A inteligência artificial pode aumentar a eficiência dos serviços de saúde?

A tecnologia raramente conseguiu fazer isso; mas, agora, as empresas estão investindo pesado em sistemas que de fato podem mudar o jogo

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Por The Economist
Atualização:

Se você quiser ver uma estrutura de proteína super sofisticada, peça a uma inteligência artificial. Se você precisar muito de um aparelho de fax, tente um consultório médico. Ele vai estar em algum canto, debaixo de uma prancheta com um monte de formulários de papel. Não acontece com todos os médicos, nem com todos os sistemas de saúde, mas acontece o suficiente para abrir um sorriso irônico em muita gente: a transformação digital do setor tem sido, na melhor das hipóteses, irregular.

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Os economistas acham que a tecnologia tem sido responsável por algo entre 25% e 50% do crescimento das despesas com saúde nos países da OCDE ao longo dos últimos 50 anos – crescimento que tem visto a cota do setor no PIB crescer implacavelmente. Em muitos desses países, a tecnologia conseguiu muito. E, no entanto, após décadas de esforços dispendiosos, ainda são muitas as histórias de sistemas de incompatíveis, violações de confidencialidade e registros em papel que precisam ser mantidos em paralelo com registros de saúde eletrônicos. Existe algum motivo para pensar que a IA realmente vai resolver tudo isso?

Existe. E isso se deve, pelo menos em parte, à dimensão do problema. Os Estados Unidos gastaram 4,5 trilhões de dólares em cuidados de saúde em 2022, consideravelmente mais do que seria esperado em países semelhantes, e os custos administrativos representaram 30% do excedente. Oportunidades de trilhões de dólares podem atrair a atenção de empresas muito grandes, como os gigantes da tecnologia americanos. E essas empresas pensam que seus grandes modelos de linguagem (LLMs, na sigla em inglês) e outros grandes sistemas de aprendizagem auto-supervisionada oferecem novas ferramentas particularmente adaptadas para a tarefa.

O fato de as maiores empresas da IA verem a assistência médica como um lugar para competir é um verdadeiro motivo de otimismo.

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Para tirar o máximo de proveito da inteligência artificial nos serviços de saúde, as instituições precisam mudar bastante.  Foto: Timo Lenzen/The Economist

Entre os empreendimentos de saúde do Google está o Med-Palm2, um LLM específico que está sendo desenvolvido para responder a perguntas sobre cuidados médicos e resumir informações durante transferências de pacientes ou mudanças de turno de equipe. O investimento da Amazon na Anthropic, que fornece um assistente de IA chamado Claude, teve como um dos objetivos reforçar o que a empresa pode oferecer em cuidados de saúde. Os gigantes chineses também estão interessados. Em 2022, um relatório da consultoria McKinsey argumentou que o uso de IA para prever resultados de diagnóstico e embasar decisões clínicas poderia criar cerca de 5 bilhões de dólares em valor econômico na China.

E então vem a Microsoft, a empresa de tecnologia mais interessada no crescimento por meio de aquisições. Em 2021, a Microsoft pagou 19,7 bilhões de dólares pela Nuance, empresa que tem sede em Burlington, Massachusetts, e fabrica uma IA que ajuda os médicos em tarefas administrativas, como anotações clínicas e registros de saúde eletrônicos.

A transcrição de voz por IA oferecida pela Nuance e outras empresas, como o Healthscribe da Amazon, é outro grande negócio. Harpreet Sood, médico que foi diretor de informações clínicas do NHS, o sistema de saúde pública do Reino Unido, diz que a tecnologia mudou tudo para ele. Ela economiza de quatro a seis minutos por paciente, o que significa duas a três horas por dia. Seus pacientes notaram que agora ele olha mais para eles e menos para a tela – o que é melhor para todo mundo.

Evolução sem fim

Existem muitos outros caminhos para aumentar a eficiência – sobretudo nos Estados Unidos, que não é apenas o maior mercado para cuidados de saúde do mundo, mas também um mercado particularmente ineficiente.

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Uma forma bem conhecida de tentar melhorar a eficiência e os resultados é a criação de “centros de comando” hospitalares. É algo como um sistema de controle de tráfego aéreo em que um painel de telas fornece informações atualizadas sobre métricas importantes, como disponibilidade de leitos, uso de recursos e status dos pacientes em todo o hospital. Partes desse conjunto são replicadas em tablets e dispositivos móveis usados pelas equipes das enfermarias. Esses sistemas não apenas conseguem ver os problemas à medida que eles acontecem, mas também podem antecipar os gargalos que virão.

