“Depois desse vídeo você nunca mais vai precisar de um nutricionista porque descobri uma fórmula para você gerar suas dietas em apenas cinco minutos, totalmente de graça.” Esse é o início de um das centenas de vídeos que têm se espalhado pelas redes sociais sugerindo o uso de inteligência artificial para elaborar planos alimentares, como uma suposta solução rápida e econômica para uma vida mais saudável.
A prática ganhou força com a chegada do ChatGPT. Conteúdos sobre pedidos para a ferramenta elaborar dietas viralizaram, especialmente no TikTok. Na plataforma, um vídeo sobre o assunto alcançou cerca de 3 milhões de visualizações e mais de 200 mil curtidas. Frases como “adeus, nutricionistas” e “como vou ser nutricionista com as coisas mudadas de hoje?” aparecem entre os comentários.
Luana Najara Brito, de 29 anos, é uma das que recorreram ao software. “A primeira vez que usei para isso foi para tirar uma dúvida, não montar uma dieta inteira”, afirma ela, que vive em Goiânia. “Agora uso todo dia”, diz a jovem, que já se consultou com uma nutricionista, mas não contou sobre o ChatGPT. “Ela não iria gostar muito.” Luana admite ver riscos nesse uso da tecnologia, mas acredita que, no seu caso, o problema é menor por já ter buscado orientação profissional antes.
Especialistas, porém, alertam para perigos dessa alternativa. Alergias, interações com remédios e a ameaça de “efeito sanfona” estão entre os possíveis efeitos negativos, apontam.
Para avaliar este tipo de uso da inteligência artificial (IA), o Estadão pediu ao ChatGPT que criasse planos de dieta para cinco perfis: uma mulher de 30 anos que faz atividade física moderada e deseja emagrecer, um jovem de 24 anos que frequenta academia com força intensa e quer ganho muscular, uma mulher de 50 que não faz exercício e deseja se alimentar melhor, uma adolescente de 15 anos sedentária que deseja emagrecer e um idoso de 60 anos hipertenso e faz atividades leves regularmente.
Os resultados entregues pela IA foram avaliados pelos nutricionistas Kristy Soraya Coelho, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Alimentos da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), e Marcus Vinicius Quaresma, professor de Nutrição do Centro Universitário São Camilo.
Nos cinco casos, a avaliação feita pelos especialistas pode resumir cada em uma só palavra: genérica. “Os cardápios seguem mais ou menos o mesmo padrão. Muitas vezes, o chat até repete alguns alimentos”, afirma Kristy.
Uma das explicações para isso é que o software é nada mais do que um gerador de linguagem, e não propriamente uma fonte segura de informações, especialmente as que podem afetar a saúde, diz Diogo Cortiz, professor da PUC-SP e pesquisador do NIC.br. Ele acredita que a inteligência artificial é “sensível” para ser usada na área da saúde.
“A ferramenta aprendeu a fazer isso processando muitos textos. Aprende a gerar respostas a partir da relação entre palavras, encaixando-as a partir do contexto”, diz. “É um modelo probabilístico. A resposta pode ser correta para um e pode ser que outro faça pergunta parecida e dê uma resposta incorreta. É importante enfatizar que não é um banco de dados de conhecimento, que teve curadoria humana.”
Outro fator que resulta na falta de individualidade dos planos alimentares, segundo os nutricionistas, é que um paciente leigo, ao solicitar a dieta ao software, não lista informações comumente pedidas por profissionais na avaliação nutricional. E a ferramenta, por sua vez, não é capaz de investigá-los.
Exames de saúde, hábitos alimentares, rotina e informações antropométricas (peso, altura, dobras cutâneas, circunferências, índice de massa corpórea) são alguns dos dados imprescindíveis.
“Não sei se o chat daria conta de mapear tudo isso. Muito provavelmente não, porque isso faz parte do nosso treinamento profissional e essas informações precisam ser levantadas para orientarmos melhor. Cada prescrição é personalizada conforme as características de cada um”, afirma Kristy.
“Todos esses elementos precisam ser identificados com cautela. É necessário um mar de informações para o diagnóstico nutricional. A partir daí, propomos planejamento alimentar nutricional, que precisa levar em conta uma gama de fatores - não só idade, peso e se faz atividade física”, diz Quaresma.
