Brincar não é só para criança: ter um hobby ao longo da vida pode transformar a saúde

Colecionar álbuns de figurinhas, fazer palavras cruzadas ou montar quebra-cabeças ajuda a aliviar o estresse e reduzir o risco de demência, entre outros benefícios

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Por André Bernardo

O funcionário público Paulo Ananias Silva tinha 53 anos quando, em 2017, parou de trabalhar. A aposentadoria, admite, não lhe caiu bem. Sentiu-se no limbo depois de 35 anos de serviços prestados a uma estatal do ramo das telecomunicações. Foi quando redescobriu um passatempo de infância: a filatelia. Não parou mais. Aos 61, não hesita em dizer: colecionar selos salvou sua vida. “Mais do que um hobby, é uma terapia”, acredita. “Quando me aposentei, comecei a sofrer de ansiedade. A filatelia resolveu meu problema”.

Três anos depois, outro baque: a covid-19. Confinado em casa, ele achou que fosse enlouquecer. Mais uma vez, a filatelia segurou sua mão. Primeiro, criou uma exposição virtual. “Foi um sucesso, fiz amigos no mundo inteiro”, orgulha-se. Depois, fundou um clube filatélico. “O maior da América Latina”, estufa o peito. “Somos 2 mil associados”. Finda a pandemia, Silva respira selos 24 horas. “Conheci o mundo inteiro sem sair de casa. São verdadeiras obras de arte impressas em pedaços de papel”, filosofa.

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Nos Estados Unidos, a socióloga Xiangyou Shen, diretora do Laboratório de Pesquisa em Saúde, Meio Ambiente e Lazer da Universidade Estadual do Oregon, estudou o impacto de atividades lúdicas no enfrentamento de crises. Para chegar a uma conclusão, ela e sua equipe entrevistaram 503 adultos. Em seguida, dividiram os participantes em dois grupos: no primeiro, batizado de “limonada”, os bem-humorados; no segundo, apelidado de “limão”, os mal-humorados. O critério usado pelos cientistas foi a Escala de Traços de Brincadeira em Adultos (APTS, na sigla em inglês).

Xiangyou constatou que, independentemente do humor do voluntário, todos estavam apreensivos com a covid-19 – e com toda a razão! A diferença é que os brincalhões enfrentavam a pandemia com leveza e otimismo. Uma de suas válvulas de escape foi resgatar antigos hobbies do fundo do baú. Coleções, jogos e brincadeiras, concluiu a coordenadora do estudo, tornaram esses indivíduos mais resistentes às adversidades e deixaram o isolamento menos assustador. Em resumo: eles souberam “fazer do limão uma limonada”.

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“A ciência está convencida de que os hobbies que praticamos são tão importantes para a nossa saúde física, mental e emocional quanto os exercícios que fazemos ou os alimentos que consumimos”, afirma Xiangyou. “Atividades lúdicas como colecionar selos ou montar quebra-cabeças reduzem os níveis de estresse, desenvolvem a capacidade de resiliência, combatem os sintomas da depressão e ajudam a fazer amigos. Se o hobby for analógico, como leitura ou aquarela, melhor ainda: certas experiências sensoriais, como a textura do papel ou o cheiro da tinta, estão ausentes nas interações digitais”.

Para Paulo Ananias Silva, a filatelia é uma terapia Foto: WILTON JUNIOR

Paulo, o filatelista do primeiro parágrafo, é o primeiro a admitir que as novas gerações são mais resistentes a colecionar selos. Não por acaso, seus próprios filhos – Camila, de 33 anos, e Paulo, de 30 – ensaiam um bocejo quando o pai toca no assunto. “Esse pessoal nunca mandou carta”, suspira desanimado. “Nem sabe o que é selo”. Dos 2 mil associados da Associação dos Filatelistas Brasileiros (Filabras), cerca de 80% tem mais de 50 anos, calcula o paraense de Belém. Por essa razão, uma de suas missões na vida é dar palestras em escolas e estimular o hobby entre os mais jovens.

Passatempo com cinco letras

Se a geração que mais curte selos é a X (nascidos entre 1965 e 1980), a que adora palavras cruzadas é a Y (entre 1981 e 1996). Um de seus adeptos mais famosos é o cantor Jão, de 30 anos. “Numa pesquisa recente realizada com assinantes e internautas, descobrimos que a maior parte do nosso público tem entre 30 e 60 anos”, afirma Eliana Machado, coordenadora editorial da Coquetel, que publica 78 títulos mensais, entre revistas, livros e coletâneas. “Queremos trazer sempre assuntos atuais, como prêmios e efemérides, e jogos variados, de sudoku a criptograma, para os nossos leitores”.

