Ações contra planos de saúde crescem 33%; STF e CNJ estudam medidas para enfrentar judicialização

Presidente do Supremo promete procurar equacionar alta litigiosidade no setor; operadoras atribuem aumento de processos à lei de 2022 que tornou o rol de coberturas exemplificativo

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Foto do author Fabiana Cambricoli
Foto do author Weslley Galzo
Por Fabiana Cambricoli, Weslley Galzo e Álvaro Justen
Atualização:

O número de novas ações contra planos de saúde cresceu quase 33% em apenas um ano no País e a alta litigiosidade no setor já chama a atenção até do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, que, junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estuda iniciativas para lidar com a questão.

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O número de processos movidos contra operadoras chegou a 234,1 mil em 2023, segundo dados do CNJ – média de uma nova ação movida a cada dois minutos. O número é 32,8% maior do que as 176,3 mil demandas judiciais contra convênios médicos de 2022, e a alta é muito superior à observada nos processos contra o Sistema Único de Saúde (SUS) no mesmo período, quando os pedidos judiciais por tratamentos e medicamentos na rede pública aumentaram 11,8%. O gasto das operadoras com despesas judiciais chegou a R$ 5,5 bilhões no ano passado, valor 37% maior do que o de 2022.

As operadoras dizem que o aumento expressivo no número de ações não está relacionado a falhas na prestação de serviço, mas, sim, à aprovação da lei 14.454/2022, que determinou que os planos de saúde devem cobrir procedimentos não incluídos no rol de cobertura definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo as empresas, isso abriu brecha para os beneficiários demandarem todo tipo de tratamento na Justiça, independentemente da indicação clínica e evidências científicas (leia mais abaixo).

Embora apenas um quarto da população brasileira tenha plano de saúde, o número de demandas na Justiça contra planos de saúde já supera o de ações contra o Sistema Único de Saúde em quatro unidades da federação: São Paulo, Bahia, Pernambuco e Mato Grosso do Sul, segundo levantamento feito pelo Estadão com base em dados do CNJ.

No último dia 10 de junho, o presidente do Supremo destacou, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que a saúde – tanto suplementar quanto pública – é uma das três áreas, ao lado da tributária e trabalhista, nas quais a litigiosidade alcançou patamar tão alto que cria um cenário de insegurança jurídica. Ele sinalizou que estuda medidas a serem adotadas durante sua gestão na presidência do Supremo e do CNJ para equalizar a judicialização nesses setores.

Procurado para comentar quais iniciativas são estudadas no âmbito do STF, Barroso afirmou, por meio de sua assessoria, que o Judiciário têm “desenvolvido ações para compreender a litigiosidade em algumas áreas e enfrentá-las”. “Já avançamos significativamente no tocante às execuções fiscais, com decisões do STF, resolução do CNJ e acordos com Estados e Municípios. [...] No próximo semestre, vamos procurar equacionar a litigiosidade trabalhista e, também, a que envolve a área de saúde. Quando o STF tiver resultados mais concretos, irá divulgar”, afirmou, sem dar mais detalhes. Ele não atendeu ao pedido de entrevista da reportagem.

Interlocutores do ministro ouvidos pelo Estadão afirmaram que ele deve conduzir a questão principalmente por meio do CNJ, mas destacaram que há pelo menos duas grandes ações em tramitação no Supremo que, quando julgadas, podem afetar diretamente a judicialização da saúde suplementar.

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A mais importante delas é uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7265) que questiona a lei 14.454. Sancionada em setembro de 2022, ela prevê que a lista - ou rol - de procedimentos da ANS deve servir apenas como uma referência com exemplos de tratamentos cobertos, mas que a cobertura dos planos não se limita a ela. Com isso, o rol passou a ser considerado exemplificativo e as operadoras passaram a ser obrigadas a cobrir tratamentos indicados por especialistas mesmo que eles não estejam listados.

A lei foi formulada e aprovada pelo Congresso como uma reação a uma decisão de junho daquele mesmo ano do Superior Tribunal de Justiça que ia em outra direção - a de tratar o rol da ANS como taxativo, ou seja, somente os procedimentos que integrassem a lista deveriam ser custeados, com algumas poucas exceções. A decisão dos ministros do tribunal gerou forte repercussão de associações de pacientes e entidades de defesa do consumidor, usada como combustível por parlamentares para a proposição e aprovação acelerada da lei 14.454, que, na prática, anulou os efeitos da decisão do STJ.

Dois meses após a sanção da lei, a ADI 7265 foi proposta no Supremo pela União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas), uma das entidades que representa as operadoras. Ela é apoiada pelas demais organizações do setor, como Federação Nacional da Saúde Suplementar (FenaSaúde) e Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF e do CNJ Foto: Andressa Anholete/STF

Na ação, a Unidas argumenta que a lei deve ser considerada inconstitucional porque vai contra o caráter complementar da saúde privada previsto na Constituição ao obrigar as operadoras a seguirem regras diferentes das do SUS na oferta de tratamentos ou medicamentos. Isso porque a lei em questão prevê que as operadoras devem custear tratamentos fora do rol contanto que haja comprovação de eficácia da terapia ou se existirem recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (Conitec) ou de outro órgão de avaliação de tecnologias de renome internacional.

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“Não se pode estabelecer para a iniciativa privada critérios diversos, mais elásticos, ou exigir das operadoras de planos privados de assistência à saúde mais do que se impõe ao próprio Estado”, argumentam os autores da ação.

