Fake news sempre existiram. Basta ocorrer uma emergência pública, como guerra, tsunami ou pandemia. Um estudo de 2018, ou seja, antes da covid-19 – um marco em termos de compartilhamento de notícias falsas – já apontava que 62% da população brasileira acreditava em informações infundadas, colocando o País no topo do ranking das nações onde a desinformação mais prospera. Para o levantamento, o Instituto Ipsos ouviu 19.243 pessoas de 27 países.
Outra pesquisa, mais recente, mostra que a pandemia de fato agravou a situação: o total de brasileiros que admitem já ter acreditado em notícias falsas saltou para 88% em 2022. Essa foi realizada pelo Instituto Locomotivas e contou com a participação de 1.032 pessoas.
O mais curioso é que para 12% da população colocar a saúde em risco nem é o mais grave. Pior do que ficar doente ou correr o risco de morrer é eleger maus políticos (26%), destruir a reputação alheia (22%) e espalhar pânico sobre segurança (16%).
Mas, afinal, por que os brasileiros acreditam tanto em fake news?

Em primeiro lugar, porque não sabem que aquilo é fake news – para eles, é a verdade. Se soubessem, talvez não acreditassem. Quem explica melhor é Ana Carolina Monari, doutora em Informação e Comunicação em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pesquisadora de pós-doutorado no Recod.ai, o Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para começar, aquele conteúdo, por mais absurdo que seja, concorda com a sua visão de mundo; depois, porque é respaldado por “autoridades” de sua inteira confiança, como médicos, políticos e religiosos. “A desinformação em saúde é um problema complexo que se pauta em crenças e emoções no lugar de fatos e evidências”, teoriza Monari.
No artigo Ser cabeça-dura é a sina de todo ser humano? Cientista conta por que é tão difícil mudar de opinião, publicado recentemente no Estadão, o psicólogo Daniel Gontijo, doutor em Neurociências pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), recorre a um verso do poeta Cazuza (1958-1990), tirado da música Maior Abandonado (1984), para explicar o fenômeno: “Mentiras sinceras me interessam”. “Às vezes, para muita gente, abraçar uma ilusão é muito mais vantajoso do que encarar a realidade”, salientou o especialista no texto.
“A exposição frequente a uma notícia falsa aumenta sua aparente veracidade. Como as mesmas desinformações circulam várias vezes em redes e grupos virtuais, os usuários vão ficando mais suscetíveis ao chamado ‘efeito da verdade ilusória’. Mesmo que uma ideia seja falsa, sua circulação cria a ilusão de credibilidade”, informa Gontijo.
Além disso, o especialista ressalta que somos menos críticos quando estamos fragilizados. “Pessoas doentes, por exemplo, confiam mais em tratamentos pseudocientíficos do que pessoas saudáveis. Nossa vulnerabilidade nos faz enxergar esperança onde só há enganação.”
Um editorial publicado recentemente na revista científica The Lancet aponta o seguinte: “A desinformação se tornou um instrumento deliberado para atacar e desacreditar cientistas e profissionais de saúde visando a ganhos políticos. Os efeitos são destrutivos e prejudiciais à saúde pública”.
A revista ainda chama a atenção: “Combater a desinformação exige uma abordagem sistêmica semelhante ao controle da disseminação de agentes infecciosos: encontrar e conter a fonte, identificar proativamente os mais vulneráveis aos seus efeitos e imunizar a população contra falsas alegações, fornecendo recursos educacionais claros. Isso não pode ser deixado para esforços voluntários e individuais”.
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Risco de vida
Na cartilha Desinformação sobre Saúde: Vamos Enfrentar Esse Problema?, uma parceria da Fiocruz com a Universidade Federal Fluminense (UFF), notícia falsa também é comparada a um vírus. “Uma vez contaminada, é mais difícil de tratar. Assim como em qualquer doença, a prevenção é o melhor remédio”, diz o texto.
Para evitar o contágio, profissionais da saúde dão dicas: “Fuja dos influenciadores. Eles dão respostas fáceis para problemas complexos”, adverte o clínico geral Luís Fernando Correia. “Fake news levam as pessoas a tomar decisões erradas e, em alguns casos, até morrer.”
