Apesar de não transmissíveis, doenças de pele visíveis carregam estigma difícil de ser superado

Quem sofre de psoríase, dermatite atópica, acne e vitiligo, enfrenta os sintomas físicos e também olhares e comentários invasivos, até dentro da própria família

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Por Marina Mori

"Moça, você queimou a sua pele? O que é esse estrago?”, perguntou o vendedor do quiosque de água de coco há pouco mais de um mês quando Bruna Sanches decidiu comprar um refresco para tentar aplacar o verão do Rio de Janeiro. Se a abordagem tivesse sido feita anos antes, quando o vitiligo ainda era um problema para a paulistana, o dia na praia teria terminado ali. Nem praia teria tido, na verdade – sua pele repleta de manchas claríssimas estaria escondida sob tecidos.

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Agora a história é outra. “Isso não pega. É que eu nasci com duas cores, moço”, respondeu de bom humor a diretora de arte de 34 anos, diagnosticada aos 18 anos.

Bruna faz parte dos 0,5% da população brasileira, cerca de 1 milhão de pessoas, segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), que convive com o vitiligo. A doença ganhou visibilidade com o começo do BBB 22. Uma das participantes, a mineira Natália Deodato tem vitiligo.

A condição faz com que a pele perca melanócitos, células que dão origem à pigmentação cutânea. O resultado é um mosaico de formas despigmentadas pelo corpo, que em geral não doem, mas normalmente atraem olhares de quem não está acostumado ao diferente.

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O mesmo tipo de abordagem e olhares costuma fazer parte do dia a dia de quem tem outros distúrbios crônicos de pele, como acne, dermatite atópica, psoríase e urticária crônica espontânea. Juntas, as doenças afetam milhões de brasileiros e, apesar de não serem transmissíveis, carregam um estigma difícil de ser superado.

Além dos comentários invasivos e maldosos – “ui, o que é isso na sua pele?”; “isso pega?”; “por que você não procura um médico decente?” –, pessoas que convivem com esse tipo de condição na pele precisam enfrentar não só os sintomas físicos, mas também toda a carga emocional que acompanha o diagnóstico. Manter uma rede de apoio atrelada ao cuidado com a saúde mental é um dos pilares na luta por qualidade de vida.

Bruna tem vitiligo desde os 18 anos: 'Nasci com duas cores', explica aos leigos com bom humor Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

“Há uma incidência maior de depressão, ansiedade e distúrbios do sono na população que enfrenta alguma doença de pele. Seja pela existência dos próprios sintomas ou pelo impacto social e emocional que eles geram”, explica a dermatologista Camila Nogueira, da SBD. Como forma de defesa, quem tem uma pele com lesões, descamações e vermelhidão tenta se esconder dos olhares dos outros a todo custo. “Esse é um movimento muito comum, que pode acabar levando até mesmo ao isolamento social”, afirma a psicóloga Jéssica Schimitt, especialista em terapia de família com foco em psicodermatologia. 

Segundo ela, a abordagem de estranhos representa uma invasão no corpo alheio. “A lesão exposta passa a mensagem de uma permissão para que o outro possa falar, o que não é verdade”. A falta de conhecimento também é combustível para uma série de preconceitos. Quase metade dos brasileiros, por exemplo, acredita que a dermatite atópica (DA) é causada por maus hábitos de higiene; 47%, segundo pesquisa do Datafolha encomendada pela biofarmacêutica Abbvie, em 2020. As percepções errôneas seguem com a crença de que alguém com dermatite atópica não deveria ter contato com crianças (46%), sair de casa (36%) e tampouco usar o transporte público (33%).

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Falta de informação favorece preconceito

De onde vem tanto preconceito com as doenças de pele? Jéssica arrisca um palpite: as histórias bíblicas que retratavam pessoas com hanseníase, cujo termo pejorativo, “lepra”, ainda ronda o vocabulário de muita gente. Apesar de contagiosa, tem cura e tratamento gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “(Na Bíblia), esses pacientes eram isolados e excluídos da sociedade para não contagiar outras pessoas”, diz.

Taise já teve que explicar sua psoríase para um clínico geral Foto: Arquivo pessoal

A falta de conhecimento não se restringe aos leigos. Muitos profissionais da Saúde também têm dificuldade de identificar corretamente as diferentes condições que afetam o maior órgão do corpo humano. “Recebo pacientes encaminhados com diagnósticos muito errados de coisas que não precisa ser um dermato para saber. Falam para o paciente que é contagioso, quando não é”, diz a dermatologista e professora Lívia Pino, que atua no SUS do Rio de Janeiro há 14 anos.

A fotógrafa Taíse da Silva Portugal, de 22 anos, passou por algo do tipo. Precisou explicar ao clínico geral de um hospital em Salvador que as placas avermelhadas nas suas pernas eram psoríase. “Dei quase uma aula. Depois ele lembrou o que era”, conta.

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No caso de Ana Flávia Reis, de 21 anos, a situação foi mais traumática. A mineira estava em uma consulta no auge de uma crise que durava três meses e não a deixava dormir, tomar banho ou vestir roupas por conta da pele machucada. Descobriu a dermatite atópica na pandemia. “A médica me xingou e disse que eu tinha que aceitar porque iria conviver com isso para o resto da vida”, conta a aluna de Direito.

