O jornalista americano Dan Buettner tinha 39 anos quando visitou Okinawa pela primeira vez. Em 1999, ele trabalhava como repórter da revista National Geographic e ficou impressionado com a vitalidade dos habitantes da província japonesa. “Os idosos eram vibrantes. Sempre rodeados pelos seus moais (grupos de apoio social), irradiavam alegria de viver”, recorda Buettner, hoje com 64.
Ao longo dos últimos 25 anos, ele dedicou sua vida a investigar os segredos das blue zones (ou zonas azuis). São, ao todo, cinco comunidades com uma expectativa de vida acima da média mundial: Okinawa, no Japão; Icaria, na Grécia; Sardenha, na Itália; Loma Linda, nos Estados Unidos; e Nicoya, na Costa Rica.
Buettner gostou tanto do que viu em Okinawa que viajou umas 20 vezes para as zonas azuis, entrevistou mais de 250 centenários, escreveu uma batelada de livros (só no Brasil, foram publicados três pela NVersos), produziu um documentário para a Netflix (Como viver até os 100) e procurou incorporar hábitos saudáveis em sua rotina diária, como ir para o trabalho de bike, organizar encontros com os amigos e ter sempre a família por perto.
Em outubro, o demógrafo Saul Newman, do Centro de Estudos Longitudinais da Universidade de Londres, “jogou água no chope” de Buettner. Em plena comemoração das bodas de prata das blue zones, o britânico ganhou o Prêmio Ig Nobel por publicar um artigo que supostamente implode o conceito desenvolvido pelo americano. Supostamente porque o artigo de Newman ainda se encontra na fase preprint (“pré-publicação”), isto é, não foi revisado por cientistas independentes nem publicado em revistas importantes, como Science e Nature.
“A expectativa de vida de Okinawa não é tão notável quanto parece. Em um censo de 2010, o governo apurou que 82% de seus centenários já estavam mortos havia anos. Okinawa ocupa o 23º lugar entre as 47 províncias do Japão”, diz.
Os okinawanos estão entre os que consomem menos vegetais, comem mais carne e ingerem mais cerveja. “Eles têm o pior índice de massa corporal (IMC) do Japão. A saúde deles é, na melhor das hipóteses, ruim”, detona.
O caso de Okinawa é particularmente delicado — e nesse ponto Buettner concorda com Newman. “Não considero mais Okinawa uma zona azul”, reconhece o americano. “Digo mais: as zonas azuis estão começando a desaparecer à medida que as dietas ocidentais e as lanchonetes fast-food continuam avançando mundo afora. Muito provavelmente, todas as zonas azuis sumirão do mapa na próxima geração”, arrisca dizer.
Okinawa não é exceção. Sobram críticas também para Sardenha e Icaria. “Segundo estudo do Eurostat, o departamento de estatística da União Europeia, Sardenha e Icaria estão, respectivamente, em 50º e 100º lugar no ranking das regiões com maior expectativa de vida do continente”, revela Newman.
No caso dos gregos, há um agravante: 72% dos centenários estão mortos, desaparecidos ou são casos de fraude previdenciária — isto é, mentiram a idade para receber a aposentadoria.
‘Não siga os conselhos de um vendedor de livros de culinária’
E o que dizer de Loma Linda e de Nicoya? A situação nas Américas, garante Newman, não é diferente da Europa. No ranking do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), há pelo menos 1,5 mil bairros mais bem colocados no quesito longevidade do que Loma Linda, na Califórnia.
Além disso, “apenas sete dos 504 centenários americanos têm certidão de nascimento”, adverte o pesquisador.
Não muito longe dali, um estudo de 2008 indica que 42% dos costarriquenhos com mais de 100 anos mentiram a idade no censo de 2000. “Em geral, as zonas azuis apresentam piores condições de saúde do que qualquer outro lugar nos seus respectivos países”, insiste.
Indagado sobre o que fazer para viver mais e melhor, Newman responde: “Nasça rico”. Em tese, os mais afortunados praticam exercício, têm pouco estresse e se alimentam bem. “Caso contrário, não beba, não fume, faça exercícios e, em caso de dúvida, consulte seu médico. Não siga os conselhos de um vendedor de livros de culinária.”
“Por um lado, ele ensina coisas que já sabemos: ter amigos é bom, precisamos nos exercitar mais ou devemos comer mais feijão. Por outro, faz recomendações que podem ser perigosas, como tomar uma ou duas taças de vinho por dia. Nenhum médico em sã consciência prescreveria isso para um paciente. É um passo para o alcoolismo.”
Buettner não se abala com as críticas de Newman. “Enquanto ele tem um artigo não revisado por especialistas independentes, tenho oito devidamente analisados por pesquisadores respeitados”, orgulha-se.
Blue zones 2.0
Em um ponto, porém, os dois concordam: Cingapura. O país asiático é considerado um modelo a ser seguido. “Os países com maior expectativa de vida são os ricos, como Austrália, Cingapura e Suíça. Não por causa de suas dietas, mas porque oferecem cuidados de saúde gratuitos e universais. Nada a ver com ikigai”, ironiza Newman.
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Já Buettner explica que Cingapura é o que ele chama de “zona azul 2.0″. “É um bom exemplo de país que, através de políticas públicas, criou um ambiente favorável à saúde”, sublinha. O governo estimula a população a trocar o carro pela bicicleta, investe na criação de espaços verdes como áreas de lazer e impõe restrições a alimentos ultraprocessados e a bebidas açucaradas.
“Nem sempre a escolha mais fácil é a melhor escolha. Ou a mais saudável”, adverte. “Quer um exemplo? Os drive-thrus. São um convite ao sedentarismo! Quando priorizamos a facilidade em detrimento da saúde, colocamos nossa longevidade em risco”.
Os 100 são os novos 70
A geriatra Maisa Kairalla, membro do comitê de imunizações da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), é uma entusiasta das zonas azuis. Em novembro de 2023, ela publicou um artigo, Os 9 segredos das Blue Zones, as regiões do planeta em que se vive mais, em seu blog no site da revista Veja Saúde.
Nele, a médica esmiúça os nove ensinamentos dos centenários das zonas azuis, como “manter-se em movimento”, “evitar o estresse” e “viver em comunidade”. “Alcançar uma vida longa e saudável é resultado de um conjunto de fatores. Devemos nos inspirar nos nove fundamentos das blue zones para chegarmos bem à velhice e transformar os 100 anos nos novos 70.”
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Dos nove ensinamentos, que Buettner chama de “Power 9″, Maisa elege “ter um propósito na vida” como o mais importante. É o que os japoneses de Okinawa chamam de ikigai – o conceito ironizado por Newman alguns parágrafos acima – e os costarriquenhos de Nicoya, de plan de vida. Em outras palavras, é a razão pela qual você levanta da cama todos os dias.
“Antes de seguir os outros pilares, como alimentação saudável, prática de exercícios e gerenciamento de estresse, considero essencial identificar o que move cada um de nós. É o ponto de partida rumo a uma vida longa e plena.”
Quanto às críticas de Newman, Maisa pondera que as inconsistências apontadas pelo britânico em certidões de nascimento e atestados de óbito merecem atenção, mas acredita que as lições aprendidas com os povos das zonas azuis vão muito além das estatísticas.
“O primeiro passo para envelhecer bem é entender que todos nós podemos envelhecer com saúde. Mas, para isso acontecer, precisamos começar a pensar na velhice antes de chegarmos lá. As escolhas que fazemos hoje refletirão no modo como viveremos amanhã”, ensina.
Jogada de marketing ou objeto de desejo?
A exemplo de Maisa Kairalla, a jornalista Lilian Liang também defende a tese de que “não se pode jogar o bebê junto com a água do banho”. “Minha preocupação é que, ao generalizar todos os achados como fraudulentos ou exagerados, Newman invalide trabalhos importantes feitos por profissionais sérios”, adverte. “Entrevistamos Gianni Pes, na Itália, e Luis Rosero-Bixby, na Costa Rica, que descreveram, com riqueza de detalhes, como constataram a longevidade dos moradores de Sardenha e Nicoya, respectivamente”.
Em 2023, ela e o documentarista Gabriel Martinez passaram dois meses visitando as Zonas Azuis. A expedição começou por Nicoya, partiu para Loma Linda, seguiu para Okinawa, visitou Icaria e terminou na Sardenha.
“De tudo que observamos, o mais impressionante é a relação social. Familiar ou comunitária, é importantíssima para um envelhecimento de qualidade. Não estou falando das relações sociais em que os idosos são transformados em objetos de decoração na casa de filhos ou netos, mas, sim, das relações sociais em que eles são protagonistas, ocupam um papel ativo, convivem com pessoas de todas as idades e continuam fazendo o que sempre fizeram.”
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Diretora de redação da Aptare, revista sobre longevidade voltada para profissionais de saúde, Liang admite que as blue zones despertam reações apaixonadas. Para uns, elas são uma jogada de marketing. Para outros, objeto de desejo.
“Não se trata de defender um ou outro. Um fato, porém, é inegável: essas regiões e seus habitantes mostraram que envelhecer bem não é apenas fruto de uma boa alimentação ou de exercício constante, mas de laços familiares, relações sociais e senso de propósito. Não é pouca coisa.”
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