“Meu objetivo sempre foi me conectar de verdade com as pessoas. E eu desviei do meu objetivo quando entrei na ‘noia’ do algoritmo, porque percebi que o mercado valorizava números e resolvi correr atrás”, diz a produtora de conteúdo Lu Ferreira, de 38 anos, que há 16 trabalha com internet e ficou conhecida com o blog Chata de Galocha.
Em 2018, conta, ela se concentrou nos números e se esforçou para entender os segredos dos algoritmos de entrega das plataformas digitais para as quais produzia conteúdo. E passou a produzir com foco em agradar o sistema. “Depois de uns seis meses, um ano, tive resultado nos números, crescimento bem expressivo, mas também um diagnóstico de estresse crônico”, afirma ao Estadão. Primeiro, foi identificado burnout (síndrome conceituada como resultado do estresse crônico no trabalho sem gerenciamento adequado, segundo a Organização Mundial da Saúde) em 2018, e, mais tarde, durante a pandemia, com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG).
Embora comum entre produtores de conteúdo e influenciadores digitais, o problema pode ocorrer com qualquer usuário de redes sociais (praticamente todos nós, portanto). Quem nunca se perguntou por que um story teve menos visualizações ou uma foto, menos likes? O algoritmo fez distribuição com menor alcance do conteúdo? Ou o material é apenas desinteressante?
Também é frequente se questionar por que certos conteúdos são direcionados a você quando acessa as plataformas e se preocupar com uma espécie de “crise de identidade”. De fato gosto daquilo ou é algo “empurrado” pelos sistemas automatizados das redes?
Diante desses dilemas e em um mundo onde plataformas digitais têm cada vez mais peso, surge a expressão “ansiedade algorítmica”. Ela define essas sensações de angústia, de usuários e produtores de conteúdo, na relação com o tal algoritmo (que sabemos que existe, mas não conseguimos dizer ao certo como funciona). Não é uma definição clínica, mas um conceito que tem aparecido em artigos acadêmicos, principalmente no exterior, e nas próprias plataformas.
Fora da internet, algoritmo é uma fórmula matemática (sequência de passos para resolver um problema ou chegar em determinado lugar). Já no contexto das redes, o termo é usado para se referir a “processos automatizados de decisão”, explica Paulo Faltay, doutor em Comunicação e Cultura e pesquisador do MediaLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“É como a receita de um bolo: um mecanismo automatizado que você coloca uma série de ingredientes: dados pessoais e de comportamento da gente nos serviços digitais e também os conteúdos que eles têm. E é oferecida uma série de recomendações, que seria o bolo”, explica.
No fim das contas, ele hierarquiza os conteúdos - fotos, vídeos ou anúncios - que chegam até nós. Ao mesmo tempo, decide como nossas publicações atingem outros usuários. “O algoritmo é esse sistema de ranqueamento e direcionamento de conteúdo nesses serviços digitais” resume Faltay.
Seja pela falta de transparência sobre o funcionamento desse sistema ou pela lógica de pequenas recompensas que geram expectativas - e com elas, frustrações -, o algoritmo pode ter reflexos na saúde mental, segundo pesquisadores.
A relação entre a lógica das redes e problemas de saúde mental ainda não é completamente compreendida pela ciência, mas os estudos apontam para os riscos de o uso excessivo estar ligado a quadros de ansiedade e até de depressão.
“A cultura digital é uma cultura da ansiedade”, diz a psicóloga Fernanda Bruno, coordenadora do MediaLab da UFRJ. “A ansiedade está muito relacionada a uma expectativa em relação ao que o outro quer de mim, ao que o outro demanda de mim: no trabalho, vida social, no amor, na família”, afirma.
“E esses algoritmos, que estão mediando nossa experiência nas plataformas, nos colocam o tempo inteiro nesse registro do que o outro quer ter, do que o outro gostou, do que o outro fez, do que o outro compartilhou. Isso é extremamente ansiogênico, porque nosso desejo começa a funcionar o tempo inteiro no registro do outro e não mais no registro do que seria efetivamente interessante para nossas vidas”, alerta.
