BRASÍLIA - Um ano após o registro do primeiro caso da covid-19 no Brasil, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM), que comandou a pasta nos meses iniciais da pandemia, vê o País como uma nau sem rumo, o Sistema Único de Saúde (SUS) destruído e a situação do País cada vez mais grave. "A cepa mais transmissível anda de Ferrari. Já a campanha de vacinação vai de carroça", disse em entrevista ao Estadão.
O ex-ministro afirmou que percebeu a gravidade da doença durante o Fórum de Davos, em janeiro de 2020, quando viu a cúpula da Organização Mundial da Saúde (OMS) "rachada" sobre declarar ou não uma emergência global. Para ele, a demora da entidade em confirmar a pandemia atrasou ações do Brasil contra o vírus.
Mandetta tornou-se personagem central nos primeiros meses de pandemia ao divergir da postura do presidente Jair Bolsonaro, que minimizava a força da doença. O ex-ministro afirma que alertou o chefe do Executivo sobre o tamanho da crise quando o governo confirmou o primeiro caso no Brasil, na mesma semana em que o sistema de saúde da Itália entrou em colapso. O presidente, porém, estava na "vibe do Trump" e tratou com desdém os alertas, afirmou Mandetta, em referência ao ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Bolsonaro demitiu Mandetta em 16 de abril. O ex-ministro disse que não faria nada diferente no cargo. Não há arrependimento nem mesmo por liberar a primeira orientação de uso da cloroquina em pacientes da covid-19, droga sem eficácia comprovada no combate contra a doença.
O ex-ministro afirmou que vai participar "ativamente" das eleições de 2022, "como eleitor, cidadão ou candidato", mas que estará emcaminho diferente da "esquerda equivocada" e do "Bolsonaro desequilibrado".
Quando o senhor ouviu falar sobre a covid-19 e em que momento percebeu que se tratava de uma doença grave?
O Brasil foi um dos primeiros países a questionar a OMS sobre a doença, quando o Wanderson Oliveira (ex-secretário de Vigilância Sanitária) ouviu ruídos sobre o vírus. Quando fui para o Fórum de Davos, parei em Genebra. Lá eu iria jantar com Tedros (Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS), mas ele disse que não iria participar, pois haveria reunião no comitê de emergência sobre a doença. Eles (a cúpula da OMS) racharam sobre declarar emergência global. Aí fizeram (a declaração): é uma emergência para Wuhan e um alerta internacional.
A demora da OMS em declarar pandemia atrasou ações contra a covid-19?
Com certeza. Sinalizavam que era um vírus lento. Mas em intervalo de dois meses estava nos cinco continentes e a OMS seguia tratando como problema local. Fui o primeiro ministro da Saúde a falar que estávamos diante de uma pandemia e eles não queriam usar este termo. Se tivessem falado que era um vírus leve, rápido, a gente teria de dimensionar tudo.
Quando o senhor falou ao presidente que a doença causaria uma grave crise?
Quando tivemos o primeiro caso no Brasil e o sistema de saúde da Itália caiu. Mas ele começou a entrar na mesma vibe do Trump, não dimensionou. Ele tinha uma viagem aos EUA. Eu já estava dando o alerta, tinha de fazer um plano de biossegurança. Eles não queriam usar nem álcool em gel para não transparecer preocupação.
Percebeu em que momento que Bolsonaro assumiu postura diferente daquela recomendada pela Saúde?
O presidente começou a forçar saídas e aglomerações. A imprensa me perguntando: "Você está dizendo para pessoal se cuidar e o presidente fica saindo". Ele me convidou (para as saídas), mas como percebeu que eu não iria começou a chamar o presidente da Anvisa (Antonio Barra Torres). A Anvisa servia como autoridade de saúde para legitimar aquilo. Ele também tinha convocado protesto para um domingo e eu precisava demover ele daquela ideia. O presidente me chamou para uma "live" e disse (aos apoiadores) que era melhor não irem à manifestação, mas no domingo ele sai, abraça, beija. Era para ele estar em quarentena, porque teve contato com infectados na viagem aos EUA. Daquele momento para frente foi só..."bom, não vou poder contar com ele para enfrentar isso".
Com as informações disponíveis hoje sobre a doença, o senhor teria feito algo diferente no cargo de ministro?
Não. Fiquei no ministério. Eles não queriam fazer nenhuma campanha de esclarecimento ao público. Passei a utilizar a imprensa, usar boletins, fazer coletivas, para imprensa fazer o papel que foi fundamental naquele momento. Chegamos a zerar as máscaras. Então dissemos: use máscara de pano. Estamos numa pandemia. Conseguimos um navio da China de equipamentos de proteção porque eu pedi ao ministro para deixar sair o último navio, que levou 20 dias para chegar. Fazia licitação e dava "zero". Pessoal querendo cobrar a máscara a R$ 8 por unidade. Abrimos linha de montagem para respiradores. E foi o que salvou. No meio disso ainda havia um conflito com a China.
