Barbara Gancia compartilha marcas deixadas pelo álcool na luta por sobriedade; leia entrevista

“Recebo mensagens de pessoas agradecendo por tê-las ajudado a parar de beber”, conta a jornalista, que lança neste mês a segunda edição do livro ‘A Saideira’

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Por Mônica Manir
Atualização:
Foto: Werther Santana/Estadão
Entrevista comBarbara GanciaJornalista e autora do livro 'A Saideira'

Hoje, Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo, várias serão as estatísticas divulgadas. A maioria provavelmente será vexaminosa quanto ao cenário de enfrentamento à dependência no Brasil. Foi nesse contexto que a jornalista Barbara Gancia, de 67 anos, achou por bem reprisar suas próprias vergonhas diante do alcoolismo e, mais que isso, destacar seu processo de recuperação.

A um passo de completar 18 anos longe da bebida, a ex-integrante do Caderno 2, do Estadão, e do programa Saia Justa, do GNT, lança neste mês a segunda edição do livro A Saideira, desta vez pela Editora Matrix. A proposta, como revela na entrevista a seguir, dada em companhia da esposa Marcela de Castro Bastos e dos cães Lulu e Boris, é, em suma, ser mais acessível aos tantos que buscam o caminho de fuga dessa doença incurável, progressiva, muitas vezes fatal e ainda tão despudoradamente negligenciada no País.

O que a motivou a lançar uma segunda edição de A Saideira?

O livro começou a ter um impacto bastante grande porque passou a ser recomendado por médicos e especialistas em saúde. Recebo pelo menos uma a duas vezes por mês mensagem de gente falando “Muito obrigado por me fazer parar de beber”. Se tivesse acontecido uma vez, já valia ter escrito o livro, mas acontece o tempo inteiro. Só que as pessoas vão procurar o título e não o encontram na livraria. Sete anos depois, resolvi relançar por outra editora.

Além disso, teve um fato muito significativo nesse meio tempo, que foi a peça Bárbara. Veio um menino na minha casa chamado Bruno Guida, um jovem diretor, e perguntou se eu gostaria que meu livro virasse uma peça. Três meses depois, ele apareceu dizendo que tinha conseguido o patrocínio e uma atriz global, a Marisa Orth. Ela estava comemorando 40 anos de carreira e queria uma peça que fosse memorável. A peça já rodou o Brasil algumas vezes, foi para Recife, Salvador, Minas, Curitiba, Santos, Campinas, Jundiaí, Piracicaba, Goiânia, Brasília. Quase 50 mil pessoas já a assistiram. É um monólogo. Chama-se Bárbara com acento, o meu nome não tem acento. É bárbara no sentido de fantástica, e não de invasora (risos). A gente quis incluir essa parte da peça no livro.

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Como foi a repercussão da peça junto ao público?

Nas primeiras vezes, foi muito comovente porque uma das contrapartidas da Lei Rouanet é que você tem de fazer um trabalho social. Então, a gente convidava muitas comunidades para assistir. E as comunidades, por incrível que pareça, são os lugares onde as pessoas têm mais informação sobre bebida no País, definitivamente. Elas sabem das reuniões dos Alcoólicos Anônimos, dos Narcóticos Anônimos, da Al-Anon (associação que presta ajuda a familiares e amigos de alcoólatras), conhecem os 12 passos e os princípios. Eu já fui a palestra lá na Rocinha e uma criança conversou comigo de igual para igual porque tinha um pai que era dependente. Sabia conversar sobre alcoolismo em alto nível.

Como o Brasil lida com o alcoolismo?

O Brasil é recordista mundial em acidentes de trabalho por causa do álcool. É recordista mundial de violência doméstica, e muitas dessas intercorrências estão ligadas ao alcoolismo. Mas ninguém fala sobre isso. Temos a bancada do boi, da bala e da Bíblia, mas falta um “b”, que é o da bebida.

A indústria da bebida está presente em Brasília de forma maciça. Tem um lobby muito grande quanto às leis, à regulamentação. Cerveja não é tratada como bebida alcoólica, veja os horários de propaganda, o jeito como é vendida. A gente não tem fiscalização. O próprio público é contra fiscalizar. O certo seria cadastrar com idade as pessoas que vão comprar bebida, mas ninguém quis. Todo mundo falou que seria invasão de privacidade. Então, garçom serve álcool para jovem, todo mundo serve álcool para quem está caindo de bêbado.

"Temos a bancada do boi, da bala e da Bíblia, mas falta um 'b', que é o da bebida", diz jornalista sobre o lobby da indústria em Brasília Foto: Werther Santana/Estadão

O que parece dar mais resultado no combate ao alcoolismo?

