Beber 'socialmente' também traz riscos à saúde; veja como minimizá-los

Mesmo em pouca quantidade, o consumo de álcool pode facilitar a formação de tumores cancerígenos e outras doenças; moderação é regra fundamental

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O vinho com as amigas, a cervejinha que desinibe, o uísque que ajuda a relaxar na poltrona da sala de casa após o expediente. O hábito de beber de forma moderada, “socialmente”, sem dependência, parece só ter benefícios, especialmente no contexto de tensão da pandemia. Mas os especialistas da área de saúde sugerem cautela também quando o consumo é considerado “moderado”, já que os riscos existem mesmo quando as doses são pequenas, e variam de uma pessoa para outra.

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Quando um paciente diz que “bebe socialmente”, o gastroenterologista Roberto José de Carvalho Filho costuma perguntar: “Mas qual é o seu padrão social?”. Professor da Universidade Federal Paulista (Unifesp) e responsável pelo Laboratório de Doença Hepática, Carvalho observa que é muito comum uma pessoa acreditar que está fazendo uso social moderado quando, na verdade, está fazendo uso abusivo do álcool, nocivo para a sua saúde. 

E, quanto mais frequente e maior a quantidade desse consumo, maior é a possibilidade de desenvolver doenças cardíacas, do fígado, gastrointestinais e transtornos mentais, entre outros problemas de saúde – segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo abusivo de álcool está associado a 200 doenças. De acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig), realizado em setembro de 2021, 55% dos brasileiros com mais de 18 anos consomem bebidas alcoólicas e 32% bebem semanalmente. 

Laura Pereira de Souza bebe apenas uma ou duas taças de vinho por semana, para relaxar: 'Quanto menos beber, melhor para a saúde' Foto: Werther Santana/Estadão

Carvalho explica que cada pessoa tem uma sensibilidade diferente para o álcool e que o risco do consumo varia conforme fatores como sexo, doenças associadas e predisposição genética. “Por conta dessa variação, é perigoso definir um limite de bebida para uma pessoa. É verdade que o consumo ocasional traz um risco menor, mas ao mesmo tempo esses fatores devem ser levados em consideração”, alerta. “É duro dizer isso, mas a ciência tem mostrado que não existe consumo de álcool sem risco.” Segundo ele, até os benefícios do vinho para o coração estão em xeque: “Já sabemos que uma pequena dose de vinho diminui o risco de enfarte, mas aumenta o risco de derrame.”

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Quanto maior a dose, maior o risco

A ingestão de álcool está associada a sete tipos de câncer, afirma o oncologista clínico e sanitarista Ronaldo Corrêa, pesquisador da Área Técnica de Alimentação, Nutrição, Atividade Física e Câncer da Coordenação de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer (Inca). Segundo o especialista, a ingestão de álcool, mesmo em doses mínimas, aumenta o risco de desenvolver câncer.

Quanto maior a dose e maior a frequência de consumo, maior o risco. Ele também afirma que há um efeito “cumulativo” nocivo do álcool: se o uso é frequente, os tecidos não têm tempo para se recuperar – por isso, alguns dias de “pausa” na bebida são importantes. Já foram identificados diversos mecanismos de formação do câncer que envolvem o álcool, segundo Corrêa. Um deles tem a entrada de agentes cancerígenos nas células facilitada pelo álcool, que funciona como um “solvente” para substâncias nocivas, presentes em alimentos e poluição, por exemplo.

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“É duro dizer isso, mas a ciência tem mostrado que não existe consumo de álcool sem risco.”

Roberto José de Carvalho Filho, gastroenterologista

O oncologista explica que, nas mucosas que entram em contato com a bebida alcoólica, como a boca, a faringe, a laringe e o estômago, o risco relativo (em relação a quem é abstêmio) de desenvolver câncer nessas áreas é mais alto do que quando o contato com o álcool é “indireto”, caso de câncer de mama, fígado e colorretal. 

