Alzheimer é mais comum em brancos e demência vascular afeta mais negros

A conclusão é de um estudo que analisou 16 áreas do cérebro de 1.815 pessoas que morreram na cidade de São Paulo

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Por Mariana Ceci (Revista Pesquisa FAPESP)

As duas principais formas de demência – a doença de Alzheimer e a demência vascular – não atingem brancos e negros no Brasil de maneira uniforme. Em ambos os grupos, o Alzheimer é a enfermidade que com mais frequência causa declínio cognitivo com o avanço da idade. Ele, no entanto, afeta uma proporção maior de brancos do que de negros. Já a demência vascular, o segundo tipo mais comum, atinge uma porcentagem maior de negros do que de brancos, segundo estudo liderado pela geriatra Claudia Suemoto, da Universidade de São Paulo (USP).

No trabalho, publicado em julho na revista JAMA Open Network, Claudia e colaboradores analisaram amostras de 16 áreas do cérebro e de outras estruturas do encéfalo de 1.815 pessoas com média de idade de 74 anos que morreram na cidade de São Paulo e doaram o material para o Biobanco para Estudos do Envelhecimento da USP, um dos maiores acervos de cérebro do mundo. Dois terços dos doadores eram brancos e um terço negro, grupo que incluía pretos e pardos.

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Ao examinar as amostras ao microscópio, os pesquisadores notaram que 28% dos brancos apresentavam placas neuríticas no tecido cerebral, lesões iniciais típicas da doença de Alzheimer, encontradas em 21% dos negros. Já os danos característicos da demência vascular, provocada por bloqueio ou rompimento de pequenos vasos sanguíneos, foram observados em 30% dos negros e 22% dos brancos.

Dos 1.815 casos avaliados, 747 concentravam lesões em quantidades compatíveis com o diagnóstico de demência. As mais comuns foram o Alzheimer (37% dos casos), a demência vascular (26%) e uma combinação das duas (12%). Entre os brancos com demência, 39% tinham Alzheimer. Essa fração era de 33% nos negros. Já o problema de origem vascular afetava 24% dos brancos e 32% dos negros. Não houve diferença na frequência de outros tipos de demência entre os dois grupos.

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Estudo brasileiro mostra que as duas principais formas de demência (a doença de Alzheimer e a demência vascular) não afetam brancos e negros da mesma maneira. Foto: Atlas/Adobe Stock

“Não sabemos se fatores genéticos podem contribuir para explicar a diferença nas taxas de prevalência dessas formas de demência, uma vez que não fizemos testes genéticos”, conta a geriatra da USP. “O mais plausível é que negros tenham mais demência vascular porque têm menos acesso a serviços de saúde e controle inadequado de fatores de risco cardiovascular”, afirma. Os negros eram mais jovens e com menos anos de educação formal que os brancos. Além disso, uma proporção maior de negros fumava, consumia níveis elevados de bebidas alcoólicas e tinha hipertensão.

O que Claudia e colaboradores viram agora em uma amostra da população brasileira só havia sido observado antes nos Estados Unidos. Em um estudo publicado em 1989 no Journal of the National Medical Association, a patologista Suzanne de La Monte, da Escola Médica Harvard, e os colegas Grover Hutchins (1933-2010) e G. William Moore, da Universidade Johns Hopkins, realizaram a autopsia em 144 pessoas com demência e verificaram que a doença de Alzheimer era 2,6 vezes mais comum em brancos do que em negros. Com a demência vascular, ocorria o oposto.

Mais recentemente, a epidemiologista Teresa Filshtein, da Universidade da Califórnia (UC) em São Francisco, e a patologista Brittany Dugger, da UC em Davis, avaliaram 435 casos de demência em três grupos étnicos: negros, hispânicos e brancos não hispânicos. De acordo com os resultados, publicados em 2019 no Journal of Alzheimer’s Disease, a frequência de demência vascular era mais elevada em negros (40% tinham o problema) do que em brancos (28%) e ainda mais alta entre os hispânicos (54%) – mais estudos são necessários para explicar essa elevada ocorrência de demência vascular no grupo hispânico.

