Artes marciais e os benefícios para a saúde mental

Adultos e crianças se beneficiam das técnicas de esportes como kung fu e jiu jitsu, que ensinam equilíbrio dentro e fora do tatame

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Foto do author Danilo Casaletti

Manter o equilíbrio emocional atualmente não é das tarefas mais fáceis, sobretudo pelo período pelo qual a humanidade passa, com pandemia e todas as consequências trazidas por ela. Um bom caminho para encontrar a saúde mental – que não está apenas relacionada à ausência de transtornos, mas também envolve o equilíbrio e a forma com que o indivíduo lida com sentimentos – pode ser no tatame, praticando uma luta ou arte marcial.

Kung fu trabalha a disciplina e ajuda a se concentrar no momento Foto: Werther Santana/Estadão

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Bianca Tomie, 32 anos, pratica kung fu há 11. Ela procurou a atividade no período de vestibular. As aulas, à época, a ajudaram a aplacar as crises de ansiedade. “O kung fu trabalha muito com disciplina. É preciso estar presente naquele lugar, fazendo exercício físico. E isso te ajuda a focar no momento, no agora, e a perder a aflição pelo que virá. Na luta não tem como mentir ou disfarçar a pessoa que você é. Isso te faz encarar seus problemas”, diz.

A arte marcial chinesa também ajudou Bianca a regular o sono quando seu filho nasceu e a ter mais confiança para dirigir automóveis. E mais: a incentivou em uma ação de transição de carreira. Ela abandonou a área da engenharia civil, na qual se formou, e passou a trabalhar com desenvolvimento de software, atividade que ela pode desenvolver em casa, mais perto do filho.

Há 2 anos, Bianca começou também a dar aulas de kung fu na academia em que treina. “Eu era muito tímida. Não imaginava que seria capaz de falar na frente de outras pessoas. O kung fu me ajudou a ver uma coisa difícil como se fosse um pequeno percurso, etapas simples que precisam ser vencidas”, afirma.

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'Pessoa excelente'

O shifu – o mestre ou líder no kung fu – de Bianca é Adriano Ropero, proprietário da academia Shi Zhan, no bairro da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo. Ele, que ensina a luta desde 2001, explica que kung fu, em chinês, significa “pessoa excelente”. O centro, então, é a pessoa, e não a luta em si. “O aprendizado físico é o mais simples que tem. Agora, o espiritual é se conectar com a humanidade e com sua comunidade. Isso é desenvolvimento pessoal”, diz Ropero, que também é árbitro internacional.

Bianca começou a praticar kung fu há 11 anos para aplacar as crises de ansiedade Foto: Werther Santana/Estadão

Ropero diz que um dos principais objetivos de qualquer arte marcial é a supressão do ego, ou não dar lugar às emoções, positivas ou negativas, na execução de uma técnica. Segundo ele, quando a emoção toma conta, o resultado é o nocaute.

Isso, segundo ele, pode ser transposto para a vida. Ropero usa um exemplo pessoal, ocorrido com ele em uma reunião de negócios. Ao ser encurralado, ele usou o princípio da Garra de Águia, ou Ying Zhao, que é se aproximar de maneira sorrateira e arremessar ao chão. Fora do tatame, obviamente, isso não significa agredir outro indivíduo.

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“Havia cinco pessoas contra mim, me atacando. Eu deixei uma delas me atacar de maneira mais contundente. Quando ela fez isso, eu o questionei por que ele estava sendo tão agressivo comigo. Consegui reverter. E as demais pessoas se voltaram à minha defesa. Se eu atacasse todos de uma vez, ficaria em desvantagem”, explica.

Segundo ele, a arte marcial é a violência levada ao ápice. Isso não significa que o praticamente comum vai lutar como nos combates de MMA ou nos filmes protagonizados por Jackie Chan. Porém, o combate é essencial para que se alcance os objetivos. Tudo de maneira controlada.

 

Benefícios para ansiedade e depressão

O professor de Neurofisiologia da Unifesp Ricardo Mario Arida diz que na literatura médica e esportiva há diversos estudos que demonstram que a prática de esportes em geral, e também das artes marciais, traz vários benefícios. Contribui para a melhora da cognição, além de auxiliar no tratamento de transtornos mentais, como depressão e ansiedade, e na manutenção da autoestima.

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Para quem sofre de depressão e ansiedade, por exemplo, a prática regular esportiva é benéfica, pois promove a regularização de neurotransmissores importantes como adrenalina e dopamina.

