ANS propõe criação de planos que incluam apenas consultas e exames

Agência diz que quer baratear acesso à saúde suplementar e ampliar assistência; especialistas veem retrocesso e desrespeito à legislação

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Foto do author Stefhanie Piovezan

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) propôs a criação de um novo tipo de plano de saúde, que contemple apenas consultas eletivas e exames, sem a cobertura de internações, pronto-socorro e tratamento.

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Caso a opção seja incluída no sistema de saúde, a estimativa da ANS é que cerca de 10 milhões de pessoas passem a utilizar planos com o novo formato. A proposta será submetida a uma consulta pública a partir desta terça-feira, 18, no site da agência. As contribuições poderão ser enviadas até o dia 4 de abril e há uma audiência pública prevista para 25 de fevereiro.

Para especialistas ouvidos pelo Estadão, a criação da modalidade seria um retrocesso e estaria em desacordo com a legislação, que estipula a oferta de uma cobertura mínima.

Procurado, o Ministério da Saúde afirmou que a proposta da ANS ainda está sendo analisada e que acompanha de perto o debate sobre o tema. A pasta destacou ainda a importância do Sistema Único de Saúde e seu princípio fundamental: “Garantir atendimento integral, universal e gratuito a toda a população.”

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Novo formato pode chegar a 10 milhões de pessoas, estima ANS Foto: Felipe Rau/Estadão

O que diz a ANS

A sugestão vinha sendo desenhada há alguns meses na instituição e era um dos principais pontos defendidos pelo ex-presidente da entidade, Paulo Rabello. A agência argumenta que a medida é uma forma de ampliar o acesso dos brasileiros a planos de saúde mais baratos em um cenário de escassez de oferta de planos individuais e familiares.

A ideia da ANS é criar uma espécie de fase de teste do produto, o chamado “sandbox regulatório”, que funciona como um ambiente experimental de regulação. Nesse sentido, as empresas terão seu produto testado ao longo de dois anos, durante os quais vigorarão as seguintes regras:

  • Deverão criar e registrar um novo plano de saúde, no formato coletivo por adesão;
  • Deverão limitar a coparticipação nesses planos a 30%;
  • Terão de oferecer bônus aos beneficiários que participarem de programas de cuidado e permanecerem no plano após o período de testes de dois anos.

Depois do período de testes, a agência fará uma análise para avaliar se o modelo será descontinuado ou não. Caso a ANS decida por não manter a modalidade, os beneficiários terão portabilidade extraordinária para troca por outro plano ou a possibilidade de voltar ao plano de origem

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De acordo com a agência, por ser um produto novo, ele não seria “caracterizado como plano de saúde típico”, como prevê a Lei 9656/98, que estipula regras para a comercialização de planos de saúde, e a entidade tem “competência para promover, por meio do sandbox regulatório, uma experiência com um produto ainda não praticado no mercado regulado”.

Diretor de Normas e Habilitação dos Produtos da ANS, Alexandre Fioranelli afirma que a intenção da agência é permitir que pessoas que não têm plano de saúde e utilizam os chamados cartões de desconto ou clínicas populares possam ter uma opção.

“O brasileiro passará a ter o direito a escolher um plano de saúde que caiba no bolso dele. Quantas pessoas conhecemos no nosso dia a dia à espera para passar num médico ou por um exame no SUS, por exemplo?”, diz o diretor.

Ele nega que o formato possa canibalizar outros tipos de plano. “Quem já é beneficiário de um plano de saúde com segmentação hospitalar, por exemplo, não poderá migrar para essa opção mais básica. E quem aderir ao plano de saúde com cobertura para consultas estritamente eletivas e exames, dentro da proposta do sandbox, também não poderá fazer portabilidade para outro, com abrangência maior”, afirma.

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Segundo Fioranelli, o modelo poderá ajudar a desafogar o Sistema Único de Saúde (SUS) e agilizar o atendimento da população, e a agência agendará uma conversa com o Ministério da Saúde sobre o tema.