O Estadão perguntou ao TikTok e a OpenAi, empresa criadora do ChatGPT, se eles supervisionam este tipo de uso, mas ainda não obteve resposta.
ChatGTP peca na falta de detalhes
Para especialistas, pedir que a inteligência artificial monte cardápios é a evolução tecnológica da busca por dietas prontas na internet, disponíveis em blogs e portais geralmente não verificados por profissionais da nutrição. E, assim como o modo antigo de pesquisa, pode oferecer desinformação nutricional.
Nenhum dos cinco planos pedidos pelo Estadão foi aprovado pelos nutricionistas. A tecnologia deixou de fora alimentos não saudáveis, mas há brecha para erros na falta de prescrições específicas ou detalhes.
Na dieta para a mulher de 50 anos que deseja comer melhor, a ferramenta recomendou pão integral e granolas. “Não indica, por exemplo, qual tipo de granola é. Existem várias. Nem se o pão integral deve ser mais ou menos processado, com mais ou menos grãos. São elementos que ficam frágeis”, diz Quaresma.
Para o mesmo perfil, o chat recomendou opções de almoço e jantar. Nos dois casos, falta precisão, indicando a medida exata das porções, além de não dizer o tamanho do filé de frango, o que impacta no tanto de proteína ingerida, e se o salmão grelhado é com pele ou sem pele, diz o nutricionista.
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Outro cardápio com diversos erros apontados foi o indicado para o jovem de 24 anos que busca ganho muscular. A inteligência artificial incluiu no lanche pré-treino e no pós-treino uma porção de whey protein.
“Com certeza não há necessidade de ingerir duas doses de proteína, antes e depois do exercício físico. Seria uma falha, pensando no efeito da proteína do organismo”, diz Quaresma. Ele afirma que não há necessidade de duas doses, uma vez que a dieta, por si só, é capaz de disponibilizar proteína para o resultado desejado pelo paciente.
No mesmo plano, Kristy crítica o fato de que a alimentação é direcionada para alta ingestão de proteína, sem fornecer ingestão adequada de carboidrato necessária para que o jovem tenha energia suficiente para ginástica de intensidade alta. “Põe ovos mexidos, whey protein, porções de carne, mas não dá ênfase ao carboidrato.”
Ela ainda aponta a carência de frutas nas dietas e o fato de que os cardápios não indicam as preparações, especificando, por exemplo, se o alimento leva sal ou óleo, o que impacta o valor nutricional.
Segundo especialistas, a preferência individual por alimentos, o tempo de preparo do prato, a possibilidade de prepará-lo ou não no dia a dia, a época que produtos naturais estão disponíveis e o preço são fatores não considerados pela ferramenta e que impactam na adesão ao cardápio.
Na dieta da adolescente, o ChatGPT indicou, como lanche da tarde, cenoura baby, tomate cereja e aipo com uma colher de sopa de homus ou guacamole, alimentos que normalmente não são do gosto da faixa etária ou que não tem preparo tão simples. “É bem difícil um adolescente de 15 anos consumir o que está aqui. A ferramenta pensou no alvo energético, mas qual é o perfil desse adolescente para que consuma cenoura baby, aipo, homus e guacamole à tarde?”, questiona Quaresma. A crítica também atinge o lanche do idoso, que sugere mirtilos, fruta pouco acessível no Brasil.
Os especialistas ainda desaprovam a falta de substituições nos cardápios: consumir as mesmas refeições diariamente empurra todos para fora da dieta, uma vez que o paciente pode enjoar dos alimentos. “A ideia é que a pessoa seja autônoma, no sentido de entender quais são as trocas, e seja autossuficiente, sem estar sempre com o cardápio na mão. Ele (o cardápio do ChatGPT) é monótono”.
Riscos e apontamentos dos nutricionistas sobre cada cardápio
Dieta 1 - Mulher, 30 anos, que faz atividade física moderada e deseja emagrecer:
- Valor energético da dieta não cobre as taxas de metabolismo da pessoa, o que pode levar a um emagrecimento não saudável.
- Traz poucos alimentos com cálcio, importante sobretudo para mulheres, e não especifica porções.
