O Brasil atingiu nesta sexta-feira, 8, a marca de 600 mil mortos pela covid-19 – mais gente do que as populações de sete capitais do País, como Florianópolis e Vitória. Com o avanço da vacinação e a queda de infectados, cresce nos hospitais e nas ruas a sensação de que o pior foi superado. Especialistas, porém, destacam que a crise sanitária pode ter reviravoltas e seus efeitos são duradouros. Além do risco de novas variantes, o patamar de vítimas ainda é alto (perto de 500 por dia) e há demanda por doses de reforço e cuidado com as sequelas do vírus. Para quem sofreu na pele, a luta é para seguir em frente, mas fazer com que a tragédia não seja esquecida.
O balanço mais recente, divulgado nesta tarde, contabiliza 600.077 vítimas, segundo o consórcio de veículos de imprensa. Conforme balanço da Fiocruz, entre 12 e 25 de setembro o total de hospitalizados no País caiu 27,7% e o de óbitos, 42,6%. Em 25 Estados, a taxa de ocupação de leitos de UTI covid é inferior a 60% - exceto Distrito Federal e Espírito Santo. "Olhando os dados, consideramos que o pior da pandemia passou", diz o superintendente de Vigilância em Saúde do governo catarinense, Eduardo Macário.
"Mas ainda não podemos largar medidas de prevenção. Seguimos com média elevada de casos novos e boa parte da população não está (completamente) imunizada", completa ele. Algumas cidades - como São Paulo e Rio - já preparam o relaxamento da exigência de máscaras, o que médicos consideram precoce.
Em relatório do Observatório da Covid-19, da Fiocruz, o fim da crise sanitária é previsto para os primeiros meses de 2022 - especialistas divergem sobre esse prazo. "O fim da pandemia não representará o fim da 'convivência' com a covid-19, que deverá se manter como doença endêmica e passível de surtos mais localizados", diz o texto. Nesse cenário, medidas como distanciamento e uso de máscaras devem continuar sendo importantes em ambientes fechados ou com aglomeração.
Apesar da demora do governo federal na compra de vacinas e de o próprio presidente Jair Bolsonaro colocar em dúvida a eficácia dos produtos, a adesão aos imunizantes é alta. Diferentemente dos Estados Unidos, onde a hesitação vacinal resultou em uma nova escalada de óbitos, 69,8% dos brasileiros já tomaram ao menos uma dose, ante 64% entre os americanos.
"A vacinação já está incutida no caráter cultural da sociedade, isso nem as fake news conseguiram destruir", avalia o médico José Cherem, da Universidade Federal de Lavras (UFLA). A busca pela 2ª dose, porém, acende um alerta: é preciso ter mais comunicação e incentivo para que as pessoas se desloquem até os postos de saúde.
As falhas e o negacionismo da gestão Bolsonaro no combate à pandemia têm sido alvo de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado. São investigadas irregularidades na negociação de vacinas e a defesa de remédios sem eficácia contra o coronavírus, como a cloroquina, cujo uso não revelou bons resultados em testes científicos.
Fora do Congresso, na sociedade civil também há busca por reparação e responsabilizações. "Meu luto foi luta desde o início", conta Paola Falceta, à frente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19. A entidade apoia parentes de mortos pelo coronavírus nos pedidos trabalhistas e previdenciários, além de pleitear indenização do poder público.
"Havia condições de vacinar toda a população brasileira de janeiro a abril", diz o médico sanitarista e professor da USP Gonzalo Vecina. Para ele, as mortes que ocorreram a partir de abril eram evitáveis. Para os especialistas, a falta de coordenação nacional também será um obstáculo nos próximos capítulos da pandemia.
"Se falar de 3ª dose, não há vacina suficiente. Não tenho visto o governo falar sobre comprar mais doses", acrescenta Vecina, ex-presidente da Anvisa e colunista do Estadão. A injeção de reforço tem sido recomendada para idosos, profissionais de saúde e imunossuprimidos. O grupo acima de 60 anos voltou a ser o predominante (79%) entre as vítimas da doença hoje. Isso ocorre porque a eficácia da vacina cai após alguns meses, sobretudo entre os mais velhos, daí a necessidade do complemento.
Além do represamento de milhares de consultas, exames e cirurgias durante a quarentena, a pressão dos sequelados da covid será um desafio para gestores de saúde. "Uma parte da população, que foi infectada e não morreu, está com problemas musculares, respiratórios, renais, cardiológicos e neurológicos", alerta Vecina. "A covid longa dura seis meses ou mais, com necessidade de apoio fisioterápico, social e psicológico."
O número de afetados por esses sintomas no País é desconhecido. Eduardo Macário, de Santa Catarina, destaca que o protocolo pós-covid já é tema de discussões entre os conselhos de secretários e o Ministério da Saúde, mas cobra suporte da União. "Os recursos precisam vir do governo federal. Um plano nacional integral está em discussão e construção", defende.
Na demora da gestão Bolsonaro em articular esse atendimento, organizações da sociedade civil também buscam sanar a lacuna. É o caso do Projeto Com.Vida, da dentista e atleta Raquel Trevisi, que já atendeu mais de 600 pessoas com sequelas. "Comecei a acolher todo mundo, acalmar a dor de todo mundo e, consequentemente, acalmei a minha também", diz ela, do interior paulista, que também sofreu com dores e esquecimentos após a infecção.
Comecei a acolher todo mundo, acalmar a dor de todo mundo e, consequentemente, acalmei a minha também
Raquel Trevisi, do Projeto Com.Vida
Questionado, o Ministério da Saúde disse, em nota, que, "preocupado com as possíveis sequelas ocasionadas pela covid-19, lançou em 2020, o projeto REAB, para reabilitação dos pacientes com comprometimento de função motora, neurofuncional, cardiorrespiratória, entre outras". O projeto piloto tem como parceiro o Hospital Sírio Libanês e já foi implementado em cinco hospitais do Brasil, um em cada região. Neste ano, conforme a pasta, "a iniciativa é implementada em mais dez hospitais públicos".
Além disso, diz ter cerca de 270 Centros Especializados de Reabilitação, do SUS para tratar pacientes com covid longa, em todos os Estados e no Distrito Federal. Para capacitar profissionais de saúde sobre a reabilitação desses pacientes, o ministério lançou curso desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), disponível na plataforma UNASUS.
Cherem destaca a necessidade de o poder público se debruçar sobre os efeitos socioeconômicos da pandemia, como insegurança alimentar, déficit educacional e desemprego. "Se não tivermos planejamento, teremos aumento da marginalização e da vulnerabilidade social", destaca.
Em Manaus, o projeto "Eu Amo Meu Próximo" busca amparar crianças e adolescentes que perderam os pais por causa da covid. A iniciativa, mensalmente, fornece cestas básicas, materiais de higiene e fraldas descartáveis para famílias responsáveis por cerca de 150 crianças e adolescentes. "Queremos minimizar a dor e o sofrimento dessas crianças que ficaram órfãs por conta da covid", explica Glauce Galúcio, responsável pelo projeto.
Já o rapper Criolo lançou uma música para homenagear a irmã, morta pelo vírus aos 39 anos, e outras vítimas da covid-19 e chamar a atenção para o tamanho da tragédia. "A pandemia nunca vai acabar para quem perdeu um ente querido", resume o artista./COLABOROU MARIANA HALLAL
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