A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou pela 1.ª vez um tipo de terapia com células geneticamente modificadas considerada promissora no combate ao câncer. O tratamento usa células de defesa do próprio corpo, modificadas em laboratório, para atacar linfomas e leucemia. Aplicada há cinco anos nos Estados Unidos, a terapia tem bons resultados e abre portas para tratamentos no Brasil.
Pesquisas ainda em curso em todo o mundo buscam identificar benefícios da técnica para outros tumores, além do câncer com origem no sangue, como a leucemia. Especialistas calculam que, no Brasil, cerca de 2 mil pacientes, nos serviços públicos ou privados, podem ser beneficiados com esse tratamento por ano.
Chamada de CAR-T, a terapia consiste em alterar geneticamente as células T, de defesa do paciente, em laboratório. Com a alteração, elas são “treinadas” a matar as células do câncer. O tratamento é eficaz em pacientes que já passaram por outras intervenções, como quimioterapia e transplante, mas não tiveram melhora.
Segundo Jayr Schmidt Filho, diretor do departamento de hematologia, hemoterapia e terapia celular do A.C. Camargo Cancer Center, esse tipo de tratamento envolve uma série de conceitos inovadores no combate à doença.
“Trabalha-se com uma forma de terapia celular, pelo fato de ter células atuando contra a doença; com terapia gênica, ao fazer essa modificação genética; e medicina personalizada, porque que cada modificação que se faz é para o paciente unicamente”, explica o hematologista. Além disso, é uma imunoterapia, uma vez que há ativação do sistema imunológico.
O tratamento aprovado pela Anvisa é indicado para crianças e jovens até 25 anos com leucemia linfoblástica aguda (LLA) de células B, que não melhoram com outras intervenções ou que já tiveram duas recidivas (recaídas). Também é indicado para adultos com linfoma difuso de grandes células B nas mesmas condições.
“É um marco bastante importante e deve ser comemorado. Isso significa que o Brasil está entrando na era do tratamento da célula geneticamente modificada”, diz Renato Luiz Guerino Cunha, professor da Divisão de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular do Departamento de Imagens Médica, Hematologia e Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
O produto que recebeu o aval é o Kymriah, desenvolvido pela Novartis, a primeira a conseguir o registro nos Estados Unidos, em 2017. Aqui, o tratamento funcionará assim: as células T do paciente serão coletadas no serviço de saúde e exportadas para modificação nos EUA. Depois, retornam para ser infundidas (injetadas) nos pacientes em hospitais.
CUSTO
Um dos gargalos será o custo. O tratamento ainda não foi precificado no Brasil, mas, se seguir parâmetros semelhantes aos dos Estados Unidos, pode custar mais de R$ 1 milhão. “É notícia muito boa a Anvisa ter liberado”, diz Vanderson Rocha, professor titular de hematologia, hemoterapia e terapia celular da Universidade de São Paulo. “O problema é o acesso.” É possível que pacientes tenham de recorrer à Justiça para conseguir custeio pelo plano. E não há previsão de quando a tecnologia ficará disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), mas Rocha estima que isso pode levar dez anos. Uma solução contra essas barreiras é o desenvolvimento da técnica no Brasil – foco das pesquisas na USP.
Países como a Espanha, diz Rocha, já produzem as células modificadas em centros ligados à universidade. No Brasil, há a expectativa de que, no futuro, isso possa ser feito no Instituto Butantan, em São Paulo.
Em 2019, um paciente de 62 anos com linfoma foi submetido em caráter experimental à terapia CAR-T desenvolvida pela USP. Foi o 1.º da América Latina a passar pelo tratamento. Menos de 20 dias depois, apresentou remissão da doença. O desfecho do caso, porém, não pôde ser acompanhado porque o homem morreu em um acidente doméstico.
Segundo Rocha, outros quatro pacientes já receberam a infusão com células modificadas – os resultados com esse grupo ainda não foram divulgados. Até agora, brasileiros tratados com a terapia CAR -T conseguiram acesso ao tratamento fora do País pela via judicial ou porque foram incluídos em protocolos de pesquisa no exterior.
Foi o caso do comerciante mineiro Sérgio Eloy Gonçalves, de 62 anos, que participou em 2020 de um estudo em Ohio (EUA). Em 2012, ele descobriu um linfoma, tratou a doença, mas o câncer retornou após quimioterapia e transplante de medula. “Já estava muito mal, andando em cadeira de rodas.” A família se mobilizou para pagar a estadia nos EUA. “A coisa mais triste que tem é escutar que o câncer voltou. E mais triste ainda que não tem mais o que fazer.”
Após receber a infusão com as células modificadas, Gonçalves sentiu melhora quase imediata. Hoje, ele se dedica a divulgar o tratamento. “Estou jogando bola, fazendo caminhada e academia. Tenho um netinho de 7 meses que é minha paixão. Quero mostrar que existe esperança”, diz.
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