Análise: Por que a Índia vai doar doses de vacinas para seus vizinhos antes de vender para o Brasil?

O que a Índia pratica é algo que o presidente Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores não deixam que seus excelentes funcionários do Itamaraty façam: diplomacia profissional em nome dos interesses nacionais e estratégicos

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Por Florência Costa
Atualização:

Pode parecer estranho para o olhar brasileiro que a Índia tenha ignorado os apelos do Brasil (um grande ator emergente e parceiro em grupos como Brics) e priorizado países como o pequeno reino budista do Butão, as Ilhas Seychelles e Bangladesh, que receberão como doação, as primeiras vacinas contra a covid-19 a partir desta quarta-feira, 20. Mas o que a Índia pratica é algo que o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, não deixam que seus excelentes funcionários do Itamaraty façam: diplomacia profissional em nome dos interesses nacionais e estratégicos. 

Índia vai assegurar 300 milhões de doses para a sua própria população (de 1.3 bilhão de habitantes) até agosto: será o maior programa de imunização do mundo, que começou em 16 de janeiro Foto: Divyakant Solanki/EFE

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Um bom exemplo disso é que o primeiro ministro Narendra Modi – um governante de direita, que mantinha boas relações com Donald Trump – ligou para Joe Biden imediatamente ao saber de sua vitória, em novembro. Modi também nunca desprezou as instituições multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Ilhas Maldivas, Nepal, Mianmar, Sri Lanka, Ilhas Maurício e Afeganistão são outros países que ocupam os primeiros lugares na fila para receberem as vacinas – total de 20 milhões de doses, boa parte como doação, como “gesto de boa vontade”. Nessa corrida desesperada pelas vacinas, até mesmo o rival Paquistão demonstrou interesse pelas doses indianas. 

Hoje, a Índia é uma liderança regional asiática com muito deveres para com seus vizinhos e tem a China, sua rival, no cangote. O país não vai correr o risco de perder a imagem e posição de líder paternal em sua área. Além disso, a Índia encara sérios conflitos territoriais com o Paquistão e com a China, com quem já travou uma guerra relâmpago em 1962. No ano passado, conflitos com a China na região do Himalaia resultaram em 20 soldados indianos mortos. 

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Assim, as fotos de Modi dando de presente a vacina para os chefes de Estado desses países pobres não têm preço para Nova Délhi. Importante ressaltar, antes de tudo, a premência da Índia em assegurar 300 milhões de doses para a sua própria população (de 1.3 bilhão de habitantes) até agosto: será o maior programa de imunização do mundo, que começou em 16 de janeiro. 

Historicamente, a Índia tem um papel de provedor e fornecedor de infraestrutura para os vizinhos Butão, Nepal, Mianmar e Bangladesh. É até questão de segurança sanitária para a Índia ofertar vacinas para eles. Bangladesh, inclusive, é fundamental para a segurança nacional da Índia. 

Maldivas, Seychelles e Maurício estão no Oceano Índico, uma das mais movimentadas e estratégicas rotas comerciais marítimas do mundo. O Sri Lanka também é crucial para Nova Délhi. Tem recebido muita ajuda da China e a situação interna sempre exerceu muita influência na política dos estados do Sul da Índia. No caso do Afeganistão, a Índia tem relação muito estratégica de ajuda civil na reconstrução do país para contrabalançar o Paquistão e a China. 

O diplomatas indianos jogam um complicado xadrez geopolítico, com a potência China como a peça fundamental. Xi Jinping tem investido muito em infraestrutura nessas regiões fronteiriças à Índia, trabalhando uma imagem positiva. Pela crença indiana, as ações (karma) boas e ruins terão implicações positivas ou negativas. Essa é uma grande lição asiática para o Brasil do Bolsonaro.

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*É JORNALISTA E AUTORA DO LIVRO OS INDIANOS (EDITORA CONTEXTO)