Bets levam adolescentes a se endividarem com agiotas; conheça os principais sinais de dependência

Mecanismos que resultam no vício em jogos de azar são os mesmos envolvidos na dependência de álcool e outras drogas; por questões fisiológicas, crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis ao problema

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Foto do author Victória  Ribeiro
Atualização:

Miguel (nome fictício) tinha 16 anos quando decidiu apostar pela primeira vez em uma plataforma de apostas esportivas, as bets. A ideia parecia inofensiva: conseguir dinheiro “fácil” por meio de seus conhecimentos em futebol. No início, o valor destinado às apostas vinha da mesada que recebia dos pais. Depois, começou a emprestar dinheiro com amigos. Quando isso deixou de ser suficiente, buscou um agiota — atividade considerada ilegal no Brasil — para manter a frequência dos “chutes”. Aos 18 anos, por interferência do irmão, iniciou um acompanhamento médico — mas levou um tempo para conseguir participar das consultas sem que o celular estivesse conectado na plataforma, aguardando o resultado das apostas.

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A história de Fernando (nome fictício), que tem 17 anos, é semelhante. Ele começou a apostar em bets esportivas utilizando o cartão da mãe, sem que ela percebesse. Depois, passou a pedir dinheiro aos amigos e, quando já não havia mais opções, também foi atrás de agiotas – que concederam empréstimos a juros altos. O valor das dívidas chegou a R$ 500 mil — os pais só descobriram a relação do filho com as apostas (e a gravidade da situação) ao receberem cobranças e ameaças por telefone. Assim como Miguel, Fernando foi encaminhado para acompanhamento médico, apresentando quadros de ansiedade, tendência ao suicídio e distorção da realidade.

As histórias, relatadas à reportagem por profissionais da saúde, refletem uma onda crescente no Brasil: a dependência nos jogos de apostas, proibidos para pessoas com menos de 18 anos. Hoje, no País, existem entre 1 mil e 1,5 mil plataformas do gênero. A estimativa é do Instituto Jogo Legal (IJL). E não envolve só futebol: o jogador também pode apostar em basquete, tênis, vôlei, etc. Outro tipo de jogo é o slot – mais conhecido como “caça-níquel”. Nesse último caso, o mais popular é o Jogo do Tigrinho (ou Fortune Tiger). “Vence a partida quem tiver a ‘sorte’ de combinar três símbolos”, explica Magnho José, presidente do IJL. “Os valores de aposta vão de R$ 0,50 a R$ 600 a cada rodada”.

A psiquiatra Nicole Rezende, especialista em dependências comportamentais pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), explica que os mecanismos que levam ao vício nas apostas online, quadro conhecido como “transtorno do jogo”, são os mesmos que atuam na dependência de álcool e drogas sintéticas – com alguns pesquisadores chegando a comparar seu potencial aditivo ao do crack.

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Mas, quando se trata de crianças e adolescentes, o cenário é ainda pior. Isso porque estamos falando de uma fase em que áreas importantes do cérebro, relacionadas sobretudo ao controle de impulsos e até mesmo à regulação emocional, ainda estão em pleno desenvolvimento. Ou seja, esse grupo é especialmente vulnerável a qualquer tipo de dependência.

Crianças e adolescentes são mais suscetíveis a desenvolver qualquer tipo de dependência, como de jogos, álcool e outras drogas. Foto: Евгений Шемякин/Adobe Stock

No caso dos jogos de apostas, segundo a médica, a imprevisibilidade é uma grande inimiga. É que as bets geram uma excitação ligada ao risco de ganhar ou perder dinheiro. Você aposta R$ 10 e pode ganhar R$ 100, mas também pode arriscar R$ 500 e perder tudo. Ou seja, a incerteza acaba se tornando mais gratificante do que a própria vitória. “Como resultado, o cérebro quer repetir o comportamento, pois o considera altamente recompensador, o que acaba levando a apostas cada vez maiores e impensadas”, afirma Nicole. “Para os mais jovens, como as áreas de controle ainda estão em formação, essa vulnerabilidade é ainda mais acentuada. Afinal, não existem os freios que podem racionalmente colocar uma interrupção, onde você diz ‘aqui já joguei demais, é hora de parar”.

