SÃO PAULO – O hospital A.C.Camargo, referência no tratamento de câncer, deve deixar de atender pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de dezembro deste ano. A informação, antecipada pelo jornal Folha de S. Paulo, foi confirmada nesta segunda-feira, 15, pela instituição. Entre os motivos da decisão de não renovar o contrato, estão a insatisfação com a defasagem no modelo vigente de pagamentos por consultas e procedimentos feitos pelo poder público aos prestadores de serviço particulares, afirma em entrevista ao Estadão o médico Victor Piana de Andrade, CEO do hospital.
Qual é o peso de uma possível defasagem da tabela SUS na decisão do hospital?
Nossa decisão não é deixar de atender o SUS. Nós etamos não renovando um contrato com a Prefeitura e estamos buscando alternativas para outros instrumentos de contratualização com a mesma Prefeitura de São Paulo, com o Estado de São Paulo ou, se necessário, até com outras prefeituras do Estado.
A gente só quer encontrar uma maneira equilibrada de fazer e que não arrisque a perenidade da instituição. A oncologia é uma especialidade muito cara e está se transformando cada vez mais. Tem o custo dos medicamentos, dos materiais, dos equipamentos... Tem vários equipamentos cirúrgicos e medicamentos que os custos aumentaram muito.
A inflação médica está muito acima do que a inflação usual da população e, de fato, uma tabela sem reajuste nos dificulta. A gente vem ano a ano tendo que subsidiar cada vez mais. E o nível desse subsídio não pode arriscar a subsistência, a perenidade da instituição. O diálogo com a Prefeitura de São Paulo ainda não se extinguiu. A única decisão é que o contrato atual não deve ser renovado, a gente busca contratos novos.
Inflação médica está muito acima do que a inflação usual da população
Victor Piana de Andrade, CEO do A.C.Camargo
O contrato no modelo atual com a Prefeitura estava vigente desde quando?
É um contrato de renovação anual. Antes, era um contrato que a renovação era de cinco em cinco anos. Em 2018, a gente começou a fazer um contrato de renovação anual. Anualmente, a gente discute com a Prefeitura os tipos de câncer que eles precisam encaminhar para nós e o volume. Eles têm um mapa completo de todos os prestadores que eles têm para atender a fila que eles recebem. A Prefeitura nos propõe todos os anos quais tumores o A.C.Camargo precisa ajudá-los a atender. Todos aqueles em que eles não têm uma redundância na rede a gente atende, como os tumores mais complexos.
A gente vem negociando os números e dizendo para eles: "nossa dificuldade está aumentando". Apesar de estarmos diminuindo o número (de pacientes atendidos) a cada ano, o déficit ainda continua muito alto. Temos o reajuste de salário de funcionários, de medicamentos e de materiais, como próteses, que a oncologia usa. Então, pagamos preço de mercado para comprar os itens e para pagar os colaboradores – uma enfermeira que atende o nosso SUS recebe um valor de mercado, e acabou de ser definido o Piso da Enfermagem –, mas não temos a mesma capacidade de qualificar um reajuste na receita. A gente é passivo nesse processo.
E o A.C.Camargo não é um sistema de saúde. Não tenho de dar conta de tudo que um cidadão precisa. Sou mais um prestador na rede ajudando a construir um ecossistema de cuidado com o paciente SUS, mas não tenho de suportar tudo que o governo faz. A gente vai até o nosso limite.
No caso, vocês chegaram no limite?
Não, a gente quer usar esse recurso para fazer algo melhor e maior. Hoje, é mais ou menos assim: para cada real que o SUS me paga, tenho que colocar mais R$ 4 para atender o paciente na qualidade que a gente tem aqui no A.C.Camargo. Eu acho que posso utilizar esse recurso para beneficiar muito mais gente fazendo atividades que estão mais na linha da prevenção e do diagnóstico precoce.
Eu vou estar ajudando a Prefeitura de São Paulo também, porque ela vai ter uma fila para gerenciar menor e com casos menos graves, que vão ser mais fáceis de cuidar. Estamos tentando nos colocar em outro ponto da cadeia de saúde (com a não renovação de contrato).
