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Câncer: por que terapia inovadora ainda não serve para todos os pacientes e tipos de tumor?

Tratamento com as células CAR-T, que fez paciente em SP ter remissão completa de um linfoma, tem limitações de eficácia contra tumores sólidos e riscos de efeitos colaterais graves, explica especialista americana

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Foto do author Fabiana Cambricoli

CHICAGO* - A terapia com células CAR-T, que fez um paciente com quadro avançado de linfoma ter remissão completa da doença ao ser tratado pela USP e pelo Instituto Butantan, se mostra como uma das mais promissoras apostas da ciência contra o câncer, mas (pelo menos por enquanto) tem limitações que impedem que ela seja eficaz e segura para todos os pacientes e tipos de tumor.

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Nesse tipo de tratamento, linfócitos (um tipo de célula do sistema imune) do próprio paciente são coletados, modificados geneticamente e, em seguida, reinseridos no corpo do doente para atuar no reconhecimento e combate ao tumor.

A terapia tem mostrado respostas surpreendentes contra os cânceres hematológicos ou do sangue (leucemia, linfoma e mieloma múltiplo), mas ainda não avançou igualmente contra os tumores sólidos, conforme explicou, em entrevista ao Estadão, Yvonne Chen, professora da Universidade da Califórnia e líder de um laboratório na instituição americana que desenvolve terapias celulares contra doenças hoje consideradas intratáveis.

Yvonne foi uma das palestrantes do encontro anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO, na sigla em inglês), maior congresso de oncologia do mundo, realizado em Chicago na última semana e acompanhado pelo Estadão. No evento, especialistas de todo o mundo discutiram o futuro da terapia com células CAR-T e como reduzir possíveis efeitos colaterais graves do tratamento.

Atacar tumores sólidos é desafio

A professora americana explicou que uma das principais dificuldades de alcançar os mesmos bons resultados da terapia também contra tumores sólidos é a falta de um “bom alvo” nesses tipos de câncer.

“As células CAR-T são projetadas para atingir antígenos específicos, ou seja, proteínas que ficam na superfície das células tumorais. Um antígeno ideal é aquele expresso nas células tumorais e não expresso em tecidos saudáveis. Tivemos muita sorte em encontrar bons marcadores para os tumores hematológicos, mas o mesmo não pode ser dito sobre alvos que foram testados em tumores sólidos e que fizeram as células CAR-T atacarem células do coração ou do pulmão do paciente e ele morrer”, disse a especialista.

O segundo maior desafio, de acordo com a professora, é o reconhecimento das células tumorais por parte das células T no caso dos cânceres sólidos. No caso dos tumores hematológicos, esse reconhecimento é mais fácil porque as células cancerígenas e os linfócitos T estão “no mesmo espaço”, ou seja, no sangue, nos linfonodos, no sistema linfático.

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“No caso dos tumores sólidos, eles não estão no mesmo espaço e há alguns que chamamos de tumores frios imunologicamente porque eles não mandam sinais para o sistema de defesa combatê-los, então as células T não conseguem chegar porque não recebem esse sinal. Isso acontece com o câncer de pâncreas, por exemplo”, diz.

Paciente tratado em SP teve remissão completa de linfoma Foto: Reprodução/ Instagram: @paulocfperegrino

Mesmo quando as células T conseguem identificar onde o tumor está e qual é o alvo a atacar, há uma terceira dificuldade: manter essas células funcionais quando elas tentam se infiltrar no tumor. “O tumor sólido é uma massa e imunossupressora. Uma vez que as células T se infiltram para combater esse tumor, não é fácil mantê-la funcionando naquele ambiente.”

Apesar das dificuldades, ela diz se “manter otimista” sobre a possibilidade de uso dessa terapia em tumores sólidos porque alguns estudos recentes começam a mostrar boas respostas em doenças como gliomas, um tipo de tumor no cérebro, e neuroblastomas, câncer infantil que se origina no sistema nervoso central. “Ainda há esperança, precisamos saber as dificuldades para conseguir pensar em soluções.”

Embora raros, efeitos colaterais podem ser graves

Outra limitação do tratamento com as células CAR-T é o risco, ainda que raro, do desenvolvimento de efeitos colaterais graves.

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De acordo com Yvonne, as duas complicações mais preocupantes são a síndrome de liberação de citocinas (CRS, na sigla em inglês), caracterizada por uma reação exacerbada do sistema imunológico e consequente resposta inflamatória descontrolada, e a síndrome de neurotoxicidade associada a células efetoras imunes (ICANS, também na sigla em inglês), reação que acomete as funções cerebrais. Ambas as condições podem ser tratadas, mas são graves e podem levar à morte.