Uma das menções mais conhecidas à ansiedade algorítimica é de 2018, feita em artigo do pesquisador Shagun Jhaver, do Georgia Institute of Technology (EUA), junto com dois funcionários do Airbnb, Yoni Karpfen e Judd Antin. Ao entrevistar 15 anfitriões, perceberam que a falta de controle e a incerteza de como o algoritmo de avaliação e sugestão (quais acomodações aparecem primeiro quando se busca por uma localidade) gerava ansiedade neles. Alguns usuários testavam a alteração de trechos do perfil para ver se conseguiam melhorar a posição nas buscas.
Meu chefe é uma máquina
Em 2021, a influenciadora Nátaly Neri, de 28 anos, publicou um vídeo intitulado “O ALGORITMO vai matar O CRIADOR DE CONTEÚDO”. Ao Estadão, ela conta que jogou com as regras das redes e foi exagerada para chamar atenção sobre um tema importante, como as mudanças constantes - e por vezes mal comunicadas - dos algoritmos. Isso, segundo Nátaly, pode sobrecarregar, desestimular e adoecer quem produz conteúdo.
“A mudança para o criador de conteúdo é extremamente natural, mas ela tem de ser minimamente controlável e controlada, se não a gente perde o rumo. A ausência de rumo leva a gente a uma exaustão e a um sentimento, que pra mim é ainda mais grave, que talvez leve a morte do criador na plataforma: a não capacidade de ler os seus próprios resultados”, descreve.
Essa incapacidade, diz, pode levar o influenciador a se culpar e se considerar irrelevante. “Quando você não tem como compreender os resultados, seu primeiro movimento é culpar o criativo, o mensageiro”, afirma. “A tradução mais simples (da relação entre mudança algorítmica e produção de conteúdo) é: o algoritmo te afasta da sua audiência, te afasta de pessoas. E isso essa é a morte do criador, a solidão, a não escuta, a não visualização.”
Isso pode colocar o criador em uma encruzilhada perigosa: produzir o que dá muita visualização e engajamento, mas que pode ser pouco prazeroso e mentalmente exaustivo (como tratar de temas delicados e polêmicos, que tem potencial de atrair cliques) ou se manter fiel ao que já faz e às próprias preferências.
Em 2021, frente às incertezas da própria pandemia e sobre sua própria prática enquanto influencer, Nátaly chegou a ter burnout e precisou se afastar das redes durante 30 dias - mesmo com medo de ser punida pela tecnologia por inatividade. “Cheguei à exaustão máxima. Só chorava e não conseguia mais agir”, lembra.
“Disse ‘sim’ pra tudo. Talvez o sucesso tenha me ‘matado’”, afirma. Após um mês distante, ela reencontrou o prazer em produzir conteúdo e teve mais clareza sobre como se manter saudável na profissão. “Minha última ferramenta de saúde mental na internet é não me submeter. Não me submeto aos mandos e desmandos do algoritmo”, afirma. “O foco tem que ser você e o que você procura na internet.”
As pesquisadoras brasileiras Issaaf Karhawi, da Universidade de São Paulo (USP), e Michelle Prazeres, idealizadora do movimento Desacelera SP, se dedicaram a destrinchar o efeito do algoritmo nos produtores de conteúdo, também conhecidos como influenciadores, e cunharam a concepção de “exaustão algorítmica”, que explicam em artigo publicado na Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde (Reciis), da Fiocruz.
Issaaf conta a pesquisa partiu da observação espontânea de influencers brasileiros e também de artigos de outros países que analisaram burnout em produtores de conteúdo para plataformas digitais. Michelle destaca que o termo “exaustão algorítmica” surge num esforço de explicar um tipo de estafa, com manifestações na saúde, sociais e no trabalho, muito particulares dos influenciadores digitais.
Entre os fatores que contribuem para esse cansaço, dizem elas, estão a falta de regulamentação dessa prática profissional e do fato de eles terem um “patrão” mecânico, que exige velocidade de produção em troca de visibilidade, sem deixar claro o que é preciso ser feito para recebê-la.