O senhor acha que errou ao autorizar a primeira orientação sobre o uso da cloroquina?
Não, naquele momento havia consenso sobre uso compassivo, inclusive pela OMS, como uma última tentativa. Autorizei para uso hospitalar. Agora, colocar isso na rede, recomendar tratamento com cloroquina, aquele negócio, aquilo não. Na semana anterior à minha saída, após uma reunião com o presidente em que todo mundo dava como certo que eu seria demitido, me chamaram numa sala onde estava a Nise Yamaguchi (médica defensora da cloroquina) e muitos ministros. Eu cheguei na reunião e havia uma minuta de decreto, mas não oficial, em papel timbrado, com sugestão para que a Anvisa colocasse indicação para covid na bula da cloroquina. Eu olhei para o presidente da Anvisa e ele disse que não faria aquilo em hipótese alguma. Eu disse: o presidente está extrapolando.
Como o senhor vê a situação da pandemia hoje e o que pode ser feito?
Brasil está como uma nau sem rumo. O que poderia ser feito: começar por colocar gente que entende de saúde e epidemia para conduzir, gerar políticas, recuperar o SUS. Tem de começar a refazer o sistema, que está totalmente fragmentado. Estamos num caos. Não tem liderança que fala pela saúde brasileira. O papel do ministério se perdeu.
Qual a responsabilidade do ministro Eduardo Pazuello na crise?
Ele é responsável. Se o presidente me chamar para ser chefe do Exército, vou falar: não tenho formação. Se me botarem pra dirigir um boeing com 400 pessoas dentro, vou dizer que não posso pilotar. Vou derrubar o avião. Ele está num cargo em que não tem condições técnicas para administrar. Retirou a equipe técnica. Não precisava ficar comigo, mas por que tirar o Wanderson? Um dos 3 ou 4 melhores epidemiologistas do mundo. A culpa do Pazuello é na formação da equipe. Ele forma pensando que está dentro de um quartel. Não é lugar de mando, mas de liderança, que se impõe pelo conhecimento do sistema, da doença. Ele não tem conhecimento do sistema, da doença nem do ser humano.
Como vê os próximos meses da doença?
Um agravamento da doença. Vamos passar pela sazonalidade, mas com a nova cepa. Vimos isso na região Norte, onde faltou oxigênio, o que é uma barbeiragem enorme. O Brasil não estuda a nova cepa e o ministério fez um movimento errado de tirar os pacientes de Manaus de qualquer jeito. Ele plantou a nova cepa em todo o País. A gente tem uma situação em que a cepa mais transmissível anda de Ferrari. Já a campanha de vacinação vai de carroça.
O senhor será candidato nas eleições de 2022?
Vou participar ativamente da eleição, agora, como eleitor, cidadão, candidato... Isso aí, não consigo ainda afirmar. Com certeza vou procurar um caminho que não seja nem daquela esquerda equivocada, que plantou essa crise toda, nem desse Bolsonaro desequilibrado, que planta esse caos todo.
Pensa em sair do DEM? Está falando com algum partido?
Depende. A gente tem de escutar. Entrei no DEM em 2009 para poder fazer crítica à política de saúde quando o PT tinha alta aprovação. Não tenho necessidade de aderir a um governo, mas à verdade. Agora, se esse partido vai por esse caminho, ótimo. Senão, vamos aguardar, talvez algum outro vá, aí eu me apresento e peço para entrar. Está todo mundo conversando com todo mundo. Se cada conversa virar notícia, vocês não vão ter mais página de jornal.
O senhor disse que não quer ficar no grupo do presidente, mas fez parte do governo mesmo conhecendo Bolsonaro como deputado, quando ele votou a favor da pílula do câncer e defendeu abertamente a tortura. O senhor acha que cometeu um erro ao entrar no governo e até validar posições do governo?
O presidente a gente conhece quando ele assume. Eu conhecia um deputado Bolsonaro, que era polêmico. Eu votei nele porque queria uma ruptura com o PT. Agora, a gente sempre acredita. Eu já vi de tudo lá de dentro, da Câmara. Tanto gente como Bolsonaro, como da esquerda que acha o Maduro um humanista. O que a gente imagina: quando uma pessoa chega na Presidência, o peso do cargo, liturgia, responsabilidade por uma nação com tantos desafios, que o cargo vai moldar. A proposta que ele me fez foi de montar o ministério com equipe técnica. Montei a melhor equipe. Só que o dia que veio um problema na nossa frente e eu precisava dele, aí ele não queria um ministério técnico, mas político. Aí você fala: isso aqui não é sério, é equívoco.
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