Segundo a psicóloga Elizabeth Carneiro, diretora da clínica Espaço Clif, no Rio de Janeiro, desde o ano passado, quando as bets foram liberadas e o “Jogo do Tigrinho” e similares explodiram no Brasil, os atendimentos de pré-adolescentes e adolescentes que não conseguem parar de apostar ficaram cada vez mais comuns. Ela conta que os jovens costumam se envolver com as plataformas de jogos por dois principais motivos: devido à falsa ideia de lucro fácil e também porque elas cumprem um papel de válvulas de escape.

“A adolescência pode ser uma fase complexa, e o jogo acaba se tornando uma anestesia, uma espécie de automedicação para vários tipos de problemas prévios, como depressão, conflitos familiares, ausência de afetividade, transtorno de déficit de atenção, flutuação do humor e até mesmo autoestima baixa, onde os possíveis ganhos também se traduzem em picos de melhora sobre a percepção que esses jovens têm de si mesmos”, diz a especialista, que atua com dependências há cerca de trinta anos.

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Os sinais de alerta

De acordo com Rodrigo Machado, psiquiatra e pesquisador do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) da Universidade de São Paulo (USP), os sinais do transtorno do jogo podem ser percebidos a partir de mudanças emocionais e nas interações sociais. Embora cada caso seja único, é importante estar atento a uma possível queda no desempenho escolar e à dificuldade de se engajar em atividades que não envolvam os jogos de azar e o uso de celular ou computador.

Outro indício preocupante é a falta de interesse no contato com outras pessoas e a dificuldade em manter uma rotina de sono, com o famoso hábito de trocar o dia pela noite. A desregulação emocional é mais um sintoma comum, com crises de irritabilidade e agressividade. “Assim como acontece com a dependência em álcool e outras drogas, nesse caso também existe a possibilidade de ocorrerem episódios de abstinência”, afirma o especialista.

A mentira se torna frequente, seja em relação ao tempo dedicado aos jogos ou ao uso do dinheiro – que, muitas vezes, deixa de ser utilizado para necessidades cotidianas, como comprar o lanche da escola. A dinâmica das bets e dos caça-níqueis também resulta em uma certa intolerância com o “mundo real”. “Depois que o cérebro é ‘capturado’ e o corpo entende aquilo como algo prazeroso, acaba surgindo uma dificuldade para lidar com os estímulos do dia a dia. Os jogos estão ali, na palma da mão, com apostas muito rápidas. Você finaliza a partida e logo inicia outra. Se isso gera prazer, e é acessível, o restante acaba se tornando desinteressante”, destaca Nicole.

A situação pode escalar de tal forma que causa o endividamento da família e o envolvimento com a ilegalidade. Aliás, é nesse momento que os jovens costumam chegar aos consultórios dos especialistas. De acordo com eles, várias histórias envolvem o roubo (dentro e fora de casa) ou, então, os empréstimos, obtidos inclusive por meio da agiotagem.

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Outro fenômeno que tem sido observado é o desenvolvimento de pensamentos desconectados da realidade, quase fantasiosos. Segundo Elizabeth, muitos pacientes não conseguem reconhecer o problema, mesmo diante de dívidas acumuladas e sintomas de abstinência. Além disso, em alguns casos, o discurso se torna eufórico e distorcido, levando a afirmações como: “Eu nasci diferente das outras pessoas, mais inteligente e melhor no jogo.”