Dá para beber em segurança?

Diante da verdade inconveniente de que não há como apontar limite seguro para a saúde no consumo de álcool, qual seria a atitude mais cuidadosa para quem não abre mão do prazer da bebida? Estar com check-up médico em dia é o primeiro passo, recomenda o endocrinologista Fábio Rogério Trujillo. “Se indicadores dos exames de rotina como enzimas hepáticas ou triglicérides não estiverem alterados, o risco de consumir bebidas alcoólicas de forma moderada é baixo, embora não seja possível garantir a segurança”, ressalta. 

O problema é que nem sempre as pessoas têm percepção real das quantidades ingeridas. Trujillo conta que teve um paciente que dizia tomar apenas “um cheirinho” de uísque após o trabalho, todos os dias. Porém, começou a perceber que a garrafa secava rapidamente. Suspeitou dos funcionários da casa, mas, ao checar as imagens da câmera de segurança, percebeu que o “culpado” era ele. “O comportamento de minimizar o consumo de álcool é bem comum”, afirma o médico.

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Mas o que é considerado um consumo “moderado” pelos profissionais de saúde? Para a OMS, o recomendável é não exceder 2 doses-padrão (10 gramas) de etanol puro por dia e ficar sem beber durante pelo menos dois dias da semana. Isso significa que a quantidade de bebida vai variar conforme o porcentual etílico dela. Nos padrões da entidade, então, uma pessoa saudável tem como limite beber até 500 ml de cerveja por dia ou 200 ml de vinho, até 5 vezes por semana. 

Outro parâmetro respeitado pelos especialistas é o do National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (Niaaa), que considera que a dose-padrão tem 14g de etanol puro, recomendando o limite de 14 doses semanais para os homens, sem ultrapassar duas doses por dia, e sete doses para mulheres, que não devem ultrapassar uma dose-padrão por dia. Ou seja, para uma mulher saudável não é recomendável pela Niaaa beber por dia mais do que 350 ml de cerveja ou 150 ml de vinho ou 45 ml de destilado (vodca, uísque), enquanto o parâmetro dos homens tem o dobro desse limite.

Mulheres estão bebendo mais

Com um nível menor de enzimas responsáveis pelo metabolismo de álcool em relação aos homens, as mulheres demoram mais tempo para degradá-lo no organismo. Além disso, por terem um porcentual de água mais baixo no corpo, ficam com o álcool mais concentrado e por mais tempo no organismo, de acordo com o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), organização da sociedade civil que se dedica à divulgação de estudos científicos para a conscientização e prevenção do uso nocivo de bebidas alcoólicas. 

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A fisioterapeuta Laura de Souza pratica exercícios e tem alimentação balanceada: 'Eu penso a longo prazo, tenho consicência do impacto na saúde' Foto: Werther Santana/Estadão

O Cisa alerta que cresce perigosamente o consumo de bebidas alcoólicas por mulheres no Brasil, acompanhando o ritmo global. “As mulheres estão começando a beber mais cedo do que os homens. Além disso, observamos um comportamento de consumo intenso de bebidas alcoólicas por mulheres após os 35 anos, que está relacionado à inserção da mulher no mercado de trabalho e a condições desfavoráveis em relação aos homens, como responsabilidades e pressão social, que deixam a mulher mais angustiada, propensa a recorrer ao álcool”, explica o psiquiatra Arthur Guerra, presidente executivo do Cisa. 

De 2010 a 2019, cresceu em 26% o número de mulheres que bebem, segundo a Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde. Os danos, infelizmente, acompanharam o crescimento: segundo estudo do Cisa, houve aumento de 19% no número de internações relacionadas ao uso de álcool entre as mulheres, entre 2010 e 2018.

