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Bets e Tigrinho: ‘O único jogo responsável é não apostar’, diz psiquiatra

Hermano Tavares, professor da USP, fundou e coordena o Programa Ambulatorial do Jogo Patológico, e é uma das principais referências no Brasil e na América Latina sobre o transtorno do jogo

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Foto do author Leon Ferrari
Atualização:
Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO
Entrevista comHermano Tavarespsiquiatra, professor da USP e coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico

O Jogo do Tigrinho, como são popularmente chamados caça-níqueis online, e as apostas esportivas, as bets, não saem da boca e da palma da mão dos brasileiros, principalmente desde o ano passado, quando foram regulamentados. Enquanto as cartas eram postas na mesa, pesquisadores e profissionais da saúde não se sentiram ouvidos. Alguns relatam viver uma espécie de déjà-vu com o tabaco.

O psiquiatra Hermano Tavares, professor associado da Universidade de São Paulo (USP), fundador e coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-AMJO), é uma das principais referências no Brasil e na América Latina sobre o transtorno do jogo — distúrbio reconhecido pela Organização Mundial da Saúde desde 2018, e que fica ao lado da adicção em substâncias, como álcool e cocaína. Ele nunca foi chamado pelo Ministério da Saúde ou da Fazenda para falar sobre a regulamentação das apostas online. “Nem eu, nem o grupo de pessoas que trabalham com isso na USP”, conta ao Estadão.

Hoje, ele considera que o transtorno que estuda há décadas virou epidemia – o que ocorreu após um processo de legalização e regulamentação que, na avaliação dele, não foi nada democrático, e da definição de regras “flagrantemente insuficientes pensando no jogo patológico”.

O “jogo responsável”, principal bandeira das empresas que exploram esse mercado, é um problema semântico. Afinal, quando a brincadeira envolve coisa séria, tem como ser responsável ou seguro?

“O único jogo responsável é não apostar. O termo mais correto seria ‘apostas com máxima minimização dos riscos’”, defende.

'Nós sempre convivemos com algum tipo de aposta na nossa comunidade ou tecido social', diz Hermano Tavares Foto: Alex Silva/Estadão

Em entrevista ao Estadão, ele diz o que precisamos fazer para enfrentar este cenário. Confira:

Do ponto de vista de saúde pública, legalizar as apostas online foi um erro?

Sou a favor de uma sociedade que preza a liberdade. Obviamente, a minha liberdade termina onde começa a sua. Então, se você se fecha no porão de casa, com mais três primos, e vai jogar pôquer valendo, sei lá, dois reais o pingo, não tenho nada a ver com isso. Agora, se você e seus primos querem abrir um estabelecimento comercial para explorar comercialmente o jogo de azar, que é um potente formador de hábito, isso não diz mais respeito ao foro individual de vocês, diz respeito a toda a sociedade.

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Eu acho que, por exemplo, não deveria haver a exploração comercial do álcool, mas o que acontece? As pessoas vão e produzem álcool informalmente, eventualmente, sem seguir certas regras necessárias de segurança e de saúde. Então, quando você legaliza, ganha uma oportunidade de garantir condições mínimas de segurança da oferta desses produtos.

É uma falácia dizer que jogo estava proibido no Brasil, nunca esteve. Nós sempre convivemos com algum tipo de aposta na nossa comunidade ou tecido social. O que se discute é quanto mais vamos viabilizar, em termos de exploração comercial, e qual vai ser a retaguarda que vamos construir para poder lidar com os problemas que esse tipo de ampliação do acesso necessariamente vai causar. Quanto podemos ampliar, mas sendo capazes de conter o prejuízo?

Isso é um ajuste específico que cada sociedade tem que fazer. Temos que fazer esse debate. Não é muito democrático como está sendo agora: lobbys se organizam no Congresso, definem o que vai acontecer, trava-se uma disputa interna e, depois, a população aceita o que tiver sido deliberado. O debate está longe de ser verdadeiramente democrático.

Pensando no impacto do jogo patológico, as regras que temos hoje são suficientes?