A Unidas sustenta ainda que a lei contraria jurisprudência do próprio Supremo “no que se refere à necessária autonomia das agências reguladoras na definição das políticas de saúde e econômicas mais adequadas ligadas ao setor regulado”, referindo-se ao papel da ANS na definição do rol de procedimentos obrigatórios.

A ADI já está pronta para ser colocada em votação no plenário do Supremo, mas ainda não há data marcada para a votação. Caso o Supremo atenda ao pleito da ADI e considere a lei 14.454 inconstitucional, será mais uma queda de braço entre o tribunal e o Congresso, que encabeçou a proposta de legislação e a aprovou de forma acelerada diante da comoção popular da época.

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Outro processo que tramita no Supremo e teria repercussão nas decisões judiciais contra planos de saúde é o recurso extraordinário (RE) 630852, que discute a aplicação ou não do Estatuto do Idoso a contratos de plano de saúde firmados antes do início da vigência da lei que criou o estatuto, em 2003. Na prática, o RE vai definir se os planos contratados antes de 2003 podem ou não ter reajuste em função da idade – o que ficou vedado pela legislação aprovada naquele ano.

O recurso se arrasta desde 2010 e, de acordo com fontes do STF, seu eventual julgamento teria repercussão sobre ao menos 4 mil ações judiciais sobre o tema no País.

Enquanto a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7265 e o Recurso Extraordinário 630852 não são apreciados pelo Supremo, o Judiciário adota medidas no âmbito do CNJ para tentar equacionar a judicialização na área da saúde. No final do ano passado, o conselho aprovou uma resolução que instituiu a Política Judiciária de Resolução Adequada das Demandas de Assistência à Saúde, que contempla uma série de ações para os próximos seis anos, entre elas iniciativas para dar respaldo técnico-científico para as decisões dos juízes por meio dos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-JUS).

Esses núcleos fornecem aos juízes pareceres formulados por médicos e outros especialistas sobre o quadro do paciente que moveu a ação e têm como objetivo embasar a decisão do magistrado, já que ele não tem expertise em Medicina. O NAT-JUS nacional, no entanto, está disponível apenas para processos da saúde pública, mas a ideia do CNJ é ampliá-lo.

“Um dos objetivos primordiais da Política Judiciária, além da adoção de métodos consensuais de solução de conflitos, é a ampliação desse assessoramento técnico à magistratura, com a ampliação do NAT-JUS nacional para a saúde suplementar”, diz Daiane Nogueira, conselheira do CNJ e supervisora do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), instância criada em 2010 justamente para monitorar e propor políticas judiciárias diante da alta litigiosidade na área. Ela diz que o conselho está trabalhando para que a política de ampliação do NAT-JUS comece a ser implementada ainda neste ano.

Apesar de a alta judicialização na saúde não ser um fenômeno novo, a alta de mais de 30% nas ações no último ano na saúde suplementar “acendeu um alerta” no Fonajus, diz a conselheira. “Quando a gente observa esse aumento em um ano acende o alerta no sentido de que é necessário fazer um maior acompanhamento, tentar identificar quais são as situações em que está ocorrendo essa judicialização”, afirma a supervisora do fórum.

Ela diz que o CNJ está elaborando uma pesquisa focada nos processos contra planos de saúde para entender quais são os tratamentos mais demandados, as doenças mais recorrentes dos pacientes que movem as ações e as diferenças regionais na judicialização.

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“É importante destacar que a judicialização em si não é um problema, o direito à saúde é garantido na Constituição Federal e cabe ao Judiciário garantir a concretização desse direito fundamental. O problema está quando essa judicialização entra em um espaço de excesso de litigiosidade e, eventualmente, é utilizada não para garantir o direito à saúde, mas para demandas que não se baseiam em evidências científicas ou para um excesso de pleitos”, diz Daiane.

Planos de saúde dizem que lei do rol levou a aumento de demandas judiciais

As operadoras, por sua vez, dizem que o aumento expressivo no número de ações se deve principalmente à aprovação da lei 14.454/2022, que abriu brecha para os beneficiários demandarem todo tipo de tratamento na Justiça, independentemente da indicação clínica e evidências científicas.

“Essa discussão do rol taxativo versus exemplificativo trouxe muitos problemas. Não existe lista aberta infinita em nenhum setor porque os recursos são limitados. (A lei) criou uma expectativa na sociedade e uma abertura que o sistema não comporta”, diz Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde.

Ela afirma que muitas das demandas judiciais são por tratamentos que não estão no rol da ANS ou para indicações que não seguem os protocolos clínicos. “O Zolgensma (remédio para Atrofia Muscular Espinhal que custa mais de R$ 5 milhões) tem uma diretriz para ser indicado para crianças de até seis meses, mas já vimos pedidos do medicamento para pacientes de 19 anos”, exemplifica.

Para Gustavo Ribeiro, presidente da Abramge, o cenário criado pela lei do rol exemplificativo cria insegurança jurídica e ameaça a sustentabilidade do setor. Ele lembra que três grandes empresas internacionais do mercado de seguros – United Health Group (UHG), Allianz e Sompo – deixaram de operar no setor saúde no Brasil.

“A Allianz é a maior seguradora da Alemanha. A Sompo, uma das maiores da Ásia. A única coisa que explica a saída dessas gigantes do Brasil é a insegurança jurídica, porque elas não enfrentam situação semelhante em lugar nenhum do mundo”, afirma.

Os representantes do setor alegam ainda que existe uma “advocacia predatória” que lucra com o excesso de demandas judiciais. “Há vídeos no TikTok de advogados falando que a pessoa pode contratar um plano de saúde e que, em 24 horas, ele consegue uma liminar autorizando qualquer tipo de cirurgia”, diz Ribeiro.

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