As regras da OMS (Organização Mundial da Saúde) mudaram tanto... Antes, a proposta era restringir a venda da bebida, restringir o horário, aumentar o preço. Viram que esse tipo de política funciona, mas muito pouco.

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O que está dando mais resultado é a prevenção. É começar a educar a criança desde cedo, desde os 6 anos, quando ela começa a ter noção do certo e do errado. O Mauricio de Sousa fez uma cartilha junto com a Rosely Sayão e o Dr. Arthur Guerra que foi lançada pela Ambev. O lançamento foi no cinema do Shopping JK para funcionários da própria Ambev. Eu fiquei na porta fazendo um vídeo institucional para eles e perguntando para os funcionários quando seria conveniente começar a conversar com os filhos sobre bebida. Disseram 16, 18 anos. Não sabiam, não têm noção do que é essa doença.

Em 2024, a Fundação Oswaldo Cruz, a pedido das organizações ACT Promoção da Saúde e Vital Strategies, fez um estudo que verificou que, no Brasil, as bebidas alcoólicas respondem por 12 mortes a cada hora. Ou é morte por motivo fútil, porque o cara briga no bar, ou é morte por acidente de trânsito, ou por overdose, porque o cara bebeu e tomou outra coisa junto, ou o cara bebe e bate na mulher, ou é câncer de fígado, esôfago, bexiga, pâncreas.

Em A Noite da Arma, livro que você menciona, o jornalista David Carr escreve que, quando uma mulher tem problemas com substâncias químicas, é identificada por muitos nomes, como “cadela” e “perdida”, e vista como uma carga para a sociedade. Isso não aconteceria com os homens. Acha que ainda é assim?

Muitas vezes, o homem que bebe é visto como brincalhão, bonachão. A mulher é simplesmente uma vergonha para a família, um negócio inaceitável. Meu pai se negava a discutir a minha dependência: “Não quero falar sobre isso”. Não conseguia nem digerir.

As mulheres hoje em dia têm poder aquisitivo e estão bebendo mais porque também têm mais liberdade, mais acesso. Virou uma coisa mais aceitável, mas ainda assim tem preconceito. Acontece que, se o alcoolismo leva, digamos, 10 anos para se manifestar no homem, leva metade do tempo para mudar o metabolismo no corpo das mulheres. Essa mudança de metabolismo significa que as células passam a perceber que a euforia vem de fora e sempre por meio dessa substância. O corpo, que habitualmente trabalha em modo econômico, para de produzir endorfina, serotonina, dopamina por conta própria. Então, toda vez que a pessoa está nesse processo e para de beber, cai numa angústia tremenda. Não consegue olhar para um pôr do sol e ter prazer.

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Além disso, tem muita mulher jovem bebendo hoje em dia, e bebendo gim. As influencers falam que gim tem pouca caloria, só que gim é o último estágio do alcoolismo, é algo que causa até delírio. Eu nunca bebi gim, para você ter uma ideia, e o pessoal faz jarra de dry martini. Essas meninas que bebem gim com 20 anos de idade, e bebem em grande quantidade, com 24 podem estar alcoólatras.

David Carr investigou a própria história como dependente de drogas entrevistando pessoas com quem conviveu, já que muitas vezes acordou de ressaca sem saber o que tinha acontecido. Você fez algo parecido para recuperar momentos em que sua memória apagou?

Eu fiz isso também, usei esse método para fazer o livro. Eu tenho blackouts até hoje, tenho bem pouca memória. Sou uma pessoa totalmente sequelada, tomo remédios para não ter impulsividade e para facilitar a minha vida. Então eu fui entrevistar meus amigos: “Olha, aquela coisa que aconteceu foi de fato isso?”. A maioria das pessoas, por incrível que pareça, me absolvia e amenizava a história. Com alguns, eu inclusive retomei a amizade depois de 20 anos. Um deles disse que, certa vez, estava comigo no meu carro e que, de repente, brequei no meio da (Avenida) 23 de Maio e o carro de trás bateu no meu. Eu não me lembrava disso.

No fundo, este é um livro de memórias.

E das piores. Não tem memória boa. Quiseram usar o livro para fazer o roteiro de um filme, mas não sei quem no Rio de Janeiro achou a história pesada. Não é uma história leve porque não tem nada de leve no alcoolismo. O que a pessoa passa enquanto busca parar de beber não dá para aliviar. Não tem como chegar e fazer uma Sessão da Tarde disso.

