Com um sopro indolor de dez segundos em um aparelho parecido com um bafômetro, a advogada Alessandra Lacerda da Silva Santana, de 28 anos, ajudou a ciência do câncer a dar mais um passo em direção ao surgimento de métodos de diagnóstico precoce mais simples e acessíveis. Essa é uma das principais necessidades dos mais de 625 mil brasileiros surpreendidos pela doença a cada ano, segundo estimativa do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Alessandra tornou-se uma das primeiras voluntárias brasileiras a testar um aparelho criado pelo Instituto de Tecnologia de Israel para detectar câncer no aparelho digestivo por meio da respiração. O estudo clínico iniciado nesta semana no A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, deve envolver 300 participantes (com e sem câncer) até o final do ano.
A advogada não tem a doença, mas ela e a irmã fazem acompanhamento genético e endoscópico preventivo porque a mãe morreu de câncer de estômago há três anos, o pai teve no intestino e o avô materno não resistiu a um tumor de pâncreas. “Espero que o estudo do aparelho seja positivo e ele ajude a salvar outras pessoas”, diz Alessandra.
O hospital é o único do país a participar do projeto VOGAS (uma sigla em inglês para rastreamento de compostos orgânicos voláteis), esforço internacional de desenvolvimento de um método acessível e não invasivo de detecção precoce de tumores de estômago. A pesquisa tem participação de centros da Colômbia, Chile, Ucrânia, Letônia e financiamento da União Europeia.
Por meio da respiração, o aparelho é capaz de detectar compostos voláteis (fenóis, álcool, gorduras, açúcares) liberados pelas células tumorais e também por outras alterações. A máquina é tão sensível que os voluntários não podem usar desodorante, perfume, cigarro, chiclete e outras substâncias capazes de interferir no resultado do exame. O objetivo é comparar os perfis de compostos exalados por pessoas com e sem a doença.
Quando chegar à rotina dos centros de diagnóstico, o aparelho pode se tornar uma poderosa ferramenta de triagem de pacientes. Nos estudos iniciais, a capacidade de detectar tumores pelo “bafômetro” ultrapassou os 70%. Quando ele aponta alterações, a pessoa é encaminhada à endoscopia para confirmação do diagnóstico.
“Incorporar essa ferramenta diagnóstica no dia a dia seria fantástico porque hoje o exame mais precoce para câncer de estômago é uma biópsia endoscópica, exame desconfortável, que exige jejum e sedação, análise patológica e nem sempre está disponível a quem mais precisa”, afirma o biólogo molecular Emmanuel Dias-Neto, do Centro Internacional de Pesquisas do A.C. Camargo Cancer Center.
“Em grande parte dos casos de câncer de estômago, os sintomas só aparecem quando a doença já está avançada. Com essa triagem fácil de fazer, esperamos salvar muitas vidas”, diz. A expectativa dos pesquisadores é que, no futuro, o “bafômetro” seja detecte também outros tipos de tumor.
Estimular a defesa do organismo contra a doença
Entre os desenvolvimentos recentes na pesquisa e no tratamento do câncer, um dos mais notáveis é o avanço da imunoterapia. Esse é um conceito amplo, que envolve várias formas de estimular as células de defesa do organismo a combater os tumores com mais facilidade.
Uma das técnicas em alta é a infusão de linfócitos T geneticamente modificados. Essas células, as CAR-T na sigla em inglês (receptor de antígeno quimérico), são extraídas da corrente sanguínea do próprio doente e reprogramadas em laboratório. Um vírus modifica o DNA do linfócito para torná-lo capaz de reconhecer o câncer por meio de um antígeno tumoral (uma proteína expressa pelas células malignas) e atacá-lo.
Essa modificação genética não é um produto pronto, disponível nas prateleiras como um medicamento qualquer. Ela é personalizada de acordo com o organismo de cada paciente e só pode ser feita em laboratórios específicos, dentro de centros acadêmicos ou em instalações ligadas à indústria farmacêutica, como acontece nos Estados Unidos, na Europa, na China e em outros países.
Depois de modificadas para reconhecer o antígeno tumoral e combater a doença, as células do paciente voltam ao hospital e são injetadas de volta no doente. Antes da infusão, o paciente precisa fazer quimioterapia para que o sistema imune não ataque as células geneticamente modificadas. Só assim elas podem exercer sua ação contra o tumor.
Os primeiros produtos de CAR-T foram aprovados em 2017 pela FDA, a agência reguladora equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Novartis fabrica o Kymriah (tisagenlecleucel) para tratamento de leucemia linfoide aguda e de linfoma difuso de grandes células B. Para combater o mesmo tipo de linfoma, a Kite Pharma lançou o Yescarta (axicabtagene ciloleucel) e a Juno Therapeutics criou o Breyanzi (lisocabtagene maraleucel). Em seguida, a Jansenn desenvolveu o Cilta-cel (ciltacabtagene autoleucel) para combater o mieloma múltiplo.