Operadoras de saúde celebram proposta

Entidades que representam o setor celebraram a proposta da agência. “Atualmente, estima-se que há mais de 40 milhões de brasileiros com cartões de descontos, regidos por empresas que não são reguladas. Acreditamos que esse público pode se interessar pela segurança de um plano de saúde, que oferece maior previsibilidade de gastos e segue as regras estabelecidas pela ANS”, analisa Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (ABRAMGE).

Ele argumenta que o modelo poderá aumentar a agilidade do serviço de saúde e fazer com que a população tenha diagnósticos mais precoces. Ribeiro afirma que a tendência é que os planos desse formato sejam mais baratos: “Essa é a tendência: promover o acesso a um cuidado de qualidade, capaz de resolver entre 80% e 90% dos problemas de saúde, a um custo mais acessível e com uma regulação clara e bem definida”, diz.

Em nota, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) afirmou que o novo formato permite a oferta de mais uma alternativa sem que haja exclusão das demais opções de planos hoje disponíveis. A entidade diz ainda que a proposta pode tornar os planos mais acessíveis e ampliar a assistência à população, " com efeitos benéficos sobre todo o sistema de saúde”, incluindo o SUS.

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Especialistas criticam a medida

Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e pesquisador na área de saúde coletiva, critica a proposta. Para ele, qualquer entrada na assistência à saúde que não tenha continuidade é nociva, já que o paciente terá de recomeçar o processo no SUS para obter tratamento. “Não tem conexão nenhuma com uma rede de média, de alta complexidade”, diz.

Além disso, a proposta apresentada é restrita a alguns tipos de consultas e exames, não abarcando especialidades e o atendimento a condições como transtorno do espectro autista (TEA). Também deixa de fora demandas como casos de acidente vascular cerebral (AVC) – responsáveis pela morte de 110 mil pessoas no País em 2023 – e acidentes de trânsito, atendidos nos setores de urgência e emergência.

“Não tem internação, não tem atendimento em pronto-socorro, não tem nenhum tipo de terapia ambulatorial”, ressalta. “Joga para o SUS toda média e alta complexidade, tudo que é caro, tudo que é prevalente, tudo que é frequente”.

O cientista também questiona o momento em que a proposta está sendo apresentada, em plena troca de comando da ANS, a celeridade dada ao tema e o fato de o assunto não estar em debate no Legislativo, onde não avançou em tentativas passadas.

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Scheffer menciona três investidas anteriores para aprovação de uma proposta semelhante: em 2016, quando o ministro Ricardo Barros propôs a criação de planos populares no governo de Michel Temer; em 2017, na época da comissão especial que discutia a chamada nova Lei de Planos de Saúde; e em 2021, também no âmbito de uma comissão especial na Câmara dos Deputados.

“Desde que a Lei 9656 foi aprovada, em 1998, a pauta é desregular a cobertura que foi definida. Estamos sempre falando de propostas para redução de cobertura”, critica o professor.

Scheffer questiona ainda a qualidade de opções como essa, sem espaço para profissionais especializados e com predominância de médicos generalistas, e combate a ideia de que uma proposta assim ajudaria a “desafogar” o SUS. Segundo o pesquisador, não existem evidências de que esse modelo de privatização tenha gerado benefícios a qualquer sistema de saúde público no mundo e tampouco foram apresentados elementos nesse sentido para sua adoção no Brasil.

“As pessoas vão tirar do próprio bolso, vão aumentar seus gastos, sem uma contrapartida. Então é muito predatório. Ele tem o objetivo único de criar um novo mercado e, de novo, é uma via de entrada que não tem conexão com o sistema. Cada cidadão vai ter que se virar, entrar na fila do SUS e iniciar de novo o seu itinerário.”

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Lucas Andrietta, coordenador do programa de Saúde do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), destaca outros aspectos negativos da medida. “Na prática, estamos violando a lei, que estipula que um plano de referência deve oferecer uma cobertura mínima”, critica.

Para ele, a proposta tenta explorar uma competência normativa que a ANS não tem e representa uma precarização dos planos de saúde, que não atenderiam as necessidades dos usuários.

Além disso, não combate os atuais problemas do setor, como as negativas de atendimento, e não avança no sentido de aumentar a segurança das clínicas populares já existentes.

Por fim, assim como Scheffer, ele afirma não ver nenhum possível benefício para o SUS. “Esse argumento é falso”.

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