Desde que a mãe recebeu o diagnóstico de Alzheimer, há 13 anos, a fotógrafa e laboratorista Rosangela Andrade lida com a situação a partir de um ponto de vista moldado pelo próprio ofício. Para ela, uma pessoa que não registra as coisas não pode ter memória. A partir dessa perspectiva, ela decidiu ensinar Therezinha Motta Andrade, de 87 anos, a fotografar.
Com uma câmera na mão, a dona de casa passou a acompanhar a filha nas andanças pelas ruas de São Paulo. No ambiente escuro e avermelhado da sala de revelação, via as imagens surgindo e se fixando sobre o papel fotográfico. Uma composição de cenas, contrastes e rostos que, pouco a pouco, se tornava concreta (e, às vezes, familiar) aos olhos de Therezinha.
“A ideia foi criar uma espécie de jogo da memória com as fotos reveladas”, diz Rosangela. “Não bastava encontrar a mesma imagem sobre a mesa cheia de cenas; pedia para ela ir falando quem eram as pessoas. Foi uma tentativa de manter minha mãe mais tempo entre nós”, diz a fotógrafa.
Encontrar formas de sustentar a memória viva e funcional é o desafio criativo que move milhares de cientistas, médicos e familiares de pacientes com Alzheimer ao redor do mundo. Assim, como desenvolver métodos de detecção precoce da doença degenerativa que afeta as mais nobres funções cerebrais, como memória, comportamento, linguagem, raciocínio, entre outras.
No Brasil, há cerca de 1,2 milhão de pessoas com a doença (a maior parte sem diagnóstico), segundo dados do Ministério da Saúde. Novos exames de sangue, mais baratos que os recursos atuais, surgem como alternativa para auxiliar os médicos na confirmação do diagnóstico de Alzheimer, nos casos em que há dúvidas.
Neste mês, a FDA aprovou nos Estados Unidos um teste para estimar os níveis de placas amiloides que se acumulam, em grandes quantidades, no cérebro de quem tem a doença. O exame é comercializado pela empresa Fujirebio.
No Brasil, a Dasa acaba de lançar um produto semelhante. O exame procura identificar dois tipos da proteína beta-amiloide (a 40 e a 42), considerada um biomarcador da doença. Um dos principais atrativos é evitar a realização da punção lombar para coleta do liquor, procedimento necessário na minoria dos casos. Além de ser menos invasivo, o exame de sangue custa cerca de R$ 1,5 mil, um terço dos métodos de confirmação de diagnóstico disponíveis hoje.
Apesar da corrida pela detecção precoce da doença, os médicos alertam que o diagnóstico do Alzheimer é complexo e continua a ser majoritariamente clínico. “Em cerca de 80% dos casos, o diagnóstico é feito a partir de um exame físico completo, da análise do histórico dopaciente, de exames de sangue para descartar outros problemas e da avaliação neuropsicológica, que serve para quantificar as queixas de memória”, diz o neurologista Ivan Okamoto, do Núcleo de Excelência em Memória do Hospital Israelita Albert Einstein.
“Não é correto dar a ideia de que o diagnóstico só pode ser feito com exames subsidiários e inacessíveis à maioria”, diz Okamoto. “Exames adicionais, como uma biópsia do liquor ou um exame de imagem (PET amiloide) para avaliar a formação de placas amiloides no cérebro, só são necessários quando restam dúvidas ou se a pessoa quer ter uma confirmação do diagnóstico por outro método. A acurácia desses exames é de, aproximadamente, 95%”, diz o neurologista.
“Para ter 100% de certeza, o único jeito é fazer uma análise do tecido cerebral após o falecimento”. O médico explica que os exames adicionais também podem ser úteis na fase de comprometimento cognitivo leve, após a qual o paciente pode ou não evoluir para a doença.
“Nessa fase pouco sintomática, é interessante utilizar os exames subsidiários para tentar caracterizar esse comprometimento cognitivo leve e saber se ele vai ou não evoluir para a doença”, diz Okamoto. Se não for o caso, a pessoa não precisa tomar remédios para Alzheimer e ficar exposta a efeitos colaterais como problemas cardíacos, gastrointestinais, entre outros.
Nem tudo é demência
“Existe uma Alzhemerização das queixas de memória. Se alguém se esquece de pagar uma conta ou perde as chaves, já acham que a pessoa está com a doença e dá-lhe remédio”, diz o neurologista. “É muito mais fácil receitar um medicamento do que fazer um diagnóstico criterioso”, diz ele.
Segundo os especialistas, não faz sentido correr aos laboratórios em busca dos exames na tentativa de descobrir características da doença uma ou duas décadas antes do aparecimento dos primeiros sintomas. Isso porque nem todo exame positivo significa que a pessoa terá a doença.
O Alzheimer é provocado pelo acúmulo da substância amiloide resultante do metabolismo. Produzimos essa substância diariamente e, durante o sono, ela é eliminada pelo sistema glinfático (formado pela glia, o conjunto de células responsáveis pelo suporte e nutrição dos neurônios, entre outras funções).
