A vacina russa Sputnik V, cuja liberação no Brasil é alvo de polêmica entre o Congresso e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), já obteve registro em 17 países, mas ainda não passou pelo crivo das mais tradicionais agências regulatórias do mundo, como a americana, a europeia e a japonesa.
De acordo com a assessoria do Fundo Direto de Investimento Russo (RDIF), responsável pelo desenvolvimento do imunizante junto ao Instituto Gamaleya, o produto já obteve aval em nações das Américas, Ásia, Europa e África.
Na América Latina, ela recebeu autorização para uso emergencial em cinco países: Argentina, México, Bolívia, Venezuela e Paraguai. Também deram aval para utilização do produto Rússia, Belarus, Sérvia, Argélia, Palestina, Turcomenistão, Hungria, Emirados Árabes Unidos, Irã, República da Guiné, Tunísia e Armênia.
O RDIF ainda não submeteu os pedidos de registro na Food and Drugs Administration (FDA), agência regulatória americana, nem na Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Na terça-feira, a agência de notícias estatal russa RIA chegou a divulgar que o pedido havia sido submetido e aceito pelo órgão europeu, mas a informação foi desmentida pela EMA nesta quarta, 10. A agência esclareceu que apenas ofereceu consultoria científica ao Instituto Gamaleya sobre o processo de submissão.
Muitos desses registros provisórios foram dados antes mesmo da publicação científica dos resultados da fase 3 dos estudos da Sputnik V, o que ocorreu só no último dia 2, na revista Lancet, quando muitos países já estavam usando o imunizante. Os resultados da publicação apontaram eficácia de 91,6% contra a covid-19. A falta de transparência da Rússia na divulgação das informações sobre o produto vinha alimentando desconfiança.
Para especialistas, a publicação dos dados dos ensaios clínicos em uma revista científica de prestígio melhora a reputação da Sputnik V no mundo, mas sua aprovação em quase duas dezenas de países não é garantia de que todas as agências foram rigorosas na avaliação.
“O FDA e a EMA são agências que têm um histórico de seriedade, robustez das análises. As outras agências a gente não acompanha tanto, elas não pautam decisões do mundo inteiro”, explica Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.
“Claro que a publicação do artigo na Lancet deu um alívio para a comunidade científica. Os resultados estão muito bem apresentados, de forma clara. Mas para a Anvisa, não basta só a publicação científica, ela precisa analisar outros aspectos, como boas práticas de produção na fábrica”, esclarece a especialista, que elogia a competência técnica da agência brasileira.
Ex-diretor da Anvisa e hoje consultor em assuntos regulatórios, Ivo Bucaresky concorda. Ele diz que a agência precisa ter acesso a dados mais detalhados. “Medicamentos podem ter diferenças por conta do clima e características da população. Também é importante verificar as condições de produção do fabricante que vai fornecer para o país, porque, principalmente em produtos biológicos, como vacinas, pode haver variação grande. Por isso é importante uma análise criteriosa", afirma.
"A Anvisa hoje tem um corpo técnico que a coloca no mesmo nível das grandes agências, não é razoável dar apenas cinco dias para análise e obrigar a agência a aprovar automaticamente vacinas aprovadas fora”, diz Bucaresky, referindo-se à Medida Provisória aprovada pelo Senado que dá cinco dias para a agência conceder aval emergencial a vacinas autorizadas em outros países, como Rússia e Argentina. O atual presidente da Anvisa, Barra Torres, disse que a mudança feita pelo Congresso afeta a credibilidade do órgão regulador e ameaça ir ao Supremo Tribunal Federal contra a MP.
Bucaresky destacou, entre os países que já aprovaram o uso emergencial da Sputnik, a atuação das agências do México e da Argentina. “Elas são sérias, mas precisamos saber como a análise foi feita lá. A Anvisa pode ser proativa e trocar informações com as agências desses países”, opina ele.
Os especialistas afirmam que, independentemente da análise feita nos outros países, é preciso respeitar a autonomia da Anvisa. “A agência regulatória precisa ter autonomia e independência. Decisões técnicas não são feitas no Congresso. A agência precisa ser soberana e proteger a saúde da população. Isso transmite segurança nas campanhas de vacinação”, diz Natalia.
Gestão Bolsonaro negocia compra de imunizante russo
Para não depender principalmente da Coronavac, imunizante associado ao governador paulista, João Doria (PSDB), o Ministério da Saúde tenta avançar na compra da Sputnik V e da Covaxin, desenvolvidas, respectivamente, na Rússia e na Índia. A Anvisa, porém, ainda aguarda mais dados sobre a segurança e a eficácia da Sputnik. No caso da Covaxin, os resultados da fase três de ensaios clínicos ainda não foram divulgados.
O objetivo é comprar 10 milhões de doses da Sputnik, importadas da Rússia, e 20 milhões da Covaxin. A entrega das remessas do imunizante russo, porém, deve ser fracionada em até três meses após a assinatura do contrato de compra. A União Química tem acordo com o Instituto Gamaleya, responsável pela Sputnik, para fabricar essa vacina no Brasil, mas isso só deve ocorrer a partir de abril. Nos bastidores do governo federal, defensores dizem que a Sputnik poderia se tornar “a vacina de Bolsonaro”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.