Segundo Matheus Alves Álvares, coordenador de endocrinologia pediátrica do Sabará Hospital Infantil, o cálcio é um nutriente essencial para o fortalecimento e o desenvolvimento ósseo. Se, a longo prazo, o nutriente for consumido em quantidades insuficientes, pode haver enfraquecimento dos ossos, podendo, inclusive, levar à osteoporose.
E a perda de peso não saudável também pode ser insustentável a longo prazo, uma vez que ocorre por meio de ações metabólicas que exigem mais do que organismo pode oferecer de forma sadia. Além da reversão dos resultados, ocasionando um “efeito sanfona”, consequências como fraqueza, déficit nutricional de vitaminas e perda de massa muscular podem ser sentidas.
Dieta 2 - Homem, 24 anos, que faz atividade física de alta intensidade e deseja ganho muscular:
- Embora seja para um perfil diferente da primeira dieta, o ChatGPT indica um cardápio com base alimentar próxima, mas com volume maior de alimentos, demonstrando falta de individualidade.
- Foca excessivamente na ingestão de proteínas e subestima a demanda de carboidratos, necessário para produção de energia.
O consumo desequilibrado entre carboidrato e proteína, além da queda na obtenção externa de energia, pode sobrecarregar os rins e ter uma piora da função dos órgãos, prejudicando a filtração renal. Em situações agravadas, o quadro pode levar à necessidade de diálise, alerta Fabiano Girade, médico coordenador de Nutrologia do Hospital Vila Nova Star.
“O carboidrato, quer queira ou não, é o mais essencial da nossa dieta. Se faz uma restrição, você privilegia outros nutrientes”, Álvares, do Sabará. “O consumo excessivo de proteína pode ter repercussão renal nesse paciente, o que é bem perigoso, especialmente numa pessoa que diz não ter nenhuma doença, mas não faz coleta de sangue há anos”, alerta.
O especialista em endocrinologia do Sabará ainda chama atenção para o fato de que dieta com menos carboidrato costuma privilegiar uma alimentação mais rica em gordura, o que pode alterar o perfil de colesterol. Isso por sua vez, é um fator para desencadear doenças cardiovasculares.
Dieta 3 - Mulher, 50 anos, que não faz atividade física e deseja se alimentar melhor:
- Não detalha medida de porções, nem especifica os tipos e preparo dos alimentos indicados.
- Por não considerar o estado metabólico da pessoa, pode ter característica restritiva aos demais, para impor o déficit energético.
Se o déficit energético for imposto de forma não saudável, pode haver perda de peso, mas que terá mais impactos negativos do que positivos ao corpo, explica Girarde. “O organismo precisa ter uma fonte de energia. Se não for externa, vai entrar nessa ação de quebra da massa muscular, que é um prejuízo”. Segundo o nutrólogo, a massa muscular é uma “reserva” para um envelhecimento saudável, especialmente após os 40 ou 50 anos.
Ele ainda relembra que uma dieta restritiva requer suplementação de micronutrientes. Em dietas de baixo teor calórico, há o risco de não suprir as necessidades mínimas diárias de minerais e vitaminas. Nesses casos, a depender do nutriente, as consequências podem ser diversas, desde o enfraquecimento de unhas e cabelos a impactos neurológicos, como perda de memória.
Dieta 4 - Adolescente de 15 anos sedentária que deseja emagrecer:
- Não leva totalmente em conta o fato de que a adolescente está em fase de crescimento.
- Alguns dos pratos indicados no cardápio, como homus e guacamole, podem não ser de fácil preparo ou acesso para um adolescente.
Segundo Álvares, que trabalha com endocrinologia pediátrica, em crianças e adolescentes a demanda de nutrientes é ainda mais importante devido ao fato de ainda estarem em desenvolvimento. A falta de alimentação adequada nesta fase pode fazer com que deficiências nutricionais ocorram, diz o médico, e ter efeitos negativos no crescimento.
Dieta 5 - Idoso, 60 anos, que é hipertenso e faz atividades leves regularmente:
- Por ser direcionada a um paciente hipertenso, o cardápio foca totalmente em uma dieta com pouco sal. Mas deixa de lado outros elementos que afetam a regulação da pressão arterial.