Há diversos mecanismos que levam ao desenvolvimento do câncer de mama a partir do consumo de álcool, de acordo com o oncologista Ronaldo Corrêa, do Inca. Em um deles, o álcool provoca o aumento da quantidade de hormônios sexuais circulantes no corpo, o que pode causar a doença. O metabolismo do álcool também pode ser um fator inflamatório no tecido mamário, provocando câncer. “A ingestão moderada de bebidas alcoólicas pode até não aumentar tanto o risco de câncer de mama em mulheres adultas jovens, mas com a idade esse comportamento traz um risco maior para esse tipo de câncer”, reforça.

Laura Pereira de Souza, fisioterapeuta, de 23 anos, gosta de tomar vinho para relaxar, mas segue o seu lema: “Quanto menos beber, melhor para a saúde”. Há cerca de um ano, ela passou a consumir uma ou duas taças nos fins de semana, em casa. “Meus pais sempre beberam, mas eu nunca tinha encontrado uma bebida que me agradasse. Até que experimentei um vinho suave, bom para o meu paladar.” Zelosa com o seu corpo, Laura pratica exercícios físicos, como ioga e jump, cinco vezes por semana, e busca sempre ter uma alimentação balanceada. Para ela, o limite de duas taças por noite vem naturalmente, sem esforço. “Eu penso a longo prazo, tenho consciência do impacto na saúde”, avalia.

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Consumo cresceu durante a pandemia

A pandemia levou a um aumento do consumo de bebidas alcóolicas no Brasil e no mundo, identificado em diversos levantamentos. No Brasil, 18% dos entrevistados afirmaram que aumentaram o uso das bebidas alcoólicas, em estudo do projeto ConVid, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizado em 2020.

Na pesquisa, quanto maior a frequência de se sentir triste ou deprimido, maior o aumento do uso de bebida alcoólica, percentual que chegou a 24%. No levantamento da Ibrafig, realizado em 2021, dos 55% dos brasileiros que têm o hábito de consumir bebidas alcóolicas, 17,2% disseram que aumentaram o uso na pandemia, com associação a quadros de ansiedade. Em pesquisa feita pela Organização Pan-Americana da Saúde em 2020, 42% dos brasileiros relataram alto consumo de álcool durante a pandemia da covid-19.

O empresário Eduardo Carrasco de Menezes, 40 anos, recorreu às bebidas alcoólicas para aliviar as tensões decorrentes da pandemia. Dono de uma academia de ginástica, ele teve que fechar as portas durante o lockdown e temeu que seu negócio fosse à falência. “Ocioso e angustiado, eu passei a beber em casa, pelo menos três vezes por semana”, conta. No começo, se contentava com as cervejas que comprava na promoção do supermercado, mas depois passou para bebidas mais fortes, como o uísque.

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Quando a gente envelhece, a ressaca é pior do que era quando mais jovem. O único jeito de prevenir a ressaca é beber menos

Roberto José de Carvalho Filho, gastroenterologista

Passada a fase mais difícil, Menezes resolveu parar de beber. “O álcool me deixava muito acabado, fisicamente e mentalmente, e por isso eu deixava de ajudar minha esposa em casa, de brincar com o meu filho”, justifica. “Quero ficar saudável para me dedicar à minha família e ao trabalho e ser um bom exemplo para funcionários e clientes na academia.”

Quando mais jovem, Menezes conta que bebia abusivamente, mas ele não sentia tanto o impacto no corpo. Com 20 e poucos anos, trabalhava como DJ, bebia na balada e emendava com outras festas regadas à álcool. Agora, com 40 anos, seu corpo reclama dos excessos.

“Quando a gente envelhece, a ressaca é pior do que era quando mais jovem”, explica o professor da Unifesp Roberto José de Carvalho Filho. Segundo o médico, a tolerabilidade ao álcool vai diminuindo com a idade. 

Carvalho afirma que, quando há ressaca, o consumo de álcool já está abusivo. Segundo o médico, a ressaca é um alerta do corpo, pois vem do efeito tóxico do álcool. “A ressaca está relacionada à quantidade de álcool ingerida. Portanto, o único jeito de prevenir a ressaca é beber menos”, esclarece.

