Ainda estou internando pacientes com covid, diz David Uip, cinco anos após a doença chegar ao Brasil

Infectologista, que comandou o combate à doença em SP, ressalta que a covid segue causando quadros graves e mortes; em entrevista, ele discute as lições que não aprendemos com a pandemia

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Foto do author Leon Ferrari
Foto: Governo do Estado de São Paulo
Entrevista comDavid Uipdiretor nacional de Infectologia da Rede D’Or e reitor do Centro Universitário FMABC

Era 26 de fevereiro de 2020 quando o Ministério da Saúde, à época comandado por Luiz Henrique Mandetta, anunciou que o Brasil havia registrado o primeiro caso de covid-19. Tratava-se de um paciente de 61 anos, que havia voltado recentemente da Itália, país que atraía a atenção do mundo todo devido à explosão de infecções. O homem deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein no dia 25.

Naquele momento, havia a esperança de que, por não estarmos no inverno, como os outros países que viam a curva de confirmados ascender rapidamente, o contágio não fosse tão acelerado e tivéssemos mais tempo para nos preparar. Não foi o que ocorreu. Ao final de março, o País já somava 1 mil casos. No início de abril, ultrapassou 10 mil. E nos primeiros dias de maio, 100 mil.

O infectologista David Uip, diretor nacional de infectologia da Rede D’Or e reitor do Centro Universitário FMABC, foi considerado alarmista por alguns colegas ao estimar que de 1% a 10% da população brasileira poderia ser infectada pelo vírus. Atualmente, conforme dados atualizados pelo Ministério da Saúde no último dia 20 de fevereiro, o País acumula mais de 39 milhões de casos confirmados e 715 mil mortes.

O infectologista David Uip chefiou o Centro de Contingenciamento do Coronavírus em São Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Uip lembra muito bem do final de fevereiro de 2020. Ele foi chamado pela família daquele primeiro paciente para avaliar o seu estado de saúde – e tranquilizou a todos, afinal, o homem estava em boas mãos. Pouco depois, em uma Quarta-Feira de Cinzas, recebeu uma ligação do então governador de São Paulo João Dória, que pedia ajuda na criação, e depois na coordenação, do Comitê de Contingenciamento para Emergências para a covid-19.

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“Para você ter ideia, nos primeiros casos, recorremos a medicamentos que nós não usávamos, aumentamos as doses, até remédios contra aids foram testados na covid. Víamos as pessoas morrerem sem ter qualquer possibilidade de um tratamento específico, o que gerava incerteza e desesperança. Passamos de todos os limites para tentar salvar a vida de muitas pessoas”, lembra ele, cinco anos depois.

Em meio a esse cenário – do qual tinha uma visão, entre muitas aspas, privilegiada – ele próprio enfrentou a doença. Ainda era março de 2020. “Fiquei doente, fiquei ruim, e quando voltei, dei meu testemunho na coletiva do governo, sobre o risco que corri e o medo que senti. Você ia dormir e não sabia se acordava.”

Hoje, graças às vacinas, os números de casos e mortes diários estão muito abaixo dos observados no início da crise sanitária, mas Uip frisa que o coronavírus está longe de ser um problema resolvido. Em primeiro lugar, porque continuamos registrando diagnósticos e óbitos. Conforme mostrou o Estadão, o Brasil contabilizou 57.713 casos da doença nas três primeiras semanas de 2025 — o maior registro dos últimos dez meses. Além disso, uma parcela considerável convive com as sequelas da covid longa ou viu o quadro se transformar em um gatilho para outras doenças. “A covid mudou a história do mundo. Não só do ponto de vista epidemiológico, mas em termos de resposta imune inflamatória”, analisa Uip.

Ainda estou internando pacientes com covid, principalmente os que não completaram o esquema vacinal e os não vacinados

David Uip, infectologista

Confira, a seguir, a entrevista completa com o médico, que destaca as lições que não aprendemos com a pandemia.

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Naquele dia em que foi registrado o primeiro caso no Brasil, o senhor imaginava que a covid tomaria essa proporção toda?