Segundo Girarde, há um entendimento pela ciência de que a inflamação é um pano de fundo para quadros doenças autoimunes, cânceres, hipertensão. Dessa forma, para controlar a doença, uma dieta anti-inflamatória pode ser um caminho benéfico. Um plano alimentar com esse objetivo se caracteriza pela priorização de alimentos in natura, semelhante à dieta mediterrânea. “Será que só restringir o sal é suficiente? Uma dieta anti-inflamatória talvez consiga ajudar a reduzir o uso medicamento”, diz.
E isso não vale só para hipertensos. “Um paciente com síndrome do intestino irritável, por exemplo, tem restrições específicas que, se não forem respeitadas, causam ativação ou descompensação da doença.”
Nesse sentido, outro risco de uma dieta elaborada pela inteligência artificial é a interação medicamentosa. Muitos pacientes que fazem uso contínuo de um remédio talvez não saibam que a alimentação pode interferir no efeito do tratamento, explica Álvares. “É sabido que alguns tipos de alimentos podem interferir na absorção de alguns medicamentos”, diz ele, que salienta que o consumo a longo prazo de alimentos que interfiram na ação dos remédios pode ter efeitos clínicos.
“Um diabético que faz uso de insulina, se vai para uma estratégia de jejum intermitente ou de low carb, às vezes precisa de um ajuste, seja das horas de jejum ou de calorias mínimas ingeridas, para não ter uma complicação, como a hipoglicemia”, afirma Girarde. Quadro alérgicos são outros pontos de risco.
IA não substitui profissional, mas pode ajudar
A recomendação de buscar ajuda com um especialista em vez da inteligência artificial é endossada pelo próprio ChatGTP. Em quatro das cinco respostas dadas, a ferramenta diz que “um nutricionista pode ajudar a personalizar a dieta de acordo com as necessidades individuais e objetivos específicos.”
Para os especialistas, a ajuda da inteligência artificial pode ser acionada em um segundo momento, com na elaboração de pratos a partir dos alimentos indicados pelo profissional. É o uso feito por Felipe Oliveira, de 33 anos, que trabalha com tecnologia e decidiu usar o ChatGPT para testar a criatividade da IA em montar opções de alimentos proteicos sem origem animal.
Ele, que é vegetariano e já tem acompanhamento de nutricionista, inicialmente buscou a ferramenta por curiosidade, para comparar o resultado com o plano indicado pela profissional. Após o teste, começou a refinar pesquisas no intuito do ChatGPT sugerir mais variedades para a dieta que segue. O chat, diz ele, indicou alimentos como seitan e quinoa, de acordo com a dieta feita pela profissional.
“No meu caso, eu já sabia meu gasto calórico a partir de um exame. Sem isso, não conseguiria saber o quanto de caloria preciso em um dia. Previamente, fiz check-up, para entender se tenho alguma deficiência de vitamina. Não foi algo aleatório para emagrecer, foi baseado no que faço com acompanhamento profissional”, diz o product designer.
Pesquisa testa IA na formulação de cardápios
A aplicação da IA na formulação de cardápios é tema de pesquisa de Kristy, que trabalha na produção de uma ferramenta para planejamento de cardápio personalizado como sistemas de apoio à decisão do profissional.
A partir do agrupamento de dados, como valor nutricional dos alimentos, preferências do paciente, sazonalidade dos alimentos, composição, valores, macronutrientes, formas de preparo, a ferramenta é capaz de elaborar cardápios individuais e adequados para cada um, considerando todas as variáveis que um nutricionista usa na produção de um cardápio.
“É um sistema de apoio à decisão, que usa uma técnica de IA para converter o que o profissional pensa em uma ferramenta plausível. Mas em momento nenhum essas ferramentas tiram o poder de decisão do profissional, porque cabe a ele bater o martelo se vai usar aquela informação”, explica. “Na área de saúde, tem muitas variáveis, e não necessariamente conseguimos cruzar todas elas.”, destaca.
O software foi avaliado por um grupo de nutricionistas, e os resultados foram que, em 90% dos casos, a formulação de cardápios da máquina coincidiu com a que teria sido dada por um nutricionista. A ferramenta será avaliada no ensaio clínico, considerando o uso na prática, e a expectativa é que possa ser comercializada a profissionais no 2ª semestre. “A tecnologia ajuda bastante. Só temos de tomar cuidado com a fonte de onde vem essa informação.”
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