Bets e Tigrinho: Como a Noruega conseguiu reduzir pela metade a taxa de jogadores patológicos?

Limites de perdas, cassinos online fechados durante a madrugada e ‘busca ativa’ estão entre as medidas adotadas no país nórdico, que apresenta uma das menores prevalências de transtorno do jogo no mundo

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Foto do author Leon Ferrari

Os jogos de azar estão legalizados em boa parte do mundo, mas as jurisdições parecem ignorar a dimensão de saúde pública dos danos das apostas, segundo um estudo publicado na revista The Lancet Public Health. Os países nórdicos, afirmam as pesquisadoras, se saíram melhor na avaliação, embora pouco se saiba sobre a eficácia das medidas adotadas.

Após ver o jogo problemático crescer com a popularização dos cassinos online, a Noruega endureceu e atualizou as regras vigentes, e captou uma queda na prevalência de pessoas com comportamento de jogo patológico, de 1,4%, em 2019, para 0,6%, em 2022. O país apresenta uma das menores prevalências de transtorno do jogo no mundo — apesar de ser difícil comparar as taxas mundialmente, uma vez que os estudos, por vezes, usam metodologias diferentes.

Noruega tem regras específicas para jogos de azar, como a obrigatoriedade de um cartão de identificação para cada jogador Foto: burdun/Adobe Stock

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Por lá, a indústria do azar é um monopólio estatal. Apenas duas empresas, a Norsk Tipping, que oferece jogos de cassino e apostas online, e a Norsk Rikstoto, que opera apostas em corridas de animais, podem operar no País. Segundo a Norwegian Gambling Authority, o órgão regulador, o lucro dos jogos é alocado para “boas causas” aprovadas pela entidade.

Enquanto alguns países nórdicos planejam abandonar os monopólios estatais e adotar o modelo de licença (que permite a atuação da iniciativa privada, sob regras locais) — ou já o fizeram —, esse não será o caso da Noruega, conta Ståle Pallesen, professor da Universidade de Bergen e um dos autores do relatório da prevalência do jogo problemático no País.

O que é melhor: um modelo de licença ou monopolista?

É difícil responder, avalia Pallesen. “Há argumentos favoráveis para ambos os modelos.”

Uma revisão, publicada em 2021, na revista científica Current Addiction Reports, atestou que o modelo monopolista estava em queda com a popularização dos jogos online, mas pelo menos 20% das nações do mundo ainda o adotavam, principalmente quando se tratava da operação das loterias nacionais. Apesar de apontar uma falta de dados empíricos (que observam os impactos na prática), o estudo avaliou que as configurações monopolísticas parecem estar conectadas a níveis menores de danos em comparação aos sistemas de licenciamento.

No entanto, indicou que os monopólios pareciam estar ligados a mais conflitos de interesse. “Mas também foi sugerido que uma situação semelhante pode surgir se os operadores privados ganharem influência política significativa por meio de lobby ou outras conexões com governos. Isso indicou que as motivações fiscais tiveram prioridade sobre o avanço do bem da sociedade em todos os regimes.”

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Do ponto de vista mais filosófico, “talvez o sistema norueguês seja melhor”, avalia Pallesen. “Trata-se de uma empresa estatal de apostas, e o dinheiro gerado vai para clubes esportivos para crianças e adolescentes, e outras atividades culturais. De alguma forma, a receita retorna para a sociedade, o que não acontece no modelo de licenciamento, no qual pessoas ricas enchem os bolsos, às vezes, com o infortúnio de outros.”

Como surgiu o monopólio estatal do azar na Noruega?

Até o início dos anos 2000, segundo Pallesen, a Noruega tinha uma das legislações mais liberais da Europa para jogos de azar. “E muitos problemas por conta disso”, recorda o professor.

O ponto de virada foi o avanço das máquinas de apostas eletrônicas, geralmente controladas por empresas estrangeiras, que eram encontradas em clubes esportivos e até cafeterias. “A Noruega chegou a ter a terceira maior densidade per capita dessas máquinas de jogos altamente agressivas no mundo.”

Elas foram banidas, e o parlamento decidiu que o monopólio das apostas seria estatal. Logo após essa decisão, a Noruega foi um dos primeiros países no mundo a exigir registro obrigatório para apostar. Ou seja, para se engajar em qualquer prática de jogo, a pessoa precisa de um “cartão de jogo de azar”, que é vinculado ao seu número da previdência social.