A nutricionista Sophie Deram, autora do livro Pare de Engolir Mitos (Editora Sextante, 2024), dá um exemplo do tom sensacionalista adotado pelos influenciadores. “Enquanto uns orientam e dizem ‘o consumo excessivo de açúcar pode aumentar o risco de diabetes’, outros apelam afirmando ‘o açúcar é um veneno que causa diabetes!’. Viu a diferença? Quem tem discurso radical só quer saber de ganhar likes, conquistar seguidores e vender produtos.”
A pediatra Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), vai além. “Já ouvi colega dizer que médico não pode ser escravo de evidência científica. Discordo. Eu, como médica, não posso me dar ao luxo de achar nada. Desinformação em saúde é risco de vida”, sublinha.
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Como identificar a veracidade de um conteúdo?
Na dúvida sobre se uma notícia é falsa ou verdadeira, a cardiologista Aurora Issa, diretora do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), dá algumas sugestões. A primeira é verificar a data da publicação: “Uma das estratégias é postar conteúdo antigo como se fosse atual e falas verdadeiras fora de contexto”, lembra. A segunda é ler a notícia por completo e não apenas o título. “Fake news usam chamadas sensacionalistas para colocar em dúvida temas importantes”, destaca.
Em seguida, pesquise os fatos e os números mencionados na notícia. A prova dos nove é consultar sites oficiais, como as páginas do Ministério da Saúde e da Anvisa. “Por último, não passe adiante qualquer conteúdo sem ter certeza de sua veracidade”, conclui. O INC, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) são apenas alguns exemplos de sociedades médicas e instituições confiáveis.
Além das instituições de referência, muitos profissionais de saúde têm se preocupado em levar informação de qualidade ao público. Tanto que conciliam os plantões hospitalares, as consultas clínicas e as aulas universitárias com programas de rádio e colunas de jornal. Só no Estadão são quatro: Desire Coelho, Guilherme Artioli, Fernando Reinach e o Instituto Vencer o Câncer.
“Precisamos transpor os muros da academia e, por intermédio da mídia, travar diálogo com a sociedade”, pondera o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade de Illinois (EUA). “E trocar o palavreado rebuscado por um linguajar mais acessível”.
No editorial da The Lancet, é ressaltado que, em vez de apenas simplificar fatos complexos, “governos e comunicadores de ciência devem se esforçar para garantir que as mensagens de saúde pública sejam relevantes para o indivíduo; não apenas fornecer informações precisas, mas também fomentar um ambiente de confiança e compreensão, reconhecendo áreas de incerteza e desconhecimento”.
Educar a população para reconhecer fontes confiáveis e identificar notícias falsas é apenas um dos vértices do triângulo. Os outros dois são capacitar jornalistas para cobrir temas ligados à saúde com responsabilidade e médicos para falar com a imprensa em bom português.
“Em uma pesquisa recente, constatamos que cientistas não sabem atender às demandas da imprensa e os jornalistas não conseguem localizar fontes científicas com facilidade – quando conseguem, não entendem o que elas falam. Quando a gente constrói pontes entre a ciência e a imprensa, todos saem ganhando”, diz Sabine Righetti, professora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e cofundadora da Agência Bori, uma plataforma que reúne estudos de universidades e institutos de pesquisa nacionais para facilitar a cobertura jornalística.
Quanto às fontes ouvidas nas reportagens, é importante investigar currículo e experiência – e não confundir popularidade com competência. “É preciso checar se a pessoa é quem diz ser”, orienta a microbiologista Natalia Pasternak, professora da Universidade de Columbia (EUA) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).
No mais, Hallal lembra que, durante a pandemia de covid-19, o jornalismo profissional foi um aliado da ciência no enfrentamento da desinformação. “O Brasil teve uma mortalidade quatro vezes mais elevada do que a média mundial. Se não fosse o jornalismo, o estrago teria sido maior.”
Outro aspecto importante, acrescenta Sabine, é ensinar o médico a combater a desinformação em saúde: “Hoje em dia, ele chega no consultório para trabalhar e se depara com um paciente que pesquisou tudo sobre sua doença no Google. Só não sabe distinguir o certo do errado. O médico precisa aprender a se comunicar com a sociedade”, conclui.