Esses produtos são destinados a pacientes que foram submetidos a três diferentes linhas de tratamento e, mesmo assim, o câncer voltou. Nenhum deles está disponível comercialmente no Brasil, mas a indústria realiza estudos clínicos no país. A expectativa é que a técnica seja liberada pela Anvisa ainda no 1º semestre.
“A terapia com células CAR-T não é uma panaceia, não resolve a vida de todos os pacientes, nem é isenta de riscos”, diz o médico Nelson Hamerschlak, diretor do Centro de Hematologia e Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein. “Mas os resultados são maravilhosos porque há taxas de sobrevida acima de 60% em pacientes com doenças agressivas que, sem esse tratamento, teriam morrido”.
Aos 54 anos, Sandra de Souza Silva, diretora criativa de moda feminina, vive desde 2019 sem qualquer sinal de câncer. Na última tentativa de vencer um linfoma agressivo (depois de quimioterapia, transplante de medula e outros tratamentos), ela participou de um estudo clínico com células CAR-T no University Hospitals Cleveland Medical Center (EUA). “Com quimioterapia, os médicos deram um ‘reset’ no meu sistema imune. Fiquei em isolamento total porque poderia morrer de qualquer infecção. A infusão das minhas células modificadas foi muito rápida e feita na veia do braço”, diz. “Foi uma emoção enorme quando, depois do tratamento e de exame de PET-scan, o médico nos Estados Unidos me disse que eu estava zerada, sem sinal de câncer”.
Em pouco tempo, Sandra recuperou a disposição. Além de trabalhar, pratica atividade física (corrida, musculação, ioga) quase todo dia. “Uma cura depende da boa medicina, do amor ao redor e de muita fé e esperança”, diz ela. “Torço para que logo esse tratamento esteja disponível a todos os que precisam, inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Técnica ainda precisa vencer barreiras
Por ser voluntária em uma pesquisa, Sandra não precisou arcar com o custo da terapia (cerca de US$ 500 mil nos Estados Unidos, o equivalente a cerca de R$ 2,7 milhões), mas diz que gastou aproximadamente US$ 300 mil (cerca de R$ 1,6 milhão) para pagar a conta do hospital e da estadia de três meses dela e de familiares. Para baratear o custo da terapia e torná-la acessível, várias iniciativas acadêmicas estão em desenvolvimento no Brasil.
Em vez de apenas testar produtos da indústria farmacêutica, universidades e centros de pesquisas tentam desenvolver capacidade própria de gerar as células modificadas. Há projetos em curso no Instituto Butantan, no Instituto Nacional de Câncer (Inca), na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal do Ceará (UFC0, no Einstein e em outros centros, com colaboração entre os pesquisadores. “Começa a ser formar um time para cooperação nacional e internacional”, diz Hamerschlak. Nos próximos anos, a técnica deve ser usada para tratar também tumores sólidos, como os de mama, o neuroblastoma (em geral, ocorre nas glândulas adrenais que ficam em cima dos rins) e outros.
Existe outra barreira a ser vencida: o controle dos efeitos colaterais. “A infusão das células CAR-T pode provocar uma inflamação sistêmica, chamada síndrome de liberação de citocinas”, afirma o médico Jayr Schmidt Filho, diretor do Centro de Referência em Neoplasias Hematológicas do A.C. Camargo Cancer Center. Em quantidade elevada, essas citocinas (proteínas inflamatórias) provocam febre, queda de pressão, necessidade de oxigenação e de internação em unidade de terapia intensiva (UTI).
Pode ocorrer também uma síndrome neurológica capaz de produzir confusão mental, desorientação, convulsões e até coma. “Ainda assim, os resultados disponíveis até agora indicam que os benefícios superam os riscos. Se o paciente estiver em um centro com recursos e profissionais treinados para lidar com os efeitos colaterais, eles são tratáveis”, diz Schmidt Filho.
Transplante fecal pode melhorar resposta a tratamentos
Um dos conceitos mais curiosos na pesquisa do câncer é a relação entre a microbiota do aparelho digestivo (algo modificável com a alimentação) e a resposta do organismo aos tratamentos. Em um estudo publicado na revista Science no ano passado, pesquisadores da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, demonstraram que é possível estimular a resposta dos doentes à quimioterapia e à imunoterapia ao alterar a população de bactérias que vivem no intestino.
“O transplante fecal de uma pessoa que responde bem ao tratamento pode ajudar a salvar doentes nos quais as drogas não fazem efeito. Os estudos iniciais são muito promissores”, diz o biólogo molecular Emmanuel Dias-Neto, do Centro Internacional de Pesquisas do A.C. Camargo Cancer Center. Depois de filtradas e separadas em laboratório, as bactérias do doador podem ser transformadas em cápsulas liofilizadas que o receptor ingere como um comprimido qualquer. Elas colonizam o intestino e, em poucos dias, ocorre uma mudança dramática da microbiota do receptor.
Um projeto coordenado por Dias-Neto pretende coletar amostras de fezes dos pacientes tratados no hospital e iniciar um estudo sobre os casos nos quais os tratamentos não foram capazes de debelar o câncer. “A partir de pesquisas muito cuidadosas, vamos tentar reverter isso com transplante fecal”, afirma.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.