“É por isso que, ao menos nos Estados Unidos, essas terapias tendem a ser aplicadas em grandes hospitais e não em clínicas, porque você precisa garantir que o paciente tenha leitos de UTI e equipe médica preparada para lidar com esse tipo de evento adverso”, diz.

Essa também é uma das razões pela qual a terapia tem sido aplicada, inclusive nas pesquisas desenvolvidas no Brasil, como última estratégia, naqueles pacientes que já tentaram outros tratamentos sem sucesso.

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Yvonne diz que há pesquisas tentando descobrir se há fatores de risco ou perfis específicos de pacientes mais sujeitos a esses efeitos colaterais graves. “Há fortes evidências sugerindo que uma alta carga tumoral, que é quando o paciente tem quantidade alta de células cancerígenas, pode estar associada a esses efeitos colaterais mais graves. Mas esta é uma questão na qual muitos pesquisadores estão trabalhando: identificar quais pacientes correm alto risco e como prevenir esses eventos.”

Custo ainda é barreira, mas ‘pode e deve cair’, diz especialista

Para além das questões médicas e científicas de eficácia e segurança, a terapia com células CAR-T tem outra grande barreira: o custo. No Brasil, o primeiro tratamento do tipo aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no ano passado, teve preço definido em até R$ 2,1 milhões por paciente, conforme precificação feita pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).

Os cientistas também estão debruçados em possíveis soluções para baratear o custo da tecnologia e já têm algumas sugestões de como fazer isso. “Automatizar o processo poderia reduzir o custo porque não precisaria de tantas pessoas e porque você poderia fazer o processamento das células localmente em vez de enviar as células para outros países (o que acontece na maioria dos casos no Brasil, em que as células são enviadas para os EUA)”, diz Yvonne.

Yvonne reconhece que, por tratar-se de uma tecnologia nova e complexa, muitos centros preferem fazer o processamento das células manualmente para ter “maior controle”, mas diz que muitos grupos de pesquisa já estão trabalhando em aprimorar o processo de automatização para garantir a qualidade do tratamento.

Outra estratégia que ela vê como possível, mas que ainda precisa de mais testes, é fazer as células CAR-T a partir de linfócitos de doadores (infusão alogênica) e não do próprio paciente (infusão autóloga).

“Se for alogênica, você pode fazer com antecedência e congelar muitas doses do mesmo doador saudável e, quando o paciente chega, você apenas dá a ele algo que já está no freezer. Isso reduziria os custos porque as doses poderiam ser exportadas para diferentes países”, diz Yvonne. O desafio, diz ela, é garantir que as células alogênicas tenham as mesmas taxas de eficácia e segurança que as terapias celulares autólogas.

Edward Cliff, pesquisador da Universidade Harvard, outro palestrante de painel do congresso da ASCO sobre terapia com células CAR-T, também defendeu a descentralização da produção do tratamento.

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“Se você passa a produzir em países onde o custo da mão de obra é mais baixo, mas que você consiga garantir a qualidade do produto, seria uma solução. E é possível garantir a qualidade. Quando surgiram os medicamentos biológicos, as pessoas ficaram preocupadas se a qualidade seria mantida, mas hoje a Índia, por exemplo, é líder nessa área”, diz.

Ele mencionou iniciativas que já estão buscando criar as condições para que países de renda média ou baixa possam processar suas próprias células para tratamentos de terapia gênica ou celular. “Tem um grupo chamado Caring Cross que está trabalhando na produção na Índia e em outros lugares. Já mostraram algumas provas de conceito e, obviamente, o próximo passo é trabalhar numa escala maior, mas estou muito confiante de que isso pode ser feito”, disse.

Ele defendeu ainda que as farmacêuticas pratiquem preços diferentes para países com rendas diferentes. “Deve haver um critério pelo PIB do país, por exemplo. Isso já é feito com outros grupos de medicamentos e deve ser feito também para as terapias inovadoras para o câncer.”

Para Yvonne, o custo das terapias com células CAR-T “pode e deve cair”. “A gente não desenvolve terapia só para ajudar gente que tem muito dinheiro. Há diferentes maneiras de tentar diminuir esse custo e acho que devemos ir atrás de todas elas.”

* A repórter viajou a convite da Bayer

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