Quando Ana disse que não tinha dinheiro para bancar o tratamento (hidratantes para peles atópicas custam na faixa de R$ 130 e duram menos de um mês, em casos graves), teve mais agressões. “Ela me chamou de dondoca e me mandou trabalhar, sendo que tenho dois empregos e faço faculdade. Disse para eu agradecer, porque tinha gente em situações de vida ou morte devido à covid.”

De acordo com os entrevistados, conhecer pessoas com experiências semelhantes pode trazer a sensação de pertencimento Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Preconceito em dobro

Se a discriminação contra a pele “fora dos padrões” faz parte do cotidiano de pessoas cisgênero, o peso do preconceito é ainda maior contra o público LGBTQIAPN+. A dermatologista Camila Nogueira, que dedica grande parte de seus atendimentos a pessoas transgênero, conta que muitos pacientes chegam com quadro de depressão crônica relacionado à disforia de gênero e questões de pele, o que podem agravar ainda mais a situação. 

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“São pessoas que estão passando por todo um processo delicado de ressignificação da sua individualidade, da forma como se apresentam ao mundo, como se estivessem trocando metaforicamente de pele. Por isso, uma doença na pele pode dificultar ainda mais esse processo”, diz a médica.

Quando o artesão Tarcísio da Costa Barbosa, de 27 anos, começou a reposição hormonal com testosterona, a mudança em sua pele foi tão radical ao ponto de ele tentar o suicídio. “A inflamação das espinhas era tanta que eu nem conseguia dormir. Evitava as pessoas por vergonha, até minha companheira. Até hoje, quando visito minha mãe, a toalha de rosto que uso é separada de todos e vai direto para a máquina de lavar”, conta.

O surgimento de acne é comum nesse processo, segundo a dermatologista. “Os homens transgênero passam por uma ‘segunda puberdade’. Com isso, sofrem os efeitos que o excesso de andrógenos pode acarretar, como a acne e a calvície”, explica Camila.

O analista de planejamento e estratégia Paulo Renato Braga, de 33 anos, teve de enfrentar também um desafio emocional ao perceber a pele mudar nos últimos três anos a cada reposição hormonal, de quatro em quatro meses. “Tive muito julgamento da própria família. Me perguntavam: ‘Nossa, mas está feio, né?’, ‘Por que isso?’, ‘Você está comendo muita besteira?’”

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Rede de apoio é essencial para compreensão

A saída para não se render aos comentários alheios e ao próprio desconforto é buscar conhecer pessoas que compartilhem de experiências semelhantes. “A vergonha é um sentimento alimentado justamente pelo silêncio. Por isso, a rede de apoio é um lugar potente e produz saúde ao possibilitar a sensação de pertencimento e identificação”, explica a psicóloga. 

Tarcísio se fortaleceu ao trocar mensagens com outros homens trans por meio das redes sociais. Bruna ressignificou seu vitiligo em um perfil no Instagram, que se tornou referência no assunto. E a atriz, cantora e professora de artes Juliana Tostes, de 28 anos, ampliou sua voz ao criar em 2013 o maior grupo de dermatite atópica no Facebook, hoje com quase 36 mil pessoas.

Embora o grupo exista há quase dez anos, saúde mental e sua relação com a pele são assuntos recentes. “Só agora tenho visto gente falando sobre isso”, conta a mineira. É preciso avançar mais. “A gente tem de levar conscientização para quem que não tem uma condição de pele, porque não faz nem ideia do que é”, diz Juliana. “O segundo passo é ver pessoas com pele como a nossa no dia a dia, em campanhas. A gente não vê porque essas pessoas tendem a se esconder.”

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Conheça as condições dermatológicas

As doenças a seguir têm origem multifatorial e forte componente genético. Não são transmitidas para outras pessoas e tampouco têm relação com falta de higiene.

  • Acne. Causada pela inflamação de folículos e glândulas sebáceas, a acne clássica tende a se iniciar na puberdade. A proliferação de bactérias como a Cutibacterium acnes favorece o surgimento das lesões. 
  • Dermatite atópica. Uma deficiência de lipídios que protegem a barreira cutânea torna a pele suscetível ao ressecamento. Isso provoca coceira incessante, formando placas espessas e lesões inflamadas pelo corpo. Muito comum em crianças (de 15% a 25%), ela afeta 7% dos adultos. 
  • Psoríase. Caracterizada por placas avermelhadas e intensa descamação, costuma se manifestar nos cotovelos, nos joelhos ou no couro cabeludo. No mundo, a estimativa é de que 125 milhões de pessoas convivam com a doença. 
  • Urticária Crônica Espontânea. Diagnósticos errôneos dificultam tratamentos assertivos para esta condição que impacta muito a qualidade de vida. A coceira intensa forma lesões que se mantêm ativas por mais de seis semanas.
  • Vitiligo. Se caracteriza por manchas brancas (perda da coloração da pele) devido à diminuição ou ausência das células responsáveis pela formação da melanina, pigmento que dá cor à pele. A condição está associada a algumas doenças autoimunes.

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