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“Essa abordagem permite definir limites de apostas, rastrear atividades de jogo e garantir que indivíduos que se autoexcluíram ou correm risco de problemas com jogos sejam impedidos de jogar”, explica Pallesen.

De certa maneira, em termos de saúde pública, decisões como essa passam um recado importante: os danos do jogos não são somente uma responsabilidade individual, isto é, do jogador problemático.

“Claro, existem alguns fatores de risco individual, como ser um homem, jovem e vir de um cenário de restrições socioeconômicas. Eles têm mais problemas de saúde, em geral, que outras pessoas, e o jogo não é uma exceção. Mas elementos estruturais, como disponibilidade e a forma como o mercado é regulamentado, também têm um impacto significativo”, fala Pallesen.

Medidas que surtiram efeito

A partir de 2014, a empresa estatal de apostas passou a oferecer também jogos online e, entre 2015 e 2019, a Noruega viu um aumento de jogadores problemáticos.

Segundo a Universidade de Bergen, as possíveis causas para a alta foram, entre outros, o incremento na proporção de pessoas participando de jogos de azar, a exposição à publicidade e a maior disponibilidade de jogos de azar na internet.

Conforme já mostrou o Estadão, os cassinos e as apostas esportivas online (bets) adicionaram uma nova camada de preocupação para os profissionais de saúde. Eles apontam que o potencial de um jogo de azar para criar dependência tem a ver com a rapidez do reforço e a continuidade do estímulo. Nesse sentido, um caça-níquel na palma da mão pode gerar tanta dependência quanto o crack.

Isso parece já se traduzir em dados. Segundo o novo relatório da Universidade de Bergen, uma proporção significativamente maior de jogadores problemáticos ou com risco moderado joga na internet, em comparação com jogadores normais ou de baixo risco.

Frente ao aumento, a aposta da Noruega foi reforçar o monopólio. Segundo Pallesen, uma das medidas foi aplicar de forma rigorosa a proibição de que bancos noruegueses fizessem transferências para contas de empresas de jogo de azar estrangeiras. Com isso, também não é possível depositar prêmios obtidos nessas empresas em uma conta norueguesa.

Outra medida imprescindível, diz, foi a redução no limite de perdas em jogos online. Foram duas diminuições no período de 2019 a 2022: a primeira em 2020, quando o limite passou de 10 mil coroas norueguesas por mês para 7,5 mil, e a segunda em 2021, para 5 mil coroas norueguesas mensais (cerca de 430 euros).

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Simplesmente informar as pessoas sobre os perigos (dos jogos de azar) não é o bastante

Ståle Pallesen, professor da Universidade de Bergen

Além disso, houve o bloqueio de sites estrangeiros (bloqueios de Domain Name Systems) e a recente proibição de propaganda em canais estrangeiros transmitidos na Noruega. Os cassinos online também não operam durante boa parte da madrugada.

As empresas estatais também fazem uma espécie de busca ativa: ligam para os jogadores quando percebem que eles estão perdendo ou jogando mais do que costumavam. O histórico de movimentações nos jogos pode ser facilmente acessado pelo próprio jogador.

Nesse sentido, Pallesen aponta que, do ponto de vista de saúde pública, só informar sobre os possíveis danos do jogo não é suficiente. “Simplesmente informar as pessoas sobre os perigos não é o bastante. Precisamos de regulamentações específicas, como limites de perda, a possibilidade de autoexclusão, a regulamentação da propaganda, e impedir as pessoas de apostarem em sites de jogos estrangeiros, onde provavelmente não há limites de perda ou outras restrições ao jogo”, avalia.

‘Eles não buscam ajuda’

Com uma população de 5,4 milhões de pessoas — pouco menos da metade da população da cidade de São Paulo —, a Noruega tem cerca de 150 clínicas públicas para tratar adicções, e pelo menos metade delas está preparada para lidar com o transtorno do jogo, segundo Pallesen.

“Os registros de saúde na Noruega mostram que, nos últimos dez anos, apenas oito mil pessoas receberam o diagnóstico de transtorno do jogo. Isso é algo comum em todo o mundo: os jogadores infelizmente tendem a não buscar tratamento”, alerta.

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