A oncologia é uma das especialidades mais caras e que mais evoluem em materiais e medicamentos. Dentro da oncologia, o A.C.Camargo está posicionado no extremo da alta complexidade. Os casos mais caros do sistema vêm parar na nossa instituição, mas eu recebo a mesma tabela que todos os outros prestadores. Não tem nenhuma qualificação da tabela para ser o que a gente é.
Esse modelo vigente não sofre reajuste desde quando?
Todos os anos piora. Porque eu tenho a inflação do custo e não tenho nenhum reajuste de receita. Então, se eu não fizer nada, ano que vem vai para R$ 5 o que tenho que gastar para cada real recebido. Essa conta não fica parada, ela só progride.
Ela já foi R$ 1 para R$ 2, já foi R$ 1 para R$ 3 e agora está R$ 1 para R$ 4. E vai virar R$ 1 para R$ 5, R$ 1 para R$ 10... Até quando uma instituição filantrópica como o A.C.Camargo consegue subsidiar o SUS sem arriscar sua existência? A gente subsidiou, sempre subsidiou e pretende continuar subsidiando, mas o modelo, a forma, eu tenho que decidir qual é aquela que não arrisca a existência. Quanto a isso, em vez de ficar mexendo só no volume, eu agora quero mexer na localidade, no tipo de atenção, quero levar mais conhecimento do que medicamento.
Até quando uma instituição filantrópica como o A.C.Camargo consegue subsidiar o SUS sem arriscar sua existência?
Victor Piana de Andrade, CEO do A.C.Camargo
Como foi no ano passado?
Tivemos uma receita de R$ 36 milhões o ano passado, mas o meu déficit foi perto de R$ 100 milhões. Então, o SUS como um todo custou R$ 136 milhões. R$ 100 milhões o A.C.Camargo colocou e R$ 36 milhões foi o SUS. Com esse dinheiro, pago enfermeiros e técnicos no valor de mercado, compro medicamentos no valor de mercado, tenho que fazer manutenção de equipamentos e adquirir novos medicamentos com valor de mercado. Mas eu recebo uma receita sem reajuste há mais de uma década.
Neste ano, então, já estava pior?
Sim, este ano já é diferente. Teve reajuste de 11% no salário dos técnicos e enfermeiros, teve reajuste de 10% nos medicamentos, tem reajuste de tudo. A única coisa é que não terá reajuste na receita. Isso está progredindo, e progredindo rápido pela velocidade da inflação médica, que é muito acima da inflação IPCA.
O problema é muito complexo, a solução não virá de um ente só. Não é a Prefeitura, os Estados, o governo federal, o prestador. Isso é um ecossistema que precisa se estruturar diferente. O A.C.Camargo está muito disposto a continuar nesse ecossistema, a gente só precisa entender qual é a participação dele, em que local, em que momento, com que contribuição. Que isso seja de uma forma equilibrada.
Com o modelo atual, vocês atendem quantos pacientes pelo SUS?
Hoje, tenho ao redor de 5 mil pacientes ainda matriculados. Mas a gente vem, a cada mês, identificando os pacientes que já terminaram seus tratamentos e, junto com a Prefeitura, os encaminhando para atendimento nas unidades básicas de saúde (UBSs).
A maioria absoluta já terminou seu tratamento, mas tem alguns que tiveram tratamentos ou muito recentemente ou ainda tem tratamento planejado. Neste caso, estamos discutindo se pode terminar o tratamento e encaminhar em seguida, ou encaminhar para uma instituição que tem plenas condições de dar continuidade ao tratamento. Ninguém vai ficar desassistido. Nós vamos coordenar isso com a Prefeitura, com a instituição que receberá esses pacientes, nossos médicos vão conversar com os médicos de lá.
O A.C.Camargo ainda está recebendo novos pacientes ou isso deixou de acontecer?
Neste ano a gente tem um contrato ainda para receber 96, e vamos cumprir o contrato plenamente. Isso veio reduzindo nos últimos anos para poder encontrar um equilíbrio. No ano anterior (2021), eram 256. Esse ano a gente olhou para os números, para a inflação médica, e decidiu fazer 96, em vez de 256. O custo do paciente não é só no ano que ele entra. O paciente fica conosco cinco anos às vezes, dez anos. Mesmo um paciente que já está há três, quatro anos na instituição pode ter um consumo muito alto de medicamentos, materiais. Nunca é só do ano.
