha amiga.
Se essa classe de medicamentos reconfigurar nossos cérebros e entranhas para pensarmos na comida apenas como sustento, o mundo vai ficar muito triste. Sempre suspeitei da primazia de virtudes como a temperança e a abstenção. Mas provavelmente é porque sou doida por marshmallow.
No início da década de 1970, um professor de psicologia de Stanford chamado Walter Mischel e seu laboratório postularam que a capacidade de uma criança de adiar a gratificação seria preditiva de sucesso acadêmico, talvez até de sucesso na vida. Para provar isso, eles foram ao laboratório de psicologia do desenvolvimento da universidade, a Bing Nursery School.
Era a minha creche e eu fui cobaia da pesquisa de Mischel. Seu experimento era assim: ofereça a uma criança um marshmallow de imediato ou dois marshmallows se a criança estiver disposta a esperar um pouco enquanto o pesquisador sai da sala e volta.
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Cerca de 30% dos participantes conseguiram esperar 15 minutos para ganhar suas guloseimas. Eu não estava nesses 30%. Eu quis meu marshmallow na hora.
A pesquisa de Mischel tomou direções diferentes desde o trabalho inicial, mas ele continuou fanático até a morte, em 2018, pregando que a capacidade de acalmar a mente desejosa é um ingrediente central na receita para o sucesso. Seus pesquisadores faziam atualizações periódicas, mandavam questionários aos meus pais perguntando sobre minhas notas (que eram respeitáveis), meu índice de massa corporal (baixo) e meu estado civil (ainda casada com meu namoradinho do ensino médio).
Então não caio nessa. Planejar, comprar, cozinhar e – ah, sim – comer estão entre minhas maiores alegrias. Fui para a escola de culinária em parte porque “o que teremos de jantar esta noite” é um esporte de contato total na minha família, e eu queria ganhar. Escrevo sobre comida há 32 anos e ainda acho fascinante. Todos. Os. Dias.
Mas sei que não sou o público-alvo desses medicamentos. Meu metabolismo é misericordiosamente rápido, minha relação com a comida é como a de dois velhos amigos que se acolhem a cada dia.
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Não quero que tudo isso soe ridículo ou impróprio. Como podemos pensar sobre o prazer profundo e visceral de cozinhar, comer e alimentar as pessoas se de alguma forma temos vilanizado a alimentação por sua absoluta alegria hedonística?
Pessoas com sobrepeso que usam esses medicamentos – e que podem ter uma relação mais conturbada com a comida do que eu – não compartilham da minha preocupação.
Para elas, também é prazeroso fazer uma refeição sem ficar obcecadas com o que tem de sobremesa. É um prazer conseguir sentar no chão e fazer um piquenique com a família sem precisar da ajuda de alguém. E é um grande prazer fazer exercícios pela primeira vez – longas caminhadas, trilhas na natureza e até corrida – porque não estão carregando quilos extras.
Art Smith, vencedor do prêmio James Beard, autor de livros de receitas e dono de restaurante que foi chef pessoal de Oprah, tem diabetes tipo 2 e lutou contra a balança a vida toda. Ele começou a tomar Mounjaro e diz que, depois de apenas um mês, perdeu 5 quilos.
“Sou um chef famoso por engordar comida reconfortante, mas continuo comendo o que quero. Acho que [o medicamento] acaba com a comilança compulsiva, e agora fico feliz com quantidades menores”, disse ele por e-mail, de férias na Europa (ele manou várias fotos de comida).
Virginia Willis é outra autora vencedora do James Beard e famosa chef sulista. Ela perdeu 30 quilos “à moda antiga, comendo menos, gastando mais”, disse ela. Demorou dois anos e ela vem mantendo o peso há três.
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“As pessoas não têm prazer com comida quando a comida é o inimigo, quando a comida e o peso resultante são uma dor profunda e causam vergonha e tristeza”, disse ela, acrescentando que a comida é “uma droga ineficaz que as pessoas usam para tentar preencher algum tipo de vazio”.
Ela tomaria um desses medicamentos se tivesse de fazer tudo de novo ou para manter o peso? De jeito nenhum. “Acho que muitas vezes isso desenvolve uma atitude assim: ‘Estou tomando esta pílula e ela vai resolver o problema’, e não ‘Vou mudar meu comportamento’”, disse ela. “Minha jornada pela saúde abriu meu mundo e me ajudou com mente, corpo e espírito. Não acho que uma pílula possa fazer isso”.
Ainda não há consenso sobre como exatamente esses medicamentos funcionam. O que os especialistas sabem, disse Joan Ifland, pesquisadora e autora que estuda a dependência alimentar, é que eles paralisam a via da dopamina no cérebro, classicamente associada à capacidade de sentir prazer.
Algumas pesquisas científicas sugerem que esses medicamentos podem diminuir nossa busca por muitas outras coisas além de comer demais, como jogos de azar, álcool, cigarros, vício em pornografia e compras compulsivas. Mas pesquisas também mostram que, mesmo numa tomografia cerebral, as pessoas obesas têm reações diferentes às imagens de alimentos do que as pessoas com peso normal. O corpo obeso é diferente de um corpo com peso “normal” de uma forma que os cientistas estão só começando a entender.
Ainda assim, Ifland diz que estamos mexendo perigosamente em um motor básico do comportamento e da motivação humana. “Essas drogas estão tentando reprimir a via da dopamina com uma marreta artificial”, disse ela. “Não podemos lançar uma sombra sobre a vida das pessoas, e é isso que estamos fazendo ao barrar o caminho da dopamina”.
Branneisha Cooper descreve seu antigo eu como uma devoradora emocional e diz que o remédio “liberou tempo, porque não fico mais pensando em comida”. Ela não tem mais a comida como “cobertor de segurança – agora tenho que lidar com os problemas”.
Parece saudável. Mas, se a comida é um cobertor, é um cobertor que envolve culturas, famílias e relacionamentos – e fico um pouco preocupada de arrancar esse cobertor. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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