'A maioria das pessoas não sabe o que está comendo', diz autora inglesa

Para Bee Wilson, tendência global de aumento do sobrepeso - verificada também no Brasil - tem a ver com profusão de 'calorias vazias comercializadas em belos rótulos'

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Em um mundo com pelo menos dois bilhões de pessoas acima do peso - ou dez vezes a população de um país como o Brasil -, a autora britânica Bee Wilson atribui a causas econômicas, sociais e psicológicas o avanço dessa tendência global. O planeta tem hoje cerca de 500 milhões de pessoas obesas e, no Brasil, o número chegou ao maior porcentual, segundo pesquisa recente do Ministério da Saúde. Por aqui, uma em cada cinco pessoas sofre da doença. O número cresceu 67,8% de 2006 a 2018. 

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Para Bee Wilson, no entanto, o resultado tem menos a ver com "escolhas erradas" e mais com mudanças radicais nos alimentos disponíveis em um curto espaço de tempo. De acordo com a britânica, trata-se de uma responsabilidade compartilhada.  

"Estamos vivendo e comendo em um mar de calorias vazias, que são comercializadas para nós com belos rótulos e slogans inteligentes. Muitas pessoas - inclusive no Brasil - são desnutridas e obesas: carentes de vitaminas apesar de ingerir excesso de calorias", afirmou a escritora e historiadora ao Estado

''Obesidade nunca foi tão comum até que as grandes empresas multinacionais de alimentos entrarasseme começassema comercializar agressivamente seus produtos', diz a autora. Foto: Raymond McCrea Jones/The New York Times

"A maioria das pessoas simplesmente não sabe o que está comendo", disse ela, que lançou em maio o livro 'A maneira como comemos agora: como a revolução alimentar transformou nossas vidas, nossos corpos e nosso mundo'. 

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As declarações de Bee Wilson vêm em um momento em que relatórios recentes da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/ONU) mostram que se, de um lado, a obesidade e o sobrepeso são um problema global grave, do outro ainda há pelo menos 820 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. 

Abaixo, a entrevista.

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde do Brasil mostrou que quase 20% da população brasileira é hoje obesa. O aumento da obesidade é uma tendência em muitos outros países, embora tenhamos mais acesso à informação agora do que nunca. Por que você acha que isso está acontecendo?

O que você diz sobre ter acesso à informação é muito interessante. Muitas pessoas sugeriram que a resposta à obesidade moderna é "melhor informação" ou "melhores escolhas" dos indivíduos. Mas eu não acredito que a obesidade seja uma questão de informação ruim. Estamos vivendo em um mar de informações sobre comida. O problema é que também estamos vivendo e comendo em um mar de calorias vazias, que são comercializadas para nós com belos rótulos e slogans inteligentes.

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Os seres humanos sempre comeram a comida que estava disponível para eles. A obesidade é uma resposta perfeitamente natural a um ambiente alimentar moderno inundado de excesso de calorias, particularmente na forma de bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados. O que está acontecendo no Brasil hoje é exatamente o mesmo padrão que temos visto em todo o mundo. 

A obesidade não aconteceu porque as pessoas no Brasil começaram a fazer "más escolhas". Aconteceu porque a natureza da comida disponível para os brasileiros mudou radicalmente em um espaço de tempo muito curto. A obesidade é uma questão complexa e tem muitas causas psicológicas, sociais e econômicas. Mas a obesidade nunca foi tão comum no Brasil até que as grandes empresas multinacionais de alimentos entraram e começaram a comercializar agressivamente seus produtos. 

Acho muito triste que muitas pessoas se culpem pela obesidade e sintam sentimentos intensos de culpa e vergonha quando realmente deveríamos estar olhando para o nosso sistema alimentar e questionando por que permitimos que ele se tornasse tão disfuncional. O Brasil é um caso interessante porque a pesquisa de Fumiaki Imamura - um cientista que entrevistei para o meu livro - sugere que os brasileiros comem uma quantidade anormalmente alta de alimentos "saudáveis", como frutas e vegetais, em comparação com outros países. 

Mas o problema é que seu consumo de alimentos "não-saudáveis", ricos em açúcar, gorduras e sal está aumentando rapidamente. Os brasileiros realmente consomem menos açúcar - como açúcar - do que nos anos 1990. Mas consomem alimentos muito mais processados, refrigerantes, lanches e refeições prontas. O consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil aumentou de 80kg por pessoa por ano em 1999 para 110kg por pessoa em 2013. 

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Bee Wilson é autora de cinco livros sobre alimentação e hábitos alimentares Foto: Tom Runciman/Reprodução

A sra. costuma dizer que nossas dietas hoje em dia são ricas em calorias, mas pobres em nutrientes. Como poderíamos mudar esse paradigma?

Boa pergunta. Não será fácil mudar porque toda a estrutura do nosso sistema de agricultura foi projetada após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para garantir que as populações nunca voltem a passar fome depois da escassez da guerra. Este foi um objetivo admirável na época e este sistema fez um ótimo trabalho de diminuir o fardo da fome no mundo.