O acúmulo de pacientes é que desafia a sustentabilidade da instituição. Eu estou lidando hoje com pacientes que entraram em anos anteriores, onde recebíamos ao redor de mil pacientes por ano, todos os anos. Tem muitos que são dessa época. Entrar 96 é um pedacinho da solução (para diminuir o déficit), mas a verdade é que o acumulado custa muito também. A gente tem que encontrar uma saída boa para a Prefeitura, para os pacientes e para o A.C.Camargo.
Alguns pacientes já foram transferidos?
Estamos trabalhando com a Prefeitura desde o começo do ano. Para aquelas que o câncer pode ser considerado curado ou que já terminou o tratamento, a gente está transferindo para a unidade básica de saúde, porque não precisa de um hospital neste momento. Isso estamos fazendo com apoio da Prefeitura, identificando qual é a melhor UBS próximo da casa dele.
O A.C.Camargo está disposto a qualificar também os profissionais da UBS. Esses 5 mil que estão conosco ou ainda estão em vigência de tratamento, ou terminaram o tratamento muito recentemente. Esses vão precisar ir para uma estrutura terciária, não é para unidade básica de saúde. Estamos, junto com a Prefeitura, desenhando esse plano.
Um paciente com câncer de mama vai ser melhor atendido na instituição que tem vivência para isso. O paciente com câncer de cabeça e pescoço é melhor ir para outra instituição. Estamos personalizando caso a caso para entender qual é a melhor estrutura para cuidar bem desse paciente após o A.C.Camargo. Obviamente, vamos estar sempre à disposição para dar o suporte necessário de conhecimento, de tudo, para cada paciente e instituição de destino.
No caso, o senhor mencionou que A.C.Camargo recebia os pacientes com nível de complexidade maior. Tem algum hospital que faça um serviço compatível com esse para pacientes do SUS?
A Prefeitura tem bons hospitais na rede: o IBCC (Instituto Brasileiro de Controle do Câncer), o Instituto Arnaldo Vieira de Carvalho, o Vila Santa Catarina, que é até um hospital administrado pelo (Hospital Israelita Albert) Einstein. Então, temos competência na rede, agora a gente vai ter que entender qual é o melhor destino para cada paciente. E o A.C.Camargo se coloca à disposição, se precisar fazer um tratamento específico para algum paciente, a gente pode continuar fazendo, mesmo sem o contrato.
A gente quer prestar serviço para a Prefeitura e o Estado. Não queremos deixá-los sem essa técnica que só nós fazemos. Agora, para isso, precisa ter um contrato específico, diferente do atual. O atual diz que, uma vez o paciente vindo para cá, temos que ficar com ele até o fim do tratamento oncológico. Esse modelo de contrato tem sido desequilibrado para nós. Técnicas específicas, como um transplante de medula óssea ou uma baquiterapia oftálmica, tem alguns tratamentos que só o A.C.Camargo faz. E queremos continuar fazendo.
A defasagem da tabela SUS parte do Ministério da Saúde ou da Prefeitura?
Entendo que a Prefeitura só replica a tabela definida pelo Ministério. O recurso é passado do Ministério para a Prefeitura e a Prefeitura faz um repasse para nós, mas não é ela que define a tabela. Atendemos o SUS desde que o SUS existe. E uma grande parte dos procedimentos SUS está sem reajuste há mais de uma década. Outros tiveram reajuste mais recentemente, como, por exemplo, a tabela de radioterapia, que foi reajustada há poucos anos. Mas, na conta global, o reajuste é muito aquém da inflação médica.
Mesmo reduzindo o volume da pacientes que entra, não vemos um equilíbrio proporcional na conta financeira. Noventa e seis pacientes por ano já não nos representa mais. O A.C.Camargo deveria fazer muito mais do que 96 por ano. E, ainda assim, a conta financeira não se equilibra. Então, essa variável volume não é a que soluciona as coisas, a gente vai ter de agir de outra forma.
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