“É reação difusa que o influenciador não consegue nomear, não consegue observar de onde é que se origina, justamente porque replica também essa lógica das redes, a opacidade das redes”, afirma Issaaf. “Trabalhar no ritmo do algoritmo é também trabalhar numa lógica não humana”, acrescenta.
Ela também conta que os influencers relatam a sensação de que precisam trabalhar “24/7” (24 horas nos sete dias da semana, ou seja, o tempo todo) para não serem penalizados pelo robô por inatividade.
Segundo Michelle, isso não é tão diferente para os usuários comuns, afinal, “todos somos trabalhadores das plataformas”. Alguns autores, afirma ela, apontam que, ao oferecermos nossos dados gratuitamente para as plataformas, trabalhamos e geramos receita para as redes.
“Na prática, quando traz para o mundo das pessoas comuns, podemos dizer que a relação com as plataformas gera também frustração permanente, pela sensação de viver algo, mas a experiência não estar completa se você não postar”, descreve Michelle. “E aí você posta, mas sua rede social nunca é tão legal quanto a do vizinho. Você não posta muito e quando posta, ninguém vê, reage ou curte, porque a plataforma te penaliza.”
Comparação
A história de o gramado vizinho ser mais verde cria outro gatilho de angústia, segundo Faltay, mas também aponta para elementos contraditórios. Por um lado, para distribuir o conteúdo que produzimos, é preciso que seu perfil seja parecido ou compartilhe gostos semelhantes a um grupo maior. Mas, por outro, para ter protagonismo é necessário se sobressair, criar diferenciais para ter destaque dentro desse grupo de interesses comuns.
Para nos direcionar conteúdo e prever o que queremos ver, o algoritmo adiciona o seu perfil a um grupo maior, de usuários que sejam parecidos e compartilhem gostos semelhantes.
Ser melhor para ter mais visibilidade, curtidas e engajamento, continua o cientista da UFRJ. “De certa forma, essa relação é muito marcada pela competitividade e pela comparação com os outros.” Para ele, isso leva a uma “busca infindável por aperfeiçoamento, em uma cultura de avaliação, que adoece as pessoas”, para caber dentro de um grupo, mas ser o que mais se destaca nele.
Dependência e uso excessivo
Sob o aspecto clínico, o psiquiatra Aderbal Vieira Júnior, responsável pelo ambulatório de atendimento do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o que mais se trata e aborda não é a “crise existencial” frente ao algoritmo, mas sim a dependência que ele pode causar no usuário.
“O algoritmo é refinado cada vez que você clica em algo, cada vez mais você recebe informação que tem probabilidade maior de você gostar, que fidelizar você de algum modo”, acrescenta Vieira Júnior. Ele destaca que essa dependência não é algo que ocorre do dia para noite, mas sim um “processo contínuo”.
Três sinais podem indicar que o usuário precisa de ajuda profissional: disfuncionalidade (ter prejuízos, como deixar de fazer tarefas importantes, como as de estudos e de trabalho); sensação de perda de escolha/liberdade (você passa mais de 40 minutos numa plataforma, mas queria ter feito outra coisa); e empobrecimento existencial (deixar de sair com amigos para passar tempo nessas redes).
Por ora, conta, o tratamento dessa dependência é predominantemente psicoterapêutico, com foco no indivíduo olhar para si e para seus comportamentos. Quando identificado outros quadros associados, como ansiedade e depressão, pode ser necessário o uso de remédios.
Vieira Júnior também frisa que identificar situações de abuso e dependência é cada vez mais difícil. “Somos uma população mundial de abusadores de internet”, afirma. “Como todo mundo é um pouquinho abusador, você perde contraste, fica difícil identificar o abuso.”
O que dizem as empresas
O Estadão procurou as empresas responsáveis por YouTube, TikTok, Instagram, Facebook e Twitter.
O TikTok enviou comunicado em que explica uma nova funcionalidade, lançada em 16 de março, que permite retornar a página “Para Você” (For You) às configurações iniciais, caso o usuário perceber que “as recomendações não são mais relevantes ou fornecem pouca variedade temática”. Um desafio inerente a qualquer sistema de recomendação, segue a nota da empresa, “é garantir que a gama de conteúdo que aparece ao espectador não seja muito estreita ou repetitiva”.