Em 2019, Arida publicou na revista científica Brazilian Journal of Medical and Biological Research, ao lado de outros profissionais, entre eles, o ortopedista Breno Schor, médico do Comitê Olímpico Brasileiro, um estudo que acompanhou por dois anos 56 atletas da seleção brasileira de judô, homens e mulheres, com índices olímpicos ou mundiais. 

Objetivodas artes marciais é a supressão do ego. 'Quando a emoção toma conta, o resultado é o nocaute', explica o shifu Adriano Ropero Foto: Werther Santana

Essa investigação codificou uma proteína no sangue chamada BDNF (um fator neurotrófico), relacionada à plasticidade cerebral, que são alterações estruturais e funcionais frente a estímulos internos ou externos. Cerca de 70% dessa proteína presente no sangue advém do sistema nervoso. 

No estudo, os judocas foram orientados a correr na esteira, um exercício repetitivo, para que o sangue deles fosse coletado após a atividade. Em outro dia, os atletas simularam uma luta, um esporte coletivo, e o sangue foi igualmente coletado. Nas duas situações (e os testes foram feitos na mesma frequência cardíaca), o BDNF aumenta. Porém, esse aumento foi maior após a luta – não houve diferença significativa entre os sexos.

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“A sugestão do estudo é que atividades que requerem técnicas, estratégias, atenção e força, como as artes marciais, ativam mais as áreas cerebrais e, por consequência, o aumento desse fator que nos dispusemos a medir”, explica Arida. 

Os pesquisadores observaram que quando um indivíduo pratica uma atividade física há o aumento da expressão dessa proteína no cérebro – e ela está relacionada com diversos fatores, entre eles, a sobrevida e a proliferação e manutenção das células do sistema nervoso.

Isso traz, segundo a Arida, um bem-estar para o praticante. “Não só a arte marcial, mas também outros esportes coletivos, como o basquete, o futebol ou o vôlei. Elas desenvolvem esses aspectos de estratégias. Isso é demonstrado, inclusive, em exames de imagem”, diz.

Esse estímulo perdura no corpo, em função da liberação de endorfina e serotonina, os chamados hormônios do prazer, entre outras substâncias, em uma atividade mais intensa, de 30 a 40 minutos, no mínimo, dura de trinta minutos a 2 horas, de acordo com cada indivíduo.

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Arida fala ainda sobre a sensação de “mente esvaziada” quando se pratica uma luta. Segundo ele, isso vem da concentração que a arte marcial exige. Um movimento errado pode fazer, por exemplo, com que você leve um golpe do adversário ou até perca a disputa.

“Você pode correr e pensar na vida? Pode. Você pode lutar e ficar pensando na vida? Talvez não”

Ricardo Mario Arida, Neurofisiologista da Unifesp

 

Reflexo no dia a dia

O professor de jiu-jítsu Luciano Nucci, o mestre Casquinha, dá aulas da modalidade desde 1996. Responsável pela unidade Mooca da Alliance, equipe doze vezes campeã mundial, com unidades em diferentes partes do mundo, ele sabe como poucos a importância que a arte marcial nascida no Japão há mais de 3.600 – aqui no Brasil a família Gracie criou um método que ficou conhecido como jiu-jítsu brasileiro – tem não só para a saúde física, mas também para a mente.

De acordo com Casquinha, o tatame ajuda no autoconhecimento. “Você aprende a conhecer seus monstros esuas limitações e a buscar ferramentas para solucioná-los. A luta traz a evolução do seu eu, se você estiver disposto a buscá-la, claro”, diz. 

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'Você aprende a conhecer seus monstros e suas limitações e a buscar ferramentas para solucioná-los', diz o professor de jiu-jítsu Luciano Nucci Foto: Alex Silva/Estadão

Na metodologia que ele aplica, os iniciantes têm de fazer 60 aulas apenas para aprender os movimentos. Só então são expostos a confrontos com outros alunos – uma maneira de exercitar a paciência e domar a ansiedade.

Ele explica que, no método de ensino, o aluno repete os movimentos até que ganhe consciência e excelência. Porém, no instante da luta, quando há movimentos casados, ele terá de agir como um jogador de xadrez. E, por isso, a concentração passa a ser uma aliada fundamental para responder ao oponente de forma satisfatória. 

“O que você vive no tatame, vive fora também. Se o cara chega todo desarrumado para o treino, faixa mal amarrada, é porque ele é desorganizado. Se chega atrasado, certamente faz o mesmo no trabalho. Com o tempo, aprendi a saber quem é quem”, diz.