O desafio agora é como esse sistema pode ser modificado para maximizar a qualidade dos alimentos em vez da quantidade. Muitas pessoas - inclusive no Brasil - são desnutridas e obesas: carentes de vitaminas apesar de ingerir excesso de calorias. Este é um sinal de que nossa comida está falhando em um nível muito básico.

Precisamos voltar à agricultura e descobrir como a terra pode nos fornecer os nutrientes de que nosso corpo precisa. Parte da resposta será tentar voltar a comida mais específica do lugar em que vivemos. No Brasil, você tem uma incrível biodiversidade de produtos naturais da Amazônia com mais de 300 tipos diferentes de abelhas produzindo mel, por exemplo. No entanto, essa diversidade não se reflete nos alimentos que a maioria das pessoas come. Precisamos voltar à ideia de que a comida deve ser algo diverso e nutritivo.

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Bee Wilson diz que aumento da obesidade está ligado a mudanças radicais nos alimentos disponíveis em um espaço de tempo muito curto Foto: Victor Ruiz Caballero/The New York Times

A sra. já disse que o nome "barras de proteína" é um enigma porque elas se parecem mais com "barras de açúcar". Acredita que há falta de informações precisas sobre os alimentos que ingerimos diariamente?

Sim, acredito que, em um nível muito básico, a maioria das pessoas simplesmente não sabe o que está comendo. Porque compramos muito dos nossos alimentos embalados. Nos tornamos muito confiantes nas palavras do rótulo, que é um presente para a indústria de alimentos porque eles podem fazer todo tipo de alegações malucas sobre a comida - como 'contém grãos antigos' ou 'proteína impulsionada'. E nós acreditamos neles. 

Acho tão triste que barras de proteína para tantas pessoas se tornaram um modelo de alimentação saudável. Fiquei chocada ao descobrir que existem nada menos que 4.000 tipos diferentes delas à venda nos EUA. Este é um sinal de que as pessoas estão muito confusas sobre comida. 

Parece que queremos nos negar prazer e estamos muito presos ao açúcar, mas não importa o que escolhemos no supermercado moderno, acaba sendo mais açúcar. Para mim, uma barra de proteína é o oposto do que uma boa refeição deve ser. Elas são algo que comemos por nutrientes e não por sabor. Nós as comemos sozinhos, isoladamente, em fuga, em vez de em uma mesa com amigos ou familiares. Imagine comer uma barra de proteína em uma mesa com uma faca e um garfo. 

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Autora diz que a diversidade de alimentos ao redor do mundo não se reflete no que as pessoas comem Foto: Dolly Faibyshev/The New York Times

A sra. diz que as escolas e o governo devem trabalhar mais para mudar nossos hábitos alimentares e estimular dietas mais saudáveis. Como as instituições devem trabalhar juntas para tentar diminuir a obesidade?

Pouquíssimos lugares no mundo até agora conseguiram reverter a tendência para níveis crescentes de obesidade. Amsterdã, na Holanda, é uma delas. A obesidade infantil caiu cerca de 12% em cinco anos. A mudança ocorreu por meio de muitas iniciativas diferentes trabalhando ao mesmo tempo - desde tornar a água a única bebida nas escolas até a proibir a comercialização de 'junk food'  em eventos esportivos. Além disso, passaram a a trabalhar com empresas como o McDonald's para limitar os tipos de alimentos vendidos a crianças. 

Uma das lições importantes de Amsterdã foi que as coisas começaram a melhorar quando as pessoas pararam de dizer que "a obesidade infantil é o problema de outra pessoa" e começaram a dizer que "é uma responsabilidade compartilhada".

O que precisamos fazer é uma transformação radical na maneira como organizamos nossas lojas de alimentos, nossas fazendas, nossas escolas e nossas cidades. Tudo de uma vez. Precisamos nos reconectar com a comida que comemos. O problema é que, para a maioria dos governos em todo o mundo, melhorar a alimentação ainda não é visto como prioridade máxima.

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Algo que me dá esperança é um projeto que ajudei a montar no Reino Unido chamado TastEd, abreviação de Taste Education (www.tasteeducation.com). Descobrimos que muitas crianças nunca tinham experimentado um tomate cru em suas vidas ou nunca tinham tomado em um pêssego. 

Nas aulas da TastEd, trazemos produtos frescos para a sala de aula e permitimos que as crianças usem todos os sentidos para explorá-lo. É maravilhoso ver a rapidez com que os gostos de uma criança podem mudar quando eles têm a chance. Nós começamos a ver as crianças tomando seu primeiro sabor de limão, provando uma ameixa ou uma cenoura. E começando a saborear algo que antes eles 'tinham medo'. O TasteEd não pode ser a resposta completa para o problema das dietas modernas. Mas para mim, parece um começo.

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