O (então) governador João Doria me ligou, era uma Quarta-Feira de Cinzas, e pediu para que eu montasse um grupo de experts para ajudar o governo do Estado de São Paulo. Em 48 horas, montei o grupo de contingência.

Começamos a nos reunir imediatamente e, já na primeira reunião, fizemos projeções. Projeções complicadas. Estávamos um mês atrás dos Estados Unidos e dois meses atrás da Europa. Nós estávamos vendo o que estava acontecendo, e, obviamente, previmos o que ia acontecer no Brasil.

Para o governo do Estado de São Paulo, estimamos quantos leitos de terapia intensiva seriam necessários. No primeiro instante, São Paulo tinha 3,5 mil UTIs para adultos. Já falamos de cara que íamos precisar de mais de 5 mil leitos. Para ter uma dimensão do que aconteceu, no fim dessa história São Paulo tinha 14 mil leitos.

O Brasil teve cerca de 10% das mortes mundiais por covid, mas não representamos 10% da população mundial. Por que a covid foi tão letal por aqui?

O Brasil é um país de desigualdades. Temos populações extremamente vulneráveis. Isso, somado à falta de recursos na área de saúde, é uma catástrofe planejada.

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Havia um distanciamento nos serviços de saúde entre os Estados, e você não consegue compor isso rapidamente. Fazer leito de UTI não é parede de cimento e aparelho. Tem que treinar a equipe. Ficou claríssimo durante a pandemia que quem tinha mais recursos se saiu melhor.

O combate à pandemia foi marcado exatamente por um protagonismo dos Estados. O governo federal demorou a entrar nessa tarefa? Teve uma postura adequada?

Tem que dividir isso direito. No começo, o governo federal teve uma postura muito adequada. Durante a gestão do Mandetta e do Nelson Teich, eles estavam muito próximos dos Estados, e compondo juntos. Com a entrada do (Eduardo) Pazuello, houve um distanciamento muito grande.

E isso prejudicou o combate à pandemia?

Não tenho a menor dúvida. Era preciso ter uma unidade muito forte entre os governos estadual e federal, além dos municípios. Nada foi simples.

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Aqui mesmo, em São Paulo, me lembro de uma primeira reunião que fizemos com os prefeitos. Muitos nos diziam que isso era uma doença da metrópole, que não ia chegar no interior. Foi difícil convencê-los de que era uma questão de tempo.

E por que demorou (a chegar até o interior)? Porque fizemos o isolamento social. E isso retardou a chegada da epidemia (no interior) em pelo menos duas semanas, o que facilitou que as prefeituras tomassem providências. Mas, como todo mundo sabe, foi uma pandemia que atingiu a todos, sem exceção, especialmente no Brasil.

Durante esse período, houve uma onda nunca antes vista de desinformação e notícias falsas, especialmente sobre vacinas. O movimento antivacina não era uma novidade, mas tomou uma proporção enorme. Por quê?

O que é desmotivador é que isso não acabou. Tem pessoas que vêm no meu consultório e pagam uma consulta para me confrontar, porque sou a favor das vacinas. Foi uma desinformação proposital, generalizada e muito incentivada, por diversos objetivos. Essas pessoas devem ser ouvidas e investigadas.

O que mudou a história da pandemia? As vacinas. Mesmo assim, há contestações até hoje. Acabei de fazer uma aula e pude rever trabalhos, meta-análises, envolvendo bilhões de pacientes vacinados. As conclusões são claríssimas: os benefícios das vacinas foram milhões de vezes mais importantes do que o risco.

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Tudo tem efeito colateral. Você toma dipirona, tem efeito colateral. Mas qual é a decisão? É o risco-benefício. (Até hoje) Vi dois casos de efeitos adversos graves da vacina. E olhe os benefícios. Hoje, temos uma pandemia mais ou menos sob controle, embora o número de casos esteja aumentando. Hoje, você cuida dos pacientes e eles não morrem. Nós chegamos a perder milhares de pessoas por dia.

O que mudou a história da pandemia? As vacinas

David Uip, infectologista

Cinco anos depois, como coordenador do centro de contingência de SP, quais foram os principais erros e acertos?