Além de corroborar dados da população norte-americana, o estudo brasileiro é importante por pelo menos três motivos. O primeiro é que, com o aumento da população e da expectativa de vida global, se espera uma elevação importante dos casos de demência, principalmente nos países de média e baixa renda, onde a prevenção e o acesso a diagnóstico e tratamento são mais limitados.

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Uma projeção publicada em 2022 na The Lancet Public Health calcula que o total de pessoas com demência no mundo deve aumentar 2,6 vezes até 2050, passando dos atuais 57 milhões para 153 milhões.

No Brasil, estimativas do grupo da psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicadas em 2023 no The Journals of Gerontology – Series A, sugerem um aumento de casos proporcionalmente maior, de 3,3 vezes na próxima década e meia, subindo de 1,8 milhão para 5,5 milhões.

Mais recentemente, o “Relatório nacional sobre a demência”, lançado em setembro, reviu esses números para cima. Resultado de uma parceria da Unifesp com o Ministério da Saúde e do consenso de especialistas da área, o documento indica que o total de casos teria sido de 2,5 milhões de casos em 2019 e chegaria a 8,7 milhões em 2050.

O segundo motivo é que a demência vascular parece ser mais comum no Brasil do que em outros países. Em um estudo publicado em 2017 na revista PLOS Medicine, Claudia e colaboradores examinaram amostras de tecido cerebral de 1.092 indivíduos e constataram que, entre os casos de demência, pelo menos 35% eram de origem vascular. A média em outros países é de 20%.

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A terceira razão é que, de acordo com alguns especialistas, os casos de demência vascular podem ser em grande parte prevenidos, até mais do que os de outras formas do problema – que incluem a demência frontotemporal, a demência com corpos de Lewy e a demência da doença de Parkinson. Para isso, é necessário o controle adequado de problemas que afetam a saúde dos vasos sanguíneos, como diabetes, obesidade, colesterol elevado, pressão arterial alta, entre outros.

Estar com a saúde cardiovascular em dia contribui para retardar o declínio cognitivo – a redução da memória, da capacidade de concentração e da agilidade mental que está exacerbada na demência.

Em um estudo coordenado por Claudia, os pesquisadores avaliaram quatro hábitos de saúde (dieta, atividade física, tabagismo e qualidade do sono) e quatro indicadores de saúde (índice de massa corporal, níveis de colesterol, níveis de glicose e pressão sanguínea) de 11.390 brasileiros. Os participantes integravam o Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), realizado em São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador. Eles foram acompanhados por oito anos e depois agrupados por um escore de saúde cardiovascular.

Aqueles que obtiveram pontuação mais alta (entre 80 e 100) nesse escore apresentaram uma redução 42% mais lenta na memória, na fluência verbal e na capacidade de raciocínio do que os de escore mais baixo (entre 0 e 49 pontos), em sua maioria pretos e pardos (55%).

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Segundo os resultados, publicados em novembro de 2023 no European Journal of Neurology, o efeito benéfico se deveu principalmente ao controle dos níveis de açúcar (glicose) no sangue e da pressão arterial.

Controlar a hipertensão e o diabetes não são os dois únicos fatores que podem proteger contra a demência. Em seu relatório mais recente, publicado em agosto na revista The Lancet, a Comissão de Prevenção, Intervenção e Cuidado em Demência do periódico, da qual participa Cleusa, da Unifesp, elencou outros 12 fatores de risco que podem ser modificados e, se fossem totalmente controlados, evitariam 45% dos casos de demência.

Em sua terceira edição, o documento, elaborado sob a coordenação da psiquiatra Gill Livingston, da University College London, no Reino Unido, trouxe duas novidades em relação aos anteriores: a redução da acuidade visual e o colesterol elevado. Os 14 fatores de risco identificados podem incidir em diferentes fases da vida, da infância à idade avançada.

Nos primeiros anos de vida, o fator que pode ser modificado e ajudar a proteger da demência décadas mais tarde é a educação formal. Ela auxilia na formação da chamada reserva cognitiva, a capacidade do cérebro de lidar com lesões ao longo da vida, possivelmente por suas células formarem mais conexões entre si e o funcionamento geral acabar menos prejudicado pela perda de parte dessas ligações.