Esses sistemas agora estão em mais de 200 hospitais do mundo todo. O centro de comando do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, agilizou a transferência de pacientes entre locais em 60%, reduziu o tempo de espera para tratamento de emergência em 25% e diminuiu o tempo em leitos pós-cirúrgicos em 70%. O Hospital Geral de Tampa relatou um ganho de eficiência no valor de US$ 40 milhões desde o lançamento de um centro de comando que usa 20 aplicativos de IA.

Outra visão do futuro impulsionada pela IA passa por manter as pessoas fora dos hospitais – ou, vendo pelo outro lado, levar os hospitais até às pessoas. O Reino Unido, que tem um número relativamente baixo de leitos hospitalares, tem se mostrado ávido em adotar “enfermarias virtuais”, que permitem que os pacientes sejam transferidos do hospital para se recuperarem em casa com a ajuda de dispositivos de monitoramento, como um tablet ou um medidor de pressão arterial. Em 2023, o Reino Unido atingiu 10 mil leitos em enfermarias virtuais. Até o momento, esses sistemas não apresentam tantos benefícios quanto poderiam. Um estudo recente concluiu que são mais caros do que o tratamento hospitalar. Mas as IAs podem ajudar.

A Doccla, uma das várias empresas britânicas de tecnologia de enfermarias virtuais, afirma que está trabalhando para integrar os LLMs a seu fluxo de trabalho clínico. A ideia é reunir dados de dispositivos vestíveis, registros de pacientes e transcrições de chamadas em um sistema que forneça um “copiloto” que possa manter o prestador de cuidados de saúde informado sobre o que está acontecendo com os pacientes. Essas capacidades vão ajudar não apenas nas enfermarias virtuais, mas em todo o sistema. A expectativa é que elas permitam que os médicos recebam informações vitais que talvez estejam ocultas à primeira vista.

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Mas, para que isso aconteça, os sistemas terão de se adaptar, o que pode ser difícil. Robert Wachter, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, e Erik Brynjolfsson, de Stanford, argumentaram que os seres humanos geralmente são incapazes de implementar as mudanças profundas na “estrutura organizacional, na liderança, na força de trabalho ou no fluxo de trabalho que são necessárias para aproveitar todas as vantagens das novas tecnologias, pelo menos no começo”.

Vejamos, por exemplo, a descentralização da assistência médica. Como a IA promove uma melhoria na tomada de decisão, sua tendência provavelmente será afastar os cuidados do centro e direcioná-los para as margens: possibilitar mais diagnósticos na clínica geral, talvez por meio de instrumentos mais inteligentes; transferir algumas decisões para as farmácias; aumentar o acesso dos pacientes ao aconselhamento e acompanhamento em casa. Mas os pacientes muitas vezes têm certas expectativas sobre consultar um médico pessoalmente ou ter um hospital por perto.

Pode ser que os países que ainda estão desenvolvendo seus sistemas de saúde tenham mais chance de “reimaginar o trabalho” do que aqueles onde as instituições e os pacientes já estão acostumados com seu jeito de fazer as coisas. O Dr. Sood acha que os países com infraestruturas de saúde menos estabelecidas, mas com boa conectividade digital, podem liderar o caminho da IA – e aponta para a Índia, o Quênia e a Indonésia. Estas nações talvez sejam mais capazes de construir seus sistemas em torno da tecnologia que os pacientes já utilizam, por exemplo prestando cuidados em plataformas como o WhatsApp.

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Não se deve considerar, porém, o que a IA oferece em termos de eficiência seja coisa garantida. Com certeza haverá projetos prometendo demais e cobrando demais. E haverá uma necessidade constante de avaliação, supervisão e atualização. Não é só que as IAs possam “alucinar”. Algumas das vantagens que as empresas querem que seus sistemas ofereçam – como mantê-los a par das pesquisas de uma forma que os médicos muitas vezes não conseguem – exigem que os sistemas mudem ao longo do tempo, o que significa reciclagem e recertificação para garantir a eficácia e a segurança.

Mas, mesmo que as atualizações e mudanças constantes tragam desafios, sua vantagem é evidente. E as mudanças que as instituições precisam fazer para se adaptarem às novas tecnologias vão ficar mais fáceis se essas tecnologias também puderem mudar. Essa capacidade de impulsionar e facilitar mudanças é uma das grandes vantagens que a IA deve, no seu melhor, ser capaz de oferecer.

Nenhuma dessas vantagens virá sem dificuldades. Tirar o máximo da IA vai exigir que as instituições que têm dificuldade com mudanças de fato mudem bastante. Será preciso colocar os reguladores sob a devida pressão para garantir a segurança diante de novos desafios em termos do escopo da tecnologia e da velocidade com que ela muda. E serão necessários incentivos econômicos que concretizem o potencial da tecnologia para poupar custos e vidas. Mas, se as pessoas conseguirem fazer essas mudanças e reformas, as máquinas vão retribuir generosamente. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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