“Muitas vezes, os pacientes acham que, se conseguirem algum dinheiro para jogar, eles vão reverter esse cenário de dívidas, porque acreditam que são bons naquilo. Eles falam ‘os problemas são as dívidas. Depois que eu pagar, não terei mais problemas’. É um pensamento fantasioso, que envolve frustração, medo, abstinência, vergonha, e, nesse misto, infelizmente há agravantes na saúde mental, como depressão, ansiedade e até mesmo tendências suicidas. Já tive paciente que chegou a dizer ‘não está valendo a pena viver’”, lamenta a psicóloga. Ela ainda destaca que esses indivíduos ficam mais suscetíveis a desenvolver outros tipos de dependência, como de álcool ou outras drogas.

Publicidade infantil e o impacto na saúde mental

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No ano passado, um adolescente de 17 anos, do Maranhão, cometeu suicídio após perder R$ 50 mil no “Jogo do Tigrinho” – ele tinha recebido esse valor de herança. A história é apenas uma das várias mencionadas em uma denúncia realizada em junho pelo Instituto Alana — ONG que atua na defesa da infância e da adolescência — ao Ministério Público. A denúncia aborda a publicidade ilegal de cassinos online promovida por crianças e adolescentes nas redes sociais.

O documento elaborado pela ONG também mostra que uma influenciadora de apenas 6 anos, conhecida por seus vídeos humorísticos gravados pelo primo, promove anúncios de caça-níqueis online, como o Jogo do Tigrinho, e de bets, além de divulgar rifas e sorteios de produtos caros, como motos e iPhones. Em uma das rifas, com bilhetes vendidos a R$ 1 real, o prêmio é de R$ 10 mil mais um iPhone 12 Pro Max.

Outro caso destacado é o de uma adolescente de 16 anos, conhecida por suas danças no TikTok e com mais de 7 milhões de seguidores no Instagram. Na descrição do perfil, ela se apresenta como “embaixadora” de uma plataforma de apostas. Nas publicações, promove ativamente os jogos de azar e já gravou vídeos incentivando seus seguidores a participarem – muitos deles são crianças e adolescentes. Em um dos vídeos, aparece jogando um jogo similar ao Tigrinho e afirma: “Só não consegue ganhar dinheiro quem não quer.”

Na visão de Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital no Instituto Alana, a estratégia das bets e dos cassinos online para alcançar o público mais jovem está estampada no próprio design das plataformas, descrito por ele como manipulador. “Existe toda uma arquitetura que envolve desenhos, cores e notificações dizendo que seus amigos também estão jogando, o que são elementos atrativos para os mais novos. Fora que te leva a acreditar que você vai ganhar, quando é muito mais provável que você perca. Tudo isso é cruel, porque explora vulnerabilidades do sujeito em desenvolvimento”, destaca Nejm.

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Vale destacar que os anúncios das bets e dos caça-níqueis online estão em ônibus, metrôs, elevadores de consultórios médicos e até mesmo nos conteúdos produzidos por times de futebol, atletas e celebridades. Agora, quando influenciadores mirins entram no jogo da publicidade, incentivando outras crianças a apostarem, a combinação de fatores se torna ‘bastante explosiva’, na percepção do especialista.

Da ‘dieta digital’ aos tratamentos

Para Nejm, o mais importante é focar na prevenção. Ele recomenda que os pais fiquem atentos à rotina digital dos filhos, da mesma forma que monitoram a alimentação. “É essencial observar a ‘dieta digital’ das crianças, acompanhando o que consomem e com quem interagem. Isso ajuda a evitar o acesso a conteúdos prejudiciais e proibidos para menores”, orienta.

O especialista lembra que algumas ferramentas podem auxiliar nesse controle, como o bloqueio de aplicativos. “Hoje, é possível configurar dispositivos para limitar o acesso a certas plataformas, mas isso não é infalível”, pondera. Nesse ponto, o bom e velho diálogo, assim como a construção de uma relação de confiança, acaba sendo o melhor caminho. “Se decidir dar um celular, o que não é indicado para algumas idades, é essencial ter uma conversa leve e impor limites claros, explicando que se trata de uma forma de cuidado e expressão de afeto”.