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De qualquer forma, eu escrevi para o alcoólatra e para a família dele em linguagem coloquial para ele ler rapidamente, para ele não fugir do assunto, e fiz isso de uma maneira pseudoescrachada porque eu tenho esse jeito de ser escrachada sem ser. Mas levei dois anos para escrever e só fiz isso após a morte dos meus pais. Não queria que eles revivessem isso. Minha irmã, por exemplo, não queria ver a peça nem ir ao lançamento do livro. Ela sofreu bastante enquanto tudo estava acontecendo. Durante madrugadas, meu pai acordava ela e meu irmão e mandava um para o IML, outro para o Hospital das Clínicas, à minha procura. No fim das contas, ela foi ver a peça e chorou o tempo todo.

Você menciona que consumia cocaína, mas não escreveu um livro sobre esse tipo de droga. Por quê?

Porque todo mundo tem sua droga de escolha. Eu jamais teria cheirado cocaína se não tivesse bebido. Aliás, eu nunca cheirei cocaína sem beber. Eu não tenho atração nenhuma por essa droga, aliás, por nenhuma outra, para falar a verdade. Eu fui cheirar cocaína nos últimos cinco anos, antes de parar de vez. Cocaína é um negócio asqueroso, é a droga do demônio, é o demônio ralado, como dizem. É uma droga mercantilista, que consome tudo à volta muito rapidamente. Só que a cocaína serve para tirar a bebedeira. Você fica elétrico, então segura mais tempo e consegue virar a noite. Pode, inclusive, beber mais. Aí você cheira, e bebe mais um pouco. Não fosse pela bebida, eu jamais teria entrado nessa.

"Para mim, na verdade, os 12 passos são um código de vida: viva o dia de hoje", afirma Barbara Foto: Werther Santana/Estadão

Quando você menciona a internet, é para tratar do pânico de que alguém pudesse flagrar um momento seu alcoolizada. Acha que as redes sociais perdoam e até autorizam os porres alcoólicos?

Isso não é pilequinho. O problema é que o alcoólatra faz coisas escabrosas. Por isso a sala de autoajuda nos grupos de apoio é tão boa. Todo mundo ali dentro tem coisas escabrosas que não consegue contar para médico nenhum. Quando você ouve um falando, outro falando, você pensa “Estou em casa”. E todo mundo ali tem esse pânico da internet.

Você continua criticando a resistência de psiquiatras, psicanalistas e psicólogos ao trabalho dos Alcoólicos Anônimos?

No Brasil, a gente tem muito preconceito contra grupos de ajuda como os Alcoólicos Anônimos. Dizemos “Só tem maluco lá dentro”, quando quem está lá dentro tem a sanidade de ver que tem um problema e está querendo parar.

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A própria natureza da terapia, da análise, é fazer um mergulho para dentro de si mesmo, conseguir se ouvir e, a partir de então, relacionar o que houve na sua vida e o que vai fazer a partir daí. No mínimo, é um ano de análise antes que você consiga se entender. É muito longo. O alcoolismo, quando mostra as garras, precisa ser lidado de imediato porque, na hora em que a pessoa percebe que é alcoólatra, provavelmente já está correndo perigo de vida, já está saindo por aí bebendo e dirigindo, se metendo em encrenca, bebendo sozinha em casa, caindo, batendo a cabeça e morrendo, como muitas vezes acontece.

Os 12 passos dos Narcóticos Anônimos e dos Alcoólicos Anônimos destacam Deus ou um poder superior a quem o dependente deveria entregar sua vontade. Acha que isso poderia afastar quem não é religioso, por exemplo?

A força superior é para manter você humilde. Tem de ter a regência de algo maior do que você porque o alcoólatra é muito onipotente, muito megalomaníaco: “Eu faço e desfaço”, “Eu dou porrada”, “Eu vou para o bar”, “Eu bebo a hora que quiser”. Então é preciso algo maior, um espectador silencioso, para que se curve a alguma coisa. É como se fosse a consciência.

Para mim, na verdade, os 12 passos são um código de vida: viva o dia de hoje. Só existe hoje. Se você construir o hoje bem, o amanhã vai ficar melhor e o ontem vai limpar a sua barra. Quando você está bebendo, o seu ontem é um horror, você nem lembra o que aconteceu. E a previsão do seu amanhã é péssima. Trata-se de uma doença progressiva, sem cura e mortal.

Como o alcoólatra tem baixa capacidade de lidar com a frustração, precisa de um espectro pequeno: “Hoje eu vou ser legal com a minha mulher, ser legal com a minha funcionária, cumprir com as minhas obrigações, dar comida para o meu cachorro, não vou deixar ninguém na mão”. Mais para frente, ele faz uma reflexão sobre como está sua vida, vê o que fez de errado ou não, reavalia, pede desculpa para quem tem de pedir, vai em frente e ajuda quem pode ajudar. É isso a vida.

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