Sem falsa modéstia, acertamos mais do que erramos. Uma coisa que eu reconsideraria seria a volta às aulas. Talvez pudesse ter ocorrido antes. O isolamento social foi absolutamente fundamental. Estávamos prontos para vacinar em setembro, mas só fomos vacinar em janeiro, porque o contrato não foi assinado pelo Ministério das Saúde. Isso não foi um erro, foi um acontecimento que seguramente atrapalhou.

Acertamos muito mais do que erramos, mas não aprendemos a lição. O que ocorreu naquele momento? O mundo ruiu. Ficou claro que o mundo não estava pronto para enfrentar uma epidemia. Nós — e o mundo — não tínhamos insumos: máscara, aventais, luvas. Recorremos a três países: Índia, Coreia do Sul e China.

Se isso acontecer de novo, cadê a indústria brasileira? Deveríamos ter uma indústria brasileira para a produção desses insumos, para ter independência. Naquele momento, os insumos passavam pelos Estados Unidos e eram confiscados. Você não conseguia comprar respirador. Isso deveria ter sido uma lição, um aprendizado.

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Por que não aprendemos a lição? Inclusive, muitos cientistas dizem que não é uma questão de ‘se’ teremos uma nova pandemia, mas ‘quando’. O senhor concorda com isso?

A história mostra. Quando era aluno de medicina, enfrentei uma epidemia de doença meningocócica, e os pais tiravam os filhos de São Paulo e levavam para o interior para não se contaminar. Quando diretor do Emílio Ribas, (apareceu o) H1N1, um desastre. Depois, HIV, desastre. É só você olhar a história contemporânea: de tempos em tempos, temos grandes problemas.

E aonde as coisas sempre param? Recursos. Na minha opinião, hoje deveríamos ter a indústria brasileira de saúde. Quando fui secretário de Ciência, Tecnologia e Saúde no governo Rodrigo Garcia, eu deixei o projeto pronto para que São Paulo tivesse essa indústria. Vejo o governo federal tentando fazer isso, e é necessário. Precisamos ter suficiência mínima.

Até hoje a OMS cobra informações da China, especialmente sobre o início da pandemia. Por que isso é importante? O que ainda não entendemos sobre a covid?

Eu acho que o começo da pandemia é desconhecido para todos nós até hoje.

Mas eu quero dizer uma outra coisa. A covid não acabou. A covid mudou a história do mundo. Não só do ponto de vista epidemiológico, mas em termos de resposta imune inflamatória. Nós estamos vendo doenças que não víamos. Acho que a covid funcionou como um gatilho importantíssimo para outras condições de saúde. A covid longa é uma realidade. Vejo, hoje, pessoas que tiveram covid e a história delas continua modificada. Ainda existem sequelas ou esse gatilho de aparecimento de novas doenças.

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É fundamental entender direito tudo o que aconteceu até para podermos nos prevenir de uma nova (pandemia). Sou um indivíduo atualizadíssimo, estudo todos os dias, e tenho uma porção de perguntas para as quais ainda não consegui respostas.

E o fim dessa história não surgiu. Tem uma coisa que é dramática. Ainda estou internando pacientes com covid, principalmente os que não completaram o esquema vacinal e os não vacinados. As pessoas subestimam o vírus. As pessoas de mais idade, com comorbidades, não vacinadas, são doentes graves. Tenho uma paciente que recebeu alta da UTI anteontem. Chegou com covid gravíssima, uma pessoa que não tinha completado o esquema vacinal.

O fim dessa história não surgiu

David Uip, infectologista

Comparando com os números do início da pandemia, temos menos casos e mortes. Isso significa que os números atuais são baixos?

Achar que 6 mil mortes em 2024 é pouco, não acho. É um número extravagante. Quase 700 mil notificações. E cada vez mais vão aparecer as formas subclínicas, pouco sintomáticas, que não vão ser notificadas. É óbvio que (a covid) não acabou, e aparecem novos subtipos. As vacinas vão ser anuais ou bianuais, têm que fazer parte do calendário do sistema brasileiro de imunização. Está longe de acabar, e nós temos que convencer as pessoas a se vacinar.

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