São flagrantemente insuficientes pensando no jogo patológico. Pensando numa coisa que é mais importante até que o próprio jogo patológico, que é educação da população e a prevenção dos problemas com apostas. Não podemos ficar só pensando no jogador compulsivo, que precisa obviamente de amparo, mas tem que pensar na pessoa que tem alguma vulnerabilidade para que possa ser protegida e não venha desenvolver problemas futuros com apostas. Estamos muito longe de atingir o mínimo ideal.

Quais seriam, então, os critérios mínimos?

Divido em três segmentos:

  • Medidas universais: para todo mundo;
  • Medidas seletivas: para pessoas que têm uma vulnerabilidade suposta;
  • Medidas indicadas: para os indivíduos já acometidos (por problemas com o jogo).

As universais são:

  • Toda e qualquer aposta desse país deveria ser feita mediante um cadastro do seu CPF: para que o CPF que está apostando ser contrastado, num certo período de tempo, com a declaração de renda. Se o que é apostado excede muito aquilo que é declarado como renda, vai ser feita uma investigação ativa, para saber se a pessoa tem um problema, como um transtorno do jogo, ou se está incorrendo em fraude financeira.
  • Restrição de horário: por exemplo, na Holanda e na França, você não consegue fazer apostas das 00h às 8h. Uma pessoa que recorrentemente é encontrada fazendo a aposta de madrugada, durante um dia útil, muito provavelmente é um jogador compulsivo. Isso protege o indivíduo de ficar perseguindo prejuízos noite adentro e aumentando, na verdade, a perda financeira.
  • Definição de um teto máximo para apostas: tem pesquisa nossa que mostra que o teto máximo daquilo que pode ser considerado saudável é um comprometimento (com apostas) de até 5% da renda mensal familiar. Indivíduos gastando de 5% a 10% possivelmente têm um comportamento de risco, e indivíduos gastando mais que 10% da renda muito provavelmente apresentam um transtorno do jogo. Você pode identificar isso e também pode orientar o jogador no sentido de ‘olha, você vai apostar, defina antes quanto você vai gastar hoje’. ‘Nesses últimos 30 dias, já apostou tanto, e o seu teto para apostar em um dia é tanto e, para apostar em 30 dias, é tanto’. A liberdade para decidir o teto máximo de gasto é uma coisa que, ao contrário do que as pessoas pensam, é muito bem-vinda pelos apostadores. Eles sentem que isso os protege e impede de perder o controle.

Para as medidas seletivas, vou focar naqueles que são indispensáveis:

  • Não pode fazer promoção de aposta para menor de idade: isso já de cara traz um complicador, porque temos tanto anúncio de bet em camiseta de time e durante o jogo de futebol e nos intervalos das atividades esportivas. Isso é um absurdo.
  • Influenciadores e pessoas que tenham grande popularidade junto ao público juvenil não podem fazer promoção de apostas e, pior ainda, divulgar mensagens fraudulentas, como ‘jogar pode ser um complemento de renda’. Nunca será. As probabilidades estão contra o apostador, é assim que as casas de jogos fazem lucro.

Já as medidas indicadas são:

  • Lista de autoexclusão: hoje, elas são uma iniciativa das próprias bets, no sentido de dizerem que têm preocupações com o cliente e com o jogo responsável. O cara está indo muito mal, entra no site da bet e pede para ter o acesso bloqueado. Mas quem gerencia essa lista é a própria bet. Minha experiência com meus pacientes é que, depois de seis meses, a autoexclusão se expira automaticamente e meu paciente passa a receber promoções. ‘Você está há muito tempo afastado, aqui está um cupom de R$ 100 para gastar.’ Permitir que a bet faça o gerenciamento dessa lista é pedir para a raposa cuidar do galinheiro. Ela deve ser gerenciada por uma terceira parte não envolvida com as apostas. Pode ser o próprio governo ou uma comissão de indivíduos da sociedade civil
  • Ampla disponibilização de programas de psicoeducação e autoavaliação para os apostadores: se você acha que tem um problema, o ideal seria acessar um site, que não seja gerenciado por nenhuma bet, e preencher uma série de perguntas. Não são muitas: com quatro perguntas já saberia se tem um problema com o jogo e qual o nível dele.
  • Oferecer suporte remoto: no momento em que tiver esse site, é preciso também oferecer algum tipo de suporte. O ideal é que seja remoto porque o online vai te propiciar a possibilidade de uma coisa rápida, e muitas vezes a pessoa também mora numa cidade que não tem acesso a um serviço (presencial). Tem que ter profissionais disponíveis para atender essas pessoas sete dias por semana e 24 horas por dia, para dar um suporte inicial a esses indivíduos.
  • Oferecer suporte presencial: depois, é preciso organizar o Sistema Único de Saúde (SUS). Dentro do SUS, temos a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), na qual os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ocupam um papel nevrálgico. Hoje em dia, tem CAPS que tem algumas especializações. Por exemplo, o CAPS infantil e o CAPSAD, voltado para álcool e drogas. Nós temos, agora, uma situação de uma verdadeira epidemia nacional e internacional do transtorno do jogo. A rede precisa se ajustar a isso. Minha proposta é que seja um CAPS ADTJ: álcool, drogas, tabaco e jogo.
  • Capacitação: os profissionais precisam ser capacitados. Hoje em dia, os profissionais que estão no CAPS AD têm capacitação para álcool e drogas. Não é difícil estender essa capacitação para o jogo, mas existem certas peculiaridades nessa condição para as quais precisam ser treinados.

Quando falo tudo isso, quero deixar bem claro que temos toda a tecnologia e também material humano para iniciar esse processo todo. O que precisamos é de investimento financeiro e vontade política para pegar uma parte dessa dinheirama que o Estado vai recolher e investir nessas iniciativas. A lei de 2018 (nº 13.756) determina que 1% deve ir para o Ministério da Saúde. Ainda não vi o início desse tipo de iniciativa. Não estou vendo esse primeiro 1% que está chegando ser traduzido em ações concretas do Ministério da Saúde voltadas para a questão da prevenção e tratamento do transtorno do jogo.

Ainda sobre as medidas que acho muito importantes, uma coisa que passa muito por baixo do radar, e que é preciso prestar muita atenção: a qualidade dos jogos e os elementos estruturais que vêm embutidos em cada tipo de jogo. Alguns jogos estão claramente incorporando práticas antiéticas. Práticas que vão enganar o jogador no sentido de ele achar que pode controlar o resultado quando, na verdade, não pode, ou que uma vitória é mais provável do que realmente é.

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Por exemplo, você gira uma roleta, que é um gerador de números aleatórios, e tem um botão de stop (pare). O cara apostou no 17 preto e calcula que mais ou menos quando estiver passando embaixo, aperta o stop. Só que isso é ilusório. A roleta vai parar no local em que estiver previamente programada para parar. Essa ilusão de controle, por vários estudos, é mostrada como incentivadora da continuidade das apostas.

Tem também o ‘efeito na trave’. O sorteio está dado, você não vai ganhar, mas, no caso de apostar em ‘frutinhas caindo’, ao invés de cair qualquer resultado aleatório, cai um que parece que você quase venceu. São vários elementos estruturais dos jogos. O jogo do Tigrinho é um que usa muitos deles, falaciosos, que fazem com que as pessoas tenham um maior engajamento, gastem mais dinheiro e tenham mais perda de controle.

Você usou o termo epidemia, nacional e internacional, para se referir ao estado do jogo patológico. Em outros países, a aposta, tanto física quanto online, está liberada há décadas. Por que agora?

O que mudou foram as apostas esportivas (online). Não sou um especialista nessa área de informática, mas há uma questão sobre a forma como se controla a formulação dos algoritmos. O grande boom das apostas online também tem a ver com a confluência de várias tecnologias que já estavam disponíveis, mas que foram sendo combinadas para produzir essa explosão.

