A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pediu esclarecimentos para o grupo Hapvida NotreDame sobre os reiterados descumprimentos de decisões judiciais por parte da companhia, conduta investigada pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP). O caso foi revelado pelo Estadão em uma série de reportagens publicadas no último dia 18.
O diretor-presidente da ANS, Paulo Rebello, afirmou ao Estadão que a empresa foi convocada para uma reunião com a agência na terça-feira, 23, na qual foi questionada sobre os casos de desobediência judicial. “Pedimos esclarecimentos com relação a essas 80 liminares que não foram cumpridas (citadas na investigação do MP-SP), que apresentem qual é o problema narrado na ação, as liminares que foram deferidas e as justificativas pelo não cumprimento”, disse. A empresa afirmou à reportagem estar “à disposição da agência sempre que necessário” e voltou a negar ter “política ou diretriz para o descumprimento sistemático ou ordenado de decisões judiciais” (leia mais abaixo).
O diretor-presidente da agência afirmou que o órgão vai aguardar a apresentação da defesa por parte da companhia, que deverá ser enviada em até 15 dias, para decidir se abre uma investigação. “Existe, dentro da Diretoria de Fiscalização, a possibilidade de fazer uma fiscalização nas operadoras, assim como a Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos, que trata sobre as questões assistenciais, pode abrir um processo de apuração de possíveis irregularidades. Ainda não há (nada aberto contra essa empresa). Tivemos essa primeira reunião e pedimos que eles apresentem a defesa. Uma vez em posse dessa informação, a agência vai avaliar e, se entender como necessário, aprofunda-se a investigação”, declarou.
Rebello relata que, durante a reunião na terça-feira, a companhia argumentou que as liminares descumpridas se referem a procedimentos não cobertos no rol de procedimentos da ANS e, por isso, vem entrando com recurso. Alguns dos casos de descumprimento levantados pelo Estadão no sistema do Tribunal de Justiça de São Paulo mostram, no entanto, casos de descumprimento também nas demandas por tratamentos que estão no rol, como uma cirurgia de retirada da vesícula. Foi para esclarecer casos como esse, diz Rebello, que a ANS pediu à companhia a relação das ações judiciais com as demandas solicitadas pelos pacientes e as justificativas para o descumprimento.
Ele destacou ainda que, mesmo quando o procedimento não está no rol e cabe recurso, a liminar deve ser cumprida. “Mesmo que haja um recurso ainda não apreciado pela instância superior e nos casos em que não haja cobertura obrigatória pelo rol, uma vez havendo a liminar, a gente entende que a operadora tem a obrigatoriedade de cumprir”, declarou.
O diretor-presidente relatou ainda que a agência monitora o aumento do número de reclamações contra a companhia, mas, no momento, os indicadores não demonstram necessidade de intervenção. “Nós temos, dentro dos mecanismos regulatórios, a possibilidade de decretar uma direção técnica, que seria indicar um diretor técnico para ficar acompanhando e monitorando a operadora, a operação in loco, pedindo esclarecimentos e documentos, mas isso é quando há um colapso no atendimento do beneficiários, o que não é o caso em questão”, disse. Como o Estadão mostrou, o número de reclamações contra a Hapvida e a NotreDame aumentou após a fusão das duas empresas, concluída em 2022.
Rebello explicou que as operadoras estão constantemente sujeitas a responder a apurações abertas pela ANS a partir das reclamações dos beneficiários por meio da chamada Notificação de Intermediação Preliminar (NIP). “A operadora tem um prazo de cinco dias para apresentar resposta nos casos assistenciais, como questões relacionadas à negativa de cobertura, e de dez dias nos casos de queixas sobre contratos e reajustes. Ela apresenta a defesa ou atende ao pleito do beneficiário. Se isso não ocorre, segue-se um processo sancionador que, após analisar a defesa apresentada pela operadora, a agência pode aplicar uma multa em razão do cumprimento de uma norma”, esclareceu o diretor-presidente da ANS.
Em 2023, foram aplicadas 1.463 multas contra Hapvida, NotreDame e NotreDame Minas Gerais, totalizando R$ 131,8 milhões em penalidades, ante R$ 32,1 milhões em 2019. Essa alta de 310% no período foi superior à observada no setor, de 30%. Com 15,7% dos beneficiários de planos de saúde médicos e 20,4% dos odontológicos, as três operadoras concentraram 22,6% das multas aplicadas ao setor. Questionado sobre esse volume de infrações, o grupo Hapvida NotreDame não respondeu.
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Segundo Rebello, todas as reclamações que chegam à agência são apuradas. “Daquilo que a agência recebe através das NIPS, as medidas estão sendo adotadas, as multas estão sendo aplicadas. O que a gente toma conhecimento, a gente atua, pede explicações, faz ações fiscalizatórias. Da nossa parte, não tem compromisso com erro, não estamos passando a mão na cabeça de ninguém, muito pelo contrário, qualquer reclamação que for apresentada, a gente vai apurar”, afirmou.
Ele disse, no entanto, que é preciso também considerar na análise da alta de reclamações fatores como o aumento de beneficiários nos últimos anos, a demanda por procedimentos que ficou represada durante a pandemia de covid-19 e a lei federal 14.454, sancionada em 2022, que definiu que o rol da ANS é exemplificativo, e não taxativo - o que, na prática, amplia o número de tratamentos que devem ser custeados pelos convênios.
Rebello afirmou que a ANS monitora recorrentemente queixas sobre negativas de cobertura e descumprimento de prazos porque, quando há um desempenho ruim nesse indicador, a agência pode determinar a suspensão temporária da comercialização daquele plano de saúde. Ele informou que as operadoras do grupo Hapvida NotreDame, apesar da alta nas queixas, não chegaram a esse patamar.
“São três faixas (de classificação das operadoras). Quando a operadora fica na faixa 3 em dois ciclos (de monitoramento, que são trimestrais), a agência determina que seja suspensa a comercialização do produto da operadora até que ela reestabeleça o atendimento de forma aceitável. No caso da NotreDame e Hapvida, a gente tem acompanhado um crescimento do número dessas reclamações. Eles não chegaram num patamar de permanecer no grau alto a ponto de suspender a comercialização desses produtos.”
De acordo com dados da ANS, a NotreDame ficou na faixa 1 no primeiro trimestre de 2023 e na faixa 2 no segundo trimestre do mesmo ano. No terceiro trimestre, o último com dados disponíveis, a operadora entrou com uma ação judicial para não participar do monitoramento. Já a Hapvida ficou na faixa 1 nos três primeiros trimestres do ano passado.
Procurada, a Hapvida NotreDame disse que “mantém uma relação constante com a ANS” e que “se coloca à disposição da agência sempre que necessário para prestar esclarecimentos, à exemplo da reunião ocorrida na última terça-feira, em sinal de seu comprometimento com a sustentabilidade do setor e o atendimento de qualidade aos seus clientes”.
A empresa disse que, na ocasião, “reiterou que não adota qualquer política ou diretriz para o descumprimento sistemático ou ordenado de decisões judiciais”, “enfatizou sua disposição em fornecer as informações necessárias ao Ministério Público” e “destacou que encara com seriedade o cumprimento das normas estabelecidas pela ANS, comprometendo-se a compartilhar com o órgão regulador informações destinadas ao Judiciário”. O grupo empresarial diz ainda ter ressaltado “seu compromisso inabalável com a vida de todos os seus beneficiários”.
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