 

Orientação para as crianças

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Apesar dessa possibilidade de progresso pessoal e não só corporal, ele afirma que ainda são poucos os atletas ou academias que aplicam meditação ou promovem a consciência da importância da respiração. Por isso, Casquinha decidiu, durante a pandemia, investir na base e aperfeiçoar o método de ensino do jiu-jítsu para as crianças.

O instrutor diz ter notado que as crianças estavam ficando cada vez mais inseguras, não só com as exigências e o excesso de informações do mundo moderno, mas também com as incertezas e perdas trazidas pela pandemia. Pequenas crises de pânico e ansiedade são queixas frequentemente relatadas pelos pais, segundo o instrutor.

Mestre Casquinha em aula com crianças: ajuda para inseguranças e crises de ansiedade trazidas pela pandemia Foto: Alex Silva/Estadão

Para montar a metodologia, Casquinha e a educadora física Claudia Mendonça de Barros utilizaram os princípios da psicomotricidade – ciência que busca conectar aspectos emocionais, cognitivos e motores em diferentes faixas etárias. 

“Fizemos um calendário de aulas. Há os jogos de luta, que ensinam a modalidade, e as brincadeiras. A linguagem das crianças menores é o brincar. Na parte motora, implantamos habilidade do equilíbrio, importante no jiu-jítsu. Elas vivenciam com o corpo uma situação na qual ela vai antecipar a ação do oponente por meio de um jogo de queimada, por exemplo”, explica Claudia, proprietária da Movimento Mirim, empresa dedicada a cursos de atualização para professores de educação física e empresas. Ela já atendeu clubes como Pinheiros, Paulistano, Harmonia, Sírio entre outros.

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A reportagem do Estadão acompanhou uma aula para crianças de 5 a 8 anos – há um outro grupo de 9 a 12. Cerca de 20 delas ocupavam um amplo tatame no andar térreo da academia. Comandadas por três professores, elas ora treinam movimentos básicos do jiu-jítsu – de ataque e defesa –, ora faziam atividades lúdicas, como estourar bexigas ou pega-pega. 

Por aula, dois alunos são escolhidos como os ajudantes do dia. O menino recebe a faixa com desenho do Super-Homem, e a menina,da Mulher Maravilha. “Isso empodera as crianças. Elas passam a ter mais confiança, aprendem a ser mais solícitos e ficam menos tímidos. Aprendem também que não podem fazer bullying”, diz Casquinha.

Mais que atletas, queremos formar adultos com bons hábitos

Casquinha, mestre de jiu-jítsu

De acordo com Claudia, assim como os adultos, as crianças que se movimentam, pelo menos três vezes por semana, em uma atividade física estruturada, têm ganho de habilidades como, por exemplo, a memória. Além disso, há o trabalho no foco atencional. “Você favorece a espontaneidade da criança. Ela aprende a frear o corpo e isso tem influência no seu comportamento. A criança que tem um bom equilíbrio motor, tem também um bom equilíbrio emocional”, diz.

Ao final da aula, os professores reúnem todos os alunos e anunciam quem são os ganhadores dos graus – são tirinhas de fita adesiva coladas nas faixas que significam que o praticante está evoluindo na faixa em que está. Apenas três deles receberam. Esses graus também estão ligados ao comportamento fora do tatame, como bons hábitos, alimentação e cuidados com o meio ambiente. Nesses últimos, os pais são apoio fundamental. Uma chance de eles se envolverem em todo o processo.

“É um percurso. A criança precisa viver a angústia da espera para, depois, conquistar o prêmio, que não é a medalha ou o grau, e sim o resultado da história que ela construiu. É a meritocracia de verdade, com todos partindo do mesmo ponto”, explica Claudia.

COMO O ESPORTE PODE AJUDAR NA SAÚDE MENTAL

  • O sedentarismo favorece o aparecimento de transtornos mentais. É importante se mexer.
  • Escolha um esporte que lhe dê prazer. Dessa forma, é mais fácil ele se tornar um hábito de vida.
  • Atletas quando se machucam e precisam ficar parados por longos períodos podem entrar em uma fase depressiva pela falta da atividade física. Isso mostra o quanto ela é importante quando vira rotina.
  • Uma atividade em grupo, como a arte marcial, promove a interação social. Para quem passa por um momento difícil, é uma boa opção ao esporte solitário. 
  • Quem sofre de ansiedade e depressão pode ter dificuldade em começar a praticar uma arte marcial pela falta de motivação – e também por dificuldades cognitivas. Porém, ao iniciar a prática esportiva, logo os benefícios são sentidos.

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