O Instagram informou que Adam Mosseri, seu CEO, já explicou como os algoritmos da rede funcionam em diferentes superfícies, além do “papel que cada um de nós tem na plataforma”, diz a nota enviada ao Estadão. “Cada parte do aplicativo (Feed, Explorar, Reels) possui o próprio algoritmo adaptado à maneira como cada pessoa a usa (…) A maneira como você usa o Instagram influencia bastante o conteúdo que aparece ou não na sua tela. Você ajuda a aprimorar a sua experiência simplesmente ao interagir com os perfis e as publicações de que gosta.”
A empresa informou que tem uma publicação na qual explica os “sinais” usados para classificar conteúdos (Entenda a classificação e os sinais). A plataforma também diz ter “desenvolvido recursos que ajudam as pessoas a controlar o tempo que passam e o que veem na plataforma”.
O Facebook afirmou, em nota, que a empresa acredita ser importante ter transparência sobre como as recomendações baseadas em algoritmos são feitas. “Por isso, trabalhamos para ajudar as pessoas a entender e gerenciar as informações usadas para personalizar sua experiência. Por exemplo, em nossa Central de Ajuda há nossas diretrizes de recomendação e informações sobre o que influencia a ordem das publicações no Feed”, disse.
“Projetamos nossos serviços para serem úteis, não viciantes, e tomamos muitas decisões em toda a empresa que refletem isso. As equipes que gerenciam como o Feed funciona não têm metas definidas em torno do aumento do tempo gasto na plataforma, porque queremos ter certeza de que as equipes estão focadas no valor que entregam às pessoas e não apenas no incentivo ao uso”, completou.
O YouTube encaminhou um blogpost escrito pelo vice-presidente de Engenharia da plataforma, Cristos Goodrow. Nele, o executivo explica que o sistema de recomendação não se baseia em “fórmula pronta”, mas está em “constante evolução”. “Aprende diariamente com mais de 80 bilhões de pedacinhos de informação – que chamamos de ‘sinais’”, afirmou. Os sinais podem ser, conforme o texto, cliques, pesquisas de avaliação, tempo assistindo conteúdo e marcações de “gostei” e “não gostei”.
“Mas sabemos que nem todo mundo quer compartilhar esse tipo de informação com o YouTube. Por isso criamos controles que ajudam cada um a decidir quais dados está disposto a fornecer. A qualquer momento é possível pausar, editar ou deletar o histórico de vídeos assistidos e o histórico de pesquisa no YouTube”, escreveu.
Procurado, o Twitter não respondeu.
Regulação e reflexão
Encarar essa realidade e evitar o adoecimento com a lógica algorítmica é complexo, reconhecem os especialistas. Eles veem a necessidade de, em primeiro lugar, uma regulação legal sobre a atuação das empresas detentoras da plataforma, com foco na transparência sobre o funcionamento nos sistemas automatizados de recomendação.
Além de transparência, a influenciadora Nátaly Neri frisa que é necessário didática. “Quase nenhum criador de conteúdo vai ser letrado em marketing digital, porque muita criação de conteúdo começa de forma espontânea e natural. Fazer um texto frio e direto nesses termos não vai ajudar o criador que está em outra chave de pensamento, talvez mais criativa e intuitiva.”
Por outro lado, os pesquisadores acreditam que deve haver questionamento por parte dos usuários. “(Precisamos) revisitar nossa relação com as plataformas que foi se alastrando por esferas sociais. Revisitar um pouco o que é uma sociedade que se organiza a partir de imperativos da plataforma”, diz Issaaf Karhawi.
O processo não é fácil, relata Lu Ferreira, e envolveu dúvidas e batalhas internas. Foi só recentemente que teve, nas palavras dela, “coragem” de assumir a mudança pela qual passou. A influenciadora decidiu contar isso aos seguidores numa newsletter. “Me sinto aliviada em falar de novos assuntos, de deixar passar o que passou. Então mudamos. Não vou anunciar isso por aí, acho que já perceberam, né? Mas vim registrar essa carta, a primeira da Lu e não da Chata”, escreveu.
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