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A maior parte dos fatores – no total, 10 – costuma se manifestar ou produzir impacto na idade adulta. São problemas como perda auditiva, depressão, colesterol elevado, hipertensão, tabagismo, entre outros. Já na velhice, o cérebro estaria mais suscetível aos efeitos da redução da capacidade de enxergar, da poluição do ar e do isolamento social.

“Embora a mudança seja difícil e algumas associações possam ser apenas parcialmente causais, nossa nova síntese de evidências mostra como os indivíduos podem reduzir o risco de demência”, escreveram os autores do relatório da Lancet. Segundo os pesquisadores, esse potencial de redução de risco é maior em países de média e baixa renda – e entre grupos minoritários e socioeconômicos mais baixos – do que para países de renda mais alta.

“Na América Latina, por exemplo, além de a demência ser mais prevalente, seu início ocorre mais cedo do que em outros países”, afirma o neurologista Paulo Caramelli, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é coautor de um estudo liderado pelo neurologista Ricardo Nitrini, da USP, que analisou pesquisas feitas em seis países latino-americanos, entre eles o Brasil.

Publicado em 2009 na International Psychogeriatrics, o trabalho revelou que, embora a prevalência de demência na região fosse semelhante à de países desenvolvidos (7,1% das pessoas com mais de 65 anos tinham o problema), a proporção de casos era mais elevada no início da velhice. Na faixa etária dos 65 aos 69 anos, 2,4% das pessoas tinham demência na América Latina, enquanto a média mundial era de 1,2%. “Acreditamos que isso esteja relacionado à falta de diagnóstico ou de tratamento e controle adequados de problemas cardiovasculares, além da baixa escolaridade, que infelizmente é uma característica da nossa população”, explica o pesquisador da UFMG.

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Em 2022, Caramelli, Claudia, Cleusa, Livingston e Nitrini recalcularam para a realidade brasileira o impacto do controle dos 12 fatores de risco apresentados nas primeiras edições do relatório da The Lancet. Se fosse possível eliminar esses fatores, haveria uma redução de 48,2% nos casos de demência. A diminuição seria de até 54% nas regiões mais pobres do país.

Nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, por exemplo, a baixa escolaridade está associada a 7,7% dos casos, enquanto nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, 9,6%. Embora a fração evitável seja quase a mesma para brancos e negros (respectivamente, 47,9% e 46,9% dos casos), o peso de cada fator é diferente nessas duas populações, de acordo com os dados, que integram o relatório do Ministério da Saúde e foram publicados em novembro de 2022 na Alzheimer’s & Dementia.

Composto por dois volumes, o documento do ministério traz informações sobre estigmas associados à demência, além da sobrecarga financeira e psicológica enfrentada pelos cuidadores. Também apresenta estimativas de subdiagnóstico, que é de 50% na Europa, 60% na América do Norte e de 80% a 90% no Brasil. “Aqui, além de haver subdiagnóstico, os diagnósticos são frequentemente realizados muito tarde”, conta Cleusa. “Conhecer a realidade é essencial para pensar em estratégias de ação.”

Esses e outros dados do relatório deverão orientar a implementação da Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências, sancionada em junho pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Criada em conformidade com o Plano de Ação Global para as Demências 2017-2025 da Organização Mundial da Saúde (OMS), a política estabelece 10 diretrizes, que abrangem temas como fortalecimento da atenção primária em saúde e capacitação dos profissionais desses serviços, criação de uma linha de cuidado para demências nos programas e serviços de saúde já existentes, promoção de hábitos de vida saudáveis voltados à prevenção do problema e garantia do uso de tecnologias para o diagnóstico, tratamento e monitoramento dos pacientes.

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“Vários motivos têm feito o tema da demência receber mais atenção nos últimos anos. Agora, é preciso criar estratégias que considerem as particularidades das regiões e das diferentes populações do país, usando os recursos que já temos e incorporando novos, para realizar a prevenção, o diagnóstico e o cuidado tanto das pessoas com demência como de seus cuidadores”, destaca Claudia.

A reportagem acima foi publicada com o título “Nuances da demência” na edição impressa nº 346, de dezembro de 2024.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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