Quando guria, Constanza Zarpellon vivia se perguntando: “Por que minha avó passa tanto tempo imersa nessas revistinhas?”. Com o tempo, essa gaúcha de Porto Alegre descobriu a resposta. Mais do que isso, se uniu à avó, Ilse, na resolução dos enigmas da Coquetel. “Toda vez que abro uma revistinha é como se desligasse meu cérebro dos problemas do mundo. Não bastasse, sinto que fazer palavras cruzadas ainda estimula a memória, reduz a ansiedade e melhora a concentração. Quando faço caça palavras, por exemplo, tenho que prestar atenção aos detalhes para encontrar o que estou procurando”.

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Há cerca de um mês, Constanza, hoje com 29 anos, perdeu sua fiel companheira de palavras cruzadas: vó Ilse morreu aos 90 anos – “super lúcida”, diz a neta. Todos os dias, essa designer de moda curte seu passatempo favorito pela manhã, depois do almoço e antes de dormir. “Se bobear, faço toda hora”, ri. Quando sai de casa, anda sempre com uma revistinha na bolsa. Se o trânsito engarrafa, lá está ela tentando decifrar o significado de cigarro eletrônico proibido no Brasil com quatro letras” ou “tempero usado em pizza com sete”. “Mal termino uma e já quero comprar a próxima”, afirma.

Pessoas que, a exemplo de Constanza, fazem palavras cruzadas são menos propensas a desenvolver demência. É o que indica um estudo conduzido pela Universidade Monash, na Austrália, e publicado na revista científica JAMA Network Open. Outras atividades, como tricô, artesanato e xadrez, também são benéficas. “Qualquer hobby faz bem à saúde mental. Primeiro, você sente prazer ao fazer o que gosta. Quanto mais prazeroso, mais engajado. Depois, capacita o cérebro para resistir às mudanças do Alzheimer”, afirma a autora do estudo, Joanne Ryan, da Escola de Saúde Pública e Medicina Preventiva.

Não tenho um hobby. E agora?

Mas, e se você não tiver um hobby para chamar de seu, o que fazer? Bem, você pode resgatar algum dos seus tempos de criança. Pode ser quebra-cabeça, jogo de tabuleiro, kit de mágica... Opções não faltam, garante Ana Claudia Medeiros, da Fundação Abrinq. “Em um mundo cada vez mais acelerado, reservar um tempo para algo que nos faz bem não é luxo, é necessidade”, afirma. “Entre outros benefícios, o brincar ajuda na tomada de decisões. Muitos profissionais bem-sucedidos recorrem a atividades lúdicas para estimular a criação de novas ideias”.

Filatelista quer promover palestras em escolas e estimular o hobby entre os mais jovens Foto: WILTON JUNIOR

“Brincar nos prepara para viver. Se eu sobrevivo na brincadeira, sobrevivo na vida”, filosofa o palhaço Cláudio Thebas, coautor do livro O Palhaço e o Psicanalista: Como Escutar Os Outros Pode Transformar Vidas (Paidós, 2019), escrito a quatro mãos com o psicanalista Christian Dunker.

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Houve um tempo, não muito distante, em que apenas crianças e jovens brincavam. Hoje, muitos adultos compram jogos e brinquedos para si. Alguns chegam até a abrir casas de jogos de tabuleiro. Nesses clubes, não há lugar para games eletrônicos, só para diversões off-line, como Perfil, Detetive e Imagem & Ação.

“Mesmo que não disponha de tempo, ter um hobby é sempre bom. O importante é ser algo que desafie o jogador, promova aprendizado e traga satisfação”, orienta a psicanalista Mariana Mies, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

Não sabe ainda que hobby escolher? Não se preocupe: o psiquiatra Stuart Brown, de 92 anos, dá algumas dicas. A principal delas, observa o fundador do National Institute for Play, é descobrir sua “personalidade lúdica”. São oito: colecionador, competidor, criador/artista, diretor, coringa, contador de histórias, explorador e cinestésico (veja mais detalhes aqui). “Se tivesse que escrever um manual de instruções ou um guia de sobrevivência para adultos, escreveria: ‘Brinque mais. Se estresse menos’”, ensina. “Brincar é, depois de comer e dormir, a maneira mais saudável de passar o tempo”.

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