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Além da ressaca, outro indício de que o consumo de álcool está deixando de ser moderado para se tornar abusivo é a mudança de padrão na quantidade e na frequência. “Se você identifica que com o passar do tempo está bebendo cada vez mais, significa que você está passando para o estágio anterior à dependência. É preciso ficar alerta”, recomenda Carvalho.

Com um olhar realista, o oncologista Ronaldo Corrêa, do Inca, pondera que a existência humana tem seus riscos, que devem ser medidos por cada indivíduo de forma consciente. “É difícil promover um comportamento que seja totalmente isento de risco, inclusive para o câncer”, esclarece.

É difícil promover um comportamento que seja totalmente isento de risco, inclusive para o câncer

Ronaldo Corrêa, oncologista

O médico faz a observação de que reduzir ou zerar o consumo de álcool faz parte de uma série de recomendações de saúde que podem ser incorporadas no nosso cotidiano, como boa alimentação e atividades físicas regulares. “Cada pessoa deve conhecer esse risco e analisar, na vida dela, o que pode fazer para diminuí-lo.” 

Os riscos da bebida na adolescência

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Ingerir bebida alcoólica antes dos 18 anos é absolutamente contraindicado – além de a venda para menores ser proibida por lei –, não só pela maior vulnerabilidade a violências a que ficam sujeitos quando bebem como por comprometer o desenvolvimento de um corpo ainda em formação. E, quanto mais precoce é a experimentação, maior é o risco de dependência. “O adolescente está com o seu sistema nervoso em desenvolvimento e o álcool pode atrapalhar esse processo de formação”, explica o psiquiatra Jairo Bouer.

Bouer diz que o adolescente é motivado socialmente a experimentar precocemente as bebidas alcoólicas para provar para si mesmo e para o grupo que é capaz de beber. Eles acessam as bebidas no convívio com amigos e irmãos mais velhos ou conseguem beber o que tem em casa. “É como um rito de passagem para a idade adulta”, ilustra. No caso de jovens, ele observa que, geralmente, os episódios de consumo de álcool são abusivos por conta da percepção precária de quem ainda é inexperiente com bebidas e não conhece os seus limites.

Os possíveis impactos do álcool

  • Cérebro e sistema nervoso: Mesmo em baixas quantidades, o consumo de álcool está associado a deficiências cognitivas, demência, ansiedade e depressão, segundo o Cisa. 
  • Sistema cardíaco: Mesmo o consumo moderado de álcool, abaixo dos limites definidos pela OMS, aumenta o risco de problemas cardiovasculares, revelou uma pesquisa da Anglia Ruskin University (ARU) publicada em dezembro de 2021.
  • Emoções negativas: Pouco álcool ajuda a desinibir, mas doses a mais já podem provocar sensações de depressão e ansiedade, além da diminuição da paciência.
  • Câncer: Pesquisadores da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), encontraram indícios de aumento de risco de diversos tipos de câncer entre quem tem consumo moderado (até duas doses por dia) de álcool. Este grupo representou 1 em 7 dos novos casos de câncer em 2020.
  • Fígado: O órgão que metaboliza 90% álcool consumido é sobrecarregado se o consumo das bebidas for rápido e/ou excessivo. Ao longo do tempo, isso pode gerar problemas como a esteatose alcoólica (gordura no fígado), um problema silencioso, que só vai apresentar sintomas quando evoluir para um quadro mais grave.
  • Irritação gástrica: O consumo de álcool pode irritar as mucosas da boca, do esôfago e estômago, causando queimação, má digestão e enjoo. O contato direto com essas partes do corpo aumenta o risco de câncer.
  • Vilão da dieta: O álcool é calórico e seu consumo frequente pode provocar aumento de peso. 
  • Ressaca: É um sinal de que o consumo deixou de ser moderado e se tornou abusivo. A frequência dela deve ser um alerta. 

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