O governo do Amazonas e a prefeitura de Porto Alegre passaram a recomendar o uso de medicamentos que não possuem eficácia comprovada no tratamento de pacientes com covid-19. A distribuição pública da hidroxicloroquina, da azitromicina e da ivermectina é incentivada pela gestão do presidente Jair Bolsonaro. Especialistas dizem que a recomendação ignora evidências científicas e cria falsa sensação de que existe um tratamento eficaz contra a doença.
Enquanto vê o número de casos, internações e mortes voltar a subir, a prefeitura de Manaus e o governo do Estado do Amazonas recomendaram publicamente, pela primeira vez, o uso dos medicamentos, conjunto que é chamado pelo governo Bolsonaro de “tratamento precoce”, mesmo sem indicativos de que seja de fato um tratamento.
Em publicação no site da prefeitura, a secretária municipal de Saúde, Shádia Fraxe, disse que reforça “a importância do tratamento precoce para evitar que o quadro clínico se agrave". "Se, clinicamente, o paciente apresentar sintomas que sugiram covid-19, já recebe tratamento e seu quadro de saúde será monitorado por pessoal capacitado para isso”, disse.
Segundo o jornal Folha de S. Paulo, o Ministério da Saúde pressionou Manaus, em ofício, a adotar a cloroquina, em um suposto tratamento precoce contra a covid. Em maio, Bolsonaro chegou a dizer que "quem é de direita toma cloroquina e quem é de esquerda toma tubaína". O tratamento precoce também foi defendido pelo governador do Estado, Wilson Lima (PSC), em live para anunciar apoio da pasta, no último dia 4 de jaEneiro.
Entre os agentes defensores do tratamento precoce estão o sindicato dos médicos e o Conselho Regional de Medicina do Amazonas (CRM-AM). O presidente sindicalista Mário Vianna afirmou que “o Ministério da Saúde tem mais de 150 trabalhos científicos com resultados positivíssimos com tratamento precoce”. Quando perguntado sobre a procedência desses estudos, Vianna disse que “não tem em mãos, mas os documentos estão nas redes sociais”, sem dar detalhes. A prefeitura também foi questionada sobre quais evidências científicas subsidiam o uso desses remédios, mas também não respondeu.
Nova gestão de Porto Alegre adotou medicamentos sem eficácia
Desde a campanha, o novo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), anunciava ser contrário a medidas de restrição para conter a transmissão da covid-19. Tão logo assumiu o governo, Melo cumpriu a promessa, e editou um decreto flexibilizando as restrições impostas pelo antecessor, Nelson Marchezan Jr (PSDB).
Além da mudança em relação ao funcionamento do comércio, e mesmo para realização de eventos, Melo também decidiu adotar o chamado “tratamento precoce”. Os medicamentos que o governo municipal pretende distribuir na rede pública foram entregues pelo ministério sem custos aos cofres públicos municipais.
Médico infectologista, mestre em Ciências Médicas e membro do Comitê Covid da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI), Ronaldo Hallal diz que a decisão de adotar o “tratamento precoce” não trará resultados práticos sobre o cenário da doença. “Já há estudos clínicos publicados mostrando que esses medicamentos não possuem eficácia mesmo utilizados no 1º, 5º, ou 7º dia. A decisão da gestão Melo de adotar o “tratamento precoce” ignora evidências científicas. Os grupos de decisão revelam que a prefeitura de Porto Alegre não utiliza evidências científicas na elaboração de suas políticas", critica.
Para Hallal, a indicação do uso do kit cria uma falsa sensação de existir um tratamento para a doença, o que prejudica as medidas de isolamento, o que na avaliação dele é justamente o objetivo do governo. “Sinaliza com a mensagem errada que essa doença tem tratamento, o que pode comprometer as medidas de isolamento.”
O governo municipal defende a distribuição do medicamento como uma decisão entre médico e paciente. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), o governo tem seguido a orientação e as bases científicas do Ministério da Saúde para adotar o tratamento precoce.
Questionada sobre o parecer de comitês científicos, a SMS se limitou a se basear na resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremers). Nenhuma das duas fala sobre a eficácia do tratamento, apenas dizem que médicos que receitem o “kit Covid” não cometem infrações e casos de efeitos colaterais serão investigados.
O único estudo apresentado pelo governo municipal foi um link do Ministério da Saúde, citado como exemplo. Nele, o governo federal apresenta um artigo publicado na revista The American Journal of Medicine que defende o uso da cloroquina no tratamento precoce. A intenção do governo municipal é distribuir os medicamentos nas farmácias distritais e nas unidades de saúde que funcionam até 22h.
Hallal afirma que os estudos usados pelo ministério não são clínicos. “São comparativos da intervenção com placebo, são basicamente estudos retrospectivos, que tentam associar desfechos clínicos com algo que tenha ocorrido diferente.” Ele cita como exemplo pesquisas feitas nos Estados Unidos, Espanha, e o Coalizão, do qual o Brasil fez parte, que comprovaram a ineficácia da cloroquina no tratamento da covid-19.
O governo municipal vai enfrentar resistência nos próximos dias, já que a bancada do PT na Câmara de Vereadores anunciou que ainda nesta semana entrará com um pedido de providência do Legislativo, além de uma representação na Promotoria de Saúde do Ministério Público, pedindo que os remédios sejam devolvidos ao governo federal.
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