É a tecnologia da informação e da comunicação, o smartphone, a internet embutida dentro do smartphone, o avanço da inteligência artificial, combinados a um produto que apela muito à população, que é o esporte, que entusiasma e inspira. É a tempestade perfeita.

Essa explosão coincide com duas coisas. A entrada da pandemia, que deu mais tempo para as pessoas, isoladas em casa, procurarem outras coisas para se distrair. E, saindo da pandemia, a Copa do Mundo. Aí, as apostas esportivas explodiram.

A indústria fala muito da defesa do jogo responsável. Jogo responsável existe?

É uma questão semântica. O jogo de azar tem esse nome não porque traz má sorte. É de azar porque é o jogo do aleatório. Alguns jogos têm mais aleatoriedade envolvida, outros menos. Em cima disso, você empenha um valor, que é a aposta. É uma atividade lúdica na qual estamos brincando com coisa séria: dinheiro.

Como você está brincando com coisa séria, sem defender nenhum juízo moral, está fazendo uma coisa que pode ter várias características, menos a característica da responsabilidade. Não existe responsabilidade em apostar. O único jogo responsável é não apostar. Você quer ser absolutamente responsável em relação às apostas? Não aposte.

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O termo mais correto seria ‘apostas com máxima minimização dos riscos’. Ou seja, quando as pessoas forem apostar, fazerem isso com o mínimo de risco possível, porque não há segurança. A segurança é não apostar.

No exterior, já ouvi especialistas falando no transtorno do jogo como um ‘vício oculto’, mais difícil de identificar. É isso mesmo? O SUS está pronto para identificar esse paciente?

Não está, mas podemos nos preparar. Eu concordo que para o leigo é difícil, às vezes, de identificar, porque a pessoa não chega com o olho vermelho, cheirando a álcool. Mas existem outros sinais que, uma vez que uma população está informada, começa a perceber. Atrasos recorrentes em compromissos financeiros no caso de pessoas que costumavam honrá-los sem dificuldade. Comportamento socialmente mais esquivo, historinhas, pequenas fraudes, mentiras para encobrir gastos inexplicáveis. Todas essas coisas têm que acender uma luzinha lá. A identificação pode ser um pouco mais desafiadora, mas não é um bicho de sete cabeças. Uma população educada e um SUS treinado conseguem fazer isso sem dificuldades.

Outro termo pop é ‘vulnerável’. Quem é vulnerável?

Todos somos vulneráveis, por isso temos as medidas universais. Mas existem pessoas que são mais vulneráveis do que outras.

  • Vulnerabilidade socioeconômica: a pessoa que está no estrato socioeconômico mais baixo é mais vulnerável. Aqui, estou falando de pessoas que têm menos renda ou que estão desempregadas. Pessoas que têm menos educação e que estão socialmente mais isoladas. Toda pessoa que está num contexto de enfraquecimento dos seus laços sociais é uma pessoa mais vulnerável. A pessoa muito mais suscetível ao canto de sereia das apostas. Mas a lenda completa da sereia é que te atrai e te afoga para te comer.
  • Vulnerabilidade biológica: é justamente o cérebro imaturo do menor de idade. Ela também se estende a pessoas que já têm casos de jogo patológico na família ou de outras formas de dependência. Essas pessoas compartilham fatores facilitadores genéticos. Não significa que se meu pai era jogador, eu vou ser jogador, mas você herda uma suscetibilidade maior para as apostas.
  • Vulnerabilidade psicológica: são aquelas pessoas passando por momentos difíceis da vida. Você está recém-saído de um divórcio, acabou de perder o emprego, teve um mal de saúde que te deixou apartado da vida social por um tempo. Pessoas que tiveram uma infância e adolescência particularmente marcada por adversidades emocionais e dificuldades familiares vão carregar consigo essa vulnerabilidade maior para formadores de hábito de uma maneira geral. Se você carrega consigo as marcas do abuso emocional, da negligência parental, do abuso sexual, é uma pessoa mais vulnerável a formadores de hábito.
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