Desde o início deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) compartilhava com a população sobre suas dores na cabeça do fêmur (o osso da coxa), problema com o qual convivia há anos. O incômodo constante levou a uma decisão: passar por uma cirurgia na qual a articulação machucada do quadril é substituída por uma prótese. Em setembro, ele realizou o procedimento.
Em um primeiro momento, a artroplastia total de quadril pode assustar. Porém, com índices altos de satisfação e baixa taxa de complicações, a cirurgia já foi considerada o “procedimento do século XX”. Segundo relatos de médicos ouvidos pelo Estadão, após a operação, muitos pacientes até se questionam por que não fizeram a cirurgia antes. Para ter ideia, só no Sistema Único de Saúde são realizadas, em média, 20 mil cirurgias do tipo por ano.
Como o procedimento é complexo, existem riscos, porém, a taxa de mortalidade é baixa. Para evitar efeitos adversos após a operação, o paciente precisa seguir uma série de cuidados.
Entendendo o quadril
Para os médicos, o quadril é uma articulação, isto é, um local de união de dois ossos. O “encontro” em questão é entre a cabeça do fêmur – o osso mais longo do corpo, que está na coxa – e a bacia, em uma área chamada acetábulo. Ela é responsável por conectar a coluna vertebral com os membros inferiores.
O quadril é fundamental para nossas funções biomecânicas, ou seja, é difícil fazer qualquer movimento sem a ajuda dele. Andar, sentar, pegar o pé para cortar a unha, subir e descer escadas: todas essas atividades demandam trabalho dessa articulação.
Quem não tem dor provavelmente nem percebe quão ativo é o quadril. Agora, para quem apresenta qualquer disfunção na articulação, a história é outra. Geralmente, o incômodo tem a ver com a cartilagem, um tecido que reveste essa articulação e funciona como uma almofada para os impactos de nossas atividades diárias. Sem inervação, lisa e rica em água, ela absorve os “trancos” sem mandar uma mensagem de dor ao cérebro.
Doenças do quadril
Segundo Leandro Ejnisman, ortopedista especializado em quadril do Hospital Israelita Albert Einstein (SP), as doenças do quadril podem ser divididas em dois grandes grupos: disfunções que estão relacionadas à articulação em si e aquelas chamadas de extra-articulares, ou seja, que ocorrem fora da articulação. No caso dessas últimas, as mais comuns são as tendinites (inflamação dos tendões, responsáveis pela ligação do músculo aos ossos) e as bursites (inflamação das bursas, bolsas cheias de líquido que protegem as articulações).
No primeiro grupo estão vários quadros, como lesão labral (que afetou, por exemplo, a cantora Lady Gaga), displasias e a osteonecrose. Mas, entre as situações mais frequentes, estão as chamadas artroses – que, cientificamente, são denominadas osteoartrites. “Algumas pesquisas chegam a falar que 5% da população mundial convive com algum grau de artrose em alguma articulação”, conta Ejnisman. O presidente Lula faz parte dessas estatísticas.
As artroses têm relação com o desgaste da cartilagem responsável por absorver o impacto da articulação. “O paciente geralmente tem de 3 a 4 milímetros de cartilagem, e isso vai afilando, passando para 2, depois 1 milímetro, até um ponto mais avançado, em que alguns pacientes relatam que está ‘pegando osso com osso’”, descreve Ejnisman.
Qual o problema disso? Ao contrário da cartilagem, o osso é enervado – inclusive, ele sangra. Então, é como se a cada passo o osso enviasse uma mensagem de dor para o cérebro. “Dispara também um processo inflamatório, que incha a articulação e faz o pH ficar mais ácido lá dentro. Perde-se a qualidade do líquido sinovial, que lubrifica a articulação. Ele fica mais ralo e menos espesso, e funciona de forma menos eficiente. É uma cascata de eventos”, explica Lourenço Peixoto, chefe do Centro de Cirurgia de Quadril do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), do Ministério da Saúde.
As artroses podem ser dividas em primárias, quando a causa é desconhecida – muito provavelmente ligada ao processo de envelhecimento natural da cartilagem –, ou secundárias, quando a causa é conhecida e está ligada a alguma outra complicação, como algumas citadas anteriormente, entre elas uma má formação da articulação.
De acordo com o reumatologista Marco Antônio Araújo da Rocha Loures, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), o fator “mais preponderante” para você ter uma articulação saudável ou não é a genética. No entanto, destaca, a prevenção é possível. “A genética determina tudo, mas ela vai ser mais ou menos impactante conforme a sua rotina.” Os médicos ouvidas pela reportagem listam como comportamentos preventivos: fortalecimento muscular, alimentação saudável e manutenção de um peso adequado.
No entanto, isso não é garantia de que a artrose será evitada. O quadro, em geral, começa com um desconforto, que pode escalar a um ponto em que o paciente relata acordar à noite com as dores e tem até restrição de mobilidade. “A dor me deixa de mau humor”, já relatou o presidente Lula no Twitter.
Tratamento inicial não envolve cirurgia
Dificilmente a primeira orientação de um médico será substituir a articulação por uma prótese. A primeira tentativa sempre será na direção de um tratamento considerado conservador, com medicamentos analgésicos e/ou anti-inflamatórios, além de fisioterapia, com métodos de analgesia (controle da dor), e fortalecimento muscular.
“Quando eu falo para o paciente fazer fisioterapia, ele responde ‘puxa, mas a fisioterapia não vai recuperar minha cartilagem, que está gasta’. E não vai mesmo, mas, muitas vezes, se conseguir ganhar um pouquinho de força, ele é capaz de equilibrar um pouco melhor a musculatura, e a dor pode ser amenizada”, fala Lourenço Peixoto.
No meio do caminho, o profissional pode indicar uma infiltração, que, segundo Ejnisman, é uma “injeção na articulação”, composta por corticoides e/ou ácido hialurônico (que compõe o líquido sinovial, responsável por lubrificar a articulação). Lula relatou já ter feito mais de uma. “Não é uma solução definitiva. Os pacientes vão melhorar normalmente depois de seis meses a um ano. Alguns pacientes têm uma resposta muito boa, ficam praticamente assintomáticos, e outros têm uma resposta muito pobre”, relata o médico do Einstein.
Indicação cirúrgica
Por fim, se nenhuma das alternativas anteriores funcionar, será sugerida a artroplastia de quadril, ou seja, a cirurgia que vai substituir a articulação por uma prótese. Conforme os médicos ouvidos pela reportagem, a indicação cirúrgica é clínica. Isso significa que tem mais relação com as dores e repercussões relatadas pelo paciente do que com o que mostram os exames de imagem.
Embora não haja contraindicação absoluta, o paciente passa por exames clínicos para aferir o estado de saúde antes da operação. Os médicos podem indicar perda de peso e fortalecimento muscular antes do procedimento, mas nem sempre isso será possível, considerando a dor e as limitações do quadro.
Como é feita a cirurgia de quadril?
O médico pode optar por anestesia geral ou pela raquianestesia (que é feita na região das costas). Muitos recorrem também a bloqueios periféricos, que são anestesias complementares, capazes de aliviar as dores no pós-operatório.
Para acessar o quadril, é feita uma incisão na perna de 10 a 15 centímetros, que pode ser na região anterior (pela frente), lateral ou posterior (na parte de trás). A posterior é a abordagem mais usada no Brasil, mas a decisão tem mais a ver com a preferência do cirurgião.
Com o quadril exposto, a equipe usará uma serra oscilatória elétrica para cortar a cabeