Brasil vive uma crise de falta de cuidado de pessoas idosas, afirma promotor

Para Alexandre Alcântara, da Promotoria de Justiça do Idoso e da Pessoa com Deficiência de Fortaleza, transição demográfica cobra ação imediata para o atendimento a essa população

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Foto do author Leon Ferrari
Atualização:

Foto: Joaquim Albuquerque/Seco MPCE
Entrevista comAlexandre Alcântarapromotor de Justiça do MPCE

Há duas décadas trabalhando com a efetivação de direitos da população idosa, o promotor Alexandre Alcântara, da 1ª Promotoria de Justiça do Idoso e da Pessoa com Deficiência de Fortaleza, viu a expectativa da população brasileira aumentar. Mas o que deveria ser motivo de comemoração, para alguns vem carregado de “muito sofrimento”, conta ele.

“No Ministério Público, vemos diariamente muito sofrimento. Famílias cansadas. E não há um sistema de saúde e uma política de assistência adequados”, afirma ao Estadão.

Recentemente, a equipe de Alcântara identificou quase 50 idosos que receberam alta médica, mas permaneciam em leito hospitalar aguardando vaga em instituições de longa permanência (ILPI). A revelação levou a prefeitura de Fortaleza a firmar o compromisso de criar a primeira unidade municipal do tipo.

Mais recentemente, na metade de março, o grupo identificou que idosos e pessoas com deficiência viviam em situação inadequada em um lar sem alvará. O local foi fechado pela Justiça.

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“Vivemos uma crise de falta de cuidado”, afirma o promotor, que também é conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDPI). “A conta (do envelhecimento populacional) está chegando e o que que está acontecendo? Temos pessoas idosas morando nas ruas, ocupando vagas de hospital”.

Para ele, o cenário exige que o envelhecimento seja discutido sistematicamente em várias esferas, não apenas na previdenciária. Também é necessário superar o etarismo, um preconceito contra pessoas idosas.

“Um relatório da Organização Mundial da Saúde sobre o etarismo aponta que as políticas públicas para o envelhecimento não se efetivam por conta do preconceito. Falar de política pública para criança soa bem, mas, quando se fala nos idosos, há uma indisposição”, afirma.

Confira a entrevista:

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O senhor poderia contar sobre a atuação que resultou no compromisso da Prefeitura de Fortaleza de abrir a primeira instituição municipal de cuidados de longa permanência para idosos?

Vivemos hoje no Brasil uma crise do cuidado de pessoas idosas, principalmente de pessoas idosas vulneráveis. E o Estado brasileiro vem sendo alertado por organismos internacionais como a ONU, há anos, que teríamos uma transição demográfica, que implica um crescimento exponencial da demanda por cuidados. As estruturas familiares também não são mais as mesmas. Não temos mais aqueles 10, 15 filhos cuidadores.

Nós temos tido políticas públicas em relação às pessoas idosas que têm como característica a lentidão. Há um etarismo enorme por parte dos gestores públicos em efetivar esses direitos para as pessoas idosas. E, por conta disso, não implementamos políticas que já estão previstas pelo menos desde o final da década de 90.

Posso citar duas. Uma seria a questão dos centros-dia. O Japão tem milhares deles. Por que eles são muito importantes? Porque essa pessoa idosa continuaria com a família, mas a família não suportaria todo o peso do cuidado sozinha. Outro equipamento que já está fazendo falta são as instituições de longa permanência para idosos (ILPIs).

E o que está acontecendo em Fortaleza? Temos pessoas idosas envelhecendo em hospitais. Eu tenho um procedimento que acompanha isso. Nós temos em torno de 50 pessoas hoje que chegaram ao hospital, tiveram a alta médica, mas não a alta social.

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Nós temos uma ação civil pública contra o município de Fortaleza, que é de 2011, que tramita nas varas da Fazenda Pública. O município, no fim do ano passado, se dispôs a reconhecer a necessidade e lançou um edital para a construção dessa ILPI pública. Eles estão falando de uma instituição para 100 pessoas. Em dois dias, lota. Nós já temos demanda para as primeiras 100 vagas.

O contexto de Fortaleza e de outras capitais é muito grave, e os gestores não compreenderam que temos de fazer uma verdadeira revolução em todas as políticas públicas, não é só a de previdência.

Segundo promotor, há idosos que recebem alta médica mas não saem do hospital por falta de vagas em residenciais especializados Foto: wavebreak3/Adobe Stock

Seria uma crise de falta de cuidado?

Da falta de cuidado, principalmente por parte do Estado brasileiro. Quem vem suportando o cuidado, com todas as dificuldades, são as famílias. A Constituição Federal fala, no artigo 230, que a responsabilidade pelos direitos fundamentais das pessoas idosas é da sociedade civil, das famílias e do Estado. A verdade é que o Estado brasileiro é devedor dessa política pública. Isso em todos os níveis, seja a União, os Estados ou os municípios. Precisamos urgentemente de uma pactuação.

Quem são essas pessoas em leitos de hospital que aguardam vagas?

Essa situação é anacrônica e disfuncional. A pessoa que está lá, de alta, tira a vaga de outra pessoa que precisa (de internação), e também está em um local totalmente inadequado, correndo risco de infecção hospitalar. É um absurdo.

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Tratam-se de pessoas que geralmente têm rompimento de laços familiares ou são pessoas que moram em situação de rua e chegam ao sistema de saúde. Tem um levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais que mostra que 10% das pessoas que hoje estão em situação de rua são idosas.

O senhor fala muito da sobrecarga da família. O que o senhor consegue enxergar através da atuação no MP?

Hoje, um dos principais litígios que nós temos no nosso núcleo é a questão do cuidado. Essas famílias que precisam cuidar de pessoas doentes, com Alzheimer, Parkinson, estão extremamente cansadas e há conflitos em torno de quem vai cuidar.

Elas, muitas vezes, abandonam seus idosos. Acontecem situações de pessoas sendo abandonadas em portas de abrigos e hospitais. E isso também por conta desse cansaço e dessa falta de suporte. É uma situação muito adoecedora.

Como integrante do conselho nacional, como o senhor avalia a atuação do SUAS?

Há um déficit (entre o repasse do SUAS e os valores realmente necessários). O (gasto) per capita de um idoso em ILPI de condições dignas deve estar em torno de R$ 5 mil a R$ 6 mil. O repasse do SUAS, quando tem a pactuação com as filantrópicas, tem a mesma lógica dos hospitais filantrópicos, da Santa Casa, tem um subfinanciamento. Precisamos injetar mais recursos no SUAS. Se o SUS tem um subfinanciamento, a situação do SUAS é pior.

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Como o senhor observa a movimentação para a efetivação da Política Nacional de Cuidado?

Eu acompanhei a discussão da construção dessa política, participei de algumas reuniões, e o ponto que sempre colocava é este: só acredito em política com orçamento. Corremos um risco muito grande de ter produzido mais uma lei simbólica.

O secretário de Direitos da Pessoa Idosa, o doutor Alexandre da Silva, nos falou na última reunião que o Ministério dos Direitos Humanos está articulando uma política a partir dessa nova legislação para a questão das ILPIs, mas só acredito quando ver isso mesmo.

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