“Como essa limpeza é feita durante o sono, os estudos sugerem que o risco de Alzheimer é mais elevado em pessoas que dormem pouco ou mal”, diz Álvaro Pentagna, coordenador do departamento de neurologia do Hospital Vila Nova Star e do laboratório do sono do Hospital das Clínicas. Como prevenção da doença, os médicos recomendam as medidas clássicas (sono de qualidade, exercício físico, alimentação saudável, atividade intelectual prazerosa etc).
“O acúmulo da substância amiloide acontece com todos nós ao longo da vida. Pessoas idosas podem apresentar graus elevados dela, mesmo sem ter a doença”, afirma. “Apesar das altas concentrações da substância, o cérebro de alguns indivíduos pode não ser impactado”. Daí a importância de não basear o diagnóstico apenas na detecção das placas.
Déficit neuronal
A perda de uma parcela dos neurônios faz parte do envelhecimento. Nos casos patológicos, esse déficit é grande. Muitos neurônios deixam de funcionar, perdem a conexão com outras células do cérebro e podem morrer. No início da doença, os sintomas são leves e moderados, mas pioram com o passar do tempo.
Além do Alzheimer, existem dezenas de outros tipos de demência (veja os principais no infográfico). Os sintomas são similares, mas podem variar de acordo com o indivíduo. Não há cura, mas existem alguns remédios. Na última década, eles pouco evoluíram. Os pacientes de Alzheimer são tratados principalmente com medicamentos como donepezila, galantamina, rivastigmina e memantina, disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivoé controlar os sintomas e reduzir o ritmo de progressão da doença.
Estudos recentes adicionam novas peças ao grande quebra-cabeça que tenta explicar e conter a progressiva degeneração da memória. No ano passado, o grupo liderado pela cientista Heidi Jacobs, da Universidade Harvard, relacionou a má preservação de uma pequena estrutura localizada no tronco cerebral, chamada locuscoeruleus (“local azul”, em latim), ao desenvolvimento da doença. A descoberta foi possível a partir do mapeamento da bioquímica e da anatomia do cérebro de 174 pacientes, graças a equipamentos de ressonância magnética de alta resolução.
Neste mês, cientistas da Universidade da Califórnia, em San Diego, conseguiram detectar uma enzima chamada PHGDH, relacionada ao Alzheimer, por meio de um exame de sangue. Níveis elevados da enzina representam um sinal de alerta, segundo o estudo publicado na revista científica Cell Metabolism.
Desafios da convivência
Enquanto a ciência avança, os pacientes e seus familiares enfrentam os desafios de convivência com o Alzheimer. “Essa doença faz com que a família se desmanche”, diz a fotógrafa Rosangela. “Companheiros abandonam os pacientes e há cobrança entre os irmãos porque alguns se eximem da responsabilidade”. Rosangela e Rosemary, duas dos quatro filhos vivos de Therezinha, assumiram o acompanhamento da mãe no Centro de Referência em Distúrbios Cognitivos (Ceredic), do Hospital das Clínicas, e todos os cuidados.
Um pouco antes do início da pandemia, a doença começou a se agravar e Therezinha foi transferida para um residencial de idosos. “Minha mãe não esquece meu nome, mas sinto que virei um personagem para ela: sou a pessoa que cuida. Às vezes, está agitada e não sabe que sou a filha. Percebi que tinha que entrar na dela para não sofrer mais com isso”, diz Rosangela.
Na juventude, Therezinha participava de programas de rádio e ainda adora música. “Acho que é a última memória que se vai”, diz a fotógrafa. A mãe reconhece as músicas de Roberto Carlos e reage cantando. Como dois e dois resiste.
Onde encontrar o PET amiloide
Quando o exame de imagem específico é necessário para confirmação do diagnóstico, o custo não é o único empecilho. Difícil mesmo é encontrar onde fazer o PET amiloide. Até o início do mês, o Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas (InRad) era o único a fornecer o exame em São Paulo. Isso porque a avaliação depende da produção de um isótopo radioativo, com duração de apenas vinte minutos.
Produzido em um acelerador de partículas na própria instituição, ele é rapidamente levado à sala onde o paciente aguarda na máquina que faz a tomografia por emissão de pósitrons (PET). “Muito mais importante que confirmar o Alzheimer, é afastar esse diagnóstico”, diz Carlos Alberto Buchpiguel, diretor do centro de medicina nuclear do InRad.
O exame não é oferecido pelo SUS, mas pacientes do sistema público conseguem realizá-lo, graças ao subsídio do projeto Cíclotron, que permitiu a produção de radiofármacos em regime industrial dentro do complexo do HC. Além do SUS, o InRad recebe pacientes de hospitais privados, como Einstein e Vila Nova Star, e cobra cerca de R$ 4,5 mil.
Recentemente, a empresa R2IBF fez uma associação com um laboratório na Alemanha e começou a produzir em Porto Alegre um radioisótopo para a realização do PET amiloide. A meia vida mais longa (duas horas) permite que hospitais localizados nas regiões sul e sudeste também ofereçam o exame. A produção é fruto de uma parceria da empresa com o Instituto do Cérebro da PUC do Rio Grande do Sul.
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