Rafael tinha apenas um quilo e 28 semanas dentro do útero da mãe quando enfrentou seu primeiro grande desafio. Diagnosticado com malformação cística adenomatóide de pulmão, uma espécie de tumor benigno de crescimento rápido, ele precisou passar por uma cirurgia antes de oficialmente vir ao mundo. Ainda na barriga da mãe, o feto foi operado para que os médicos pudessem remover a massa sólida que já ocupava 90% da sua caixa torácica e comprimia seus pulmões e coração.
“Na maioria dos casos, quando diagnosticamos essa malformação, monitoramos o crescimento dessa massa e damos medicamentos corticoides para reduzir seu volume e protelar o tratamento cirúrgico para depois do nascimento. No caso do Rafael, demos corticoides, mas não houve resposta. A única chance era a cirurgia. Se o tumor continuasse crescendo, o feto morreria”, afirma o cirurgião e obstetra Antonio Moron, responsável pelo serviço de Medicina Fetal do Hospital e Maternidade Santa Joana, onde o procedimento foi feito.
Diante do quadro, a equipe informou a psicóloga Monique Araújo Batista, de 46 anos, mãe de Rafael, de que ela e o bebê teriam que passar pela operação. “Quando eu tive o diagnóstico, eu só chorava porque você não imagina esse tipo de coisa quando fica grávida. Bateu muito medo, mas eu não tive dúvidas sobre ir para a cirurgia. Os médicos disseram que, se a gente não fizesse, a chance de o Rafael sobreviver era de 5%. Se fizéssemos, era de 50%”, diz.
A operação ocorreu no dia 6 de julho de 2022 e envolveu 26 profissionais. Moron explica que, na cirurgia, foi feita uma incisão na barriga de Monique para que o útero fosse retirado da cavidade abdominal e o feto pudesse ser operado. “Com o útero exposto fora do abdome, mapeamos onde estava a placenta e o tórax da criança e fizemos uma abertura no útero de forma a não impactar a placenta. Tínhamos três ambientes cirúrgicos: o da mãe, o do feto e um terceiro com a estrutura toda montada caso houvesse alguma intercorrência e tivéssemos que fazer o parto de emergência”, diz o especialista.
Acesso venoso inovador
Uma técnica inovadora contribuiu para o êxito da cirurgia – o bracinho direito de Rafael foi tirado para fora do útero para que fosse colocado na mãozinha do bebê um acesso venoso pelo qual ele receberia os medicamentos durante a operação.
Em outras cirurgias do tipo, esse acesso normalmente é realizado pela punção do cordão umbilical, prática que oferece mais riscos à criança. “É o primeiro caso que temos conhecimento no Brasil que realizou esse tipo de acesso venoso. Nos inspiramos em um colega americano, um cirurgião pediátrico renomado da Cleveland Clinic, que havia feito uma cirurgia semelhante em abril e compartilhou os detalhes da técnica”, diz Moron, referindo-se ao prestigioso centro médico de Ohio, nos EUA.
Para que o acesso venoso na mão do feto fosse possível, a equipe cirúrgica convocou a enfermeira Thalita Bridi, que atua na UTI neonatal do Santa Joana e tem mais de 20 anos de experiência na área, inclusive na punção venosa de bebês prematuros.
“Na minha vida profissional, já tive que puncionar veias de prematuros extremos, com menos de 750 gramas. Então a punção em si não me assustava. O desafio foi o cenário. Estar toda paramentada para entrar no campo cirúrgico, ver aquela cena frente ao útero. Eu nunca tinha puncionado um paciente que eu não via o rostinho. Foi uma sinergia muito grande da equipe”, afirma a enfermeira.
Thalita relata que usou em Rafael uma agulha de 0,7 milímetro de calibre e 14 milímetros de comprimento. Para efeito de comparação, a agulha mais usada em adultos tem 1,3 milímetro de calibre e 32 milímetros de comprimento.
“Esse acesso venoso foi importante para garantir o suporte hemodinâmico (circulatório) para a criança. A gente abriu o tórax do bebê, tirou o tumor e, em todo esse período, a criança se manteve estável”, afirma Moron.
Depois de três horas de cirurgia, a equipe médica informou o administrador Rodrigo Barbosa Gonçalves, de 46 anos, marido de Monique e pai de Rafael, de que a operação havia sido bem-sucedida e que mãe e filho passavam bem. “Foi assustador porque, por ser uma cirurgia muito delicada, não tínhamos garantia de nada. Quando me chamaram para falar que estava tudo bem, respirei aliviado”, diz Gonçalves.
Sem sequelas
A remoção do tumor foi completa e Monique deu seguimento à gravidez. Rafael nasceu no dia 30 de julho e precisou ficar algumas semanas internado por ter nascido com 31 semanas de gestação. Ele teve alta no dia 8 de setembro e se desenvolve normalmente.
Por ter nascido prematuro, precisa passar por sessões de fisioterapia para ajudar na parte respiratória, mas não ficou com sequelas da malformação. “Nunca imaginei que uma cirurgia do bebê dentro do útero poderia ser feita, mas fiquei muito feliz por ter essa possibilidade porque foi o que salvou a vida dele”, diz Monique.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.