Se os pais suspeitarem de uma dependência, o acompanhamento psicológico deve ser considerado. “Assim como em outros tipos de vício, o transtorno do jogo não desaparece completamente. O adulto ou criança permanece vulnerável, exigindo um cuidado e atenção contínuos por toda a vida”, informa Nicole.

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Elizabeth acrescenta que o tratamento medicamentoso pode ser útil para lidar com comorbidades associadas, como depressão, ansiedade ou TDAH, que podem surgir antes ou depois do contato com os jogos. Em situações assim, o encaminhamento ao psiquiatra é necessário para definir a melhor abordagem. “No TDAH, as pessoas tendem a ser mais impulsivas, tornando-as mais suscetíveis ao vício ou a recaídas. Nesse caso, a medicação pode ser um suporte significativo”, exemplifica.

A psicóloga chama a atenção para a importância de a família se envolver no processo, se possível por meio da terapia familiar. A participação de pais e outros membros fortalece o tratamento e ajuda na compreensão do transtorno de jogo como um problema de saúde. Segundo Elizabeth, isso é especialmente relevante para crianças e adolescentes, considerados grupos mais sensíveis.

A terapia familiar é especialmente bem-vinda nos casos onde a cultura do jogo de azar está dentro de casa. De acordo com a psicóloga, há inúmeros casos de pacientes que iniciam o tratamento e, mais tarde, revelam que pai, mãe, irmão e outros familiares também têm o costume de realizar as apostas. Às vezes, a conta utilizada pelos menores na plataforma de apostas foi criada por um adulto da família.

Falta investimento na saúde mental

Enquanto o transtorno do jogo é cada vez mais incidente entre os jovens, Nejm observa que não houve um aumento significativo no investimento nas políticas públicas relacionadas à saúde mental. Faltam programas ou linhas de cuidado específicas para dependência em apostas, principalmente na Atenção Primária à Saúde (APS). Esse cenário, segundo o especialista, impacta especialmente as famílias com menor poder aquisitivo.

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“O dinheiro perdido em apostas muitas vezes é aquele que deveria ser destinado à alimentação e às despesas básicas. Além disso, há crianças que podem desenvolver dependência ao serem atraídas pela ilusão de um ‘lucro fácil’ e pela promessa de uma mudança de vida”, explica o especialista, que alerta para a necessidade de se reconhecer o problema como uma questão de saúde pública.

Procurado pelo Estadão, o Ministério da Saúde admitiu que não possui dados sobre o vício da população brasileira em jogos de azar. A pasta afirmou que, desde o início de 2023, tem ampliado a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para melhorar o atendimento de pessoas com problemas de saúde mental, mas não respondeu se há ações específicas voltadas ao transtorno do jogo. Vale ressaltar que a pasta ainda não fez campanhas ou publicações relacionadas à conscientização sobre o problema em suas redes.

À reportagem, o órgão também afirmou que, por intermédio do Ministério da Fazenda ― responsável pela regulamentação das bets ― , participa da articulação para a constituição de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para atuar na prevenção e no tratamento do vício em apostas esportivas. A construção do GTI foi iniciada há um ano, mas ainda não saiu do papel, apesar dos reiterados alertas de profissionais da área da saúde, que veem a dependência alcançar brasileiros cada vez mais jovens. Procurada, a Fazenda afirmou que o grupo “está em processo de construção e deve ser publicado por meio de portaria interministerial”, sem especificar um prazo para publicação.

A pasta chefiada pelo ministro Fernando Haddad aproveitou para se posicionar sobre a utilização de plataformas de jogos de apostas por crianças e adolescentes. “Nossa posição é clara: tal utilização é proibida por lei e deve ser coibida por todos os agentes públicos responsáveis, bem como respeitada por todos os agentes diretos e indiretos do setor, inclusive com a aplicação das devidas penalidades, no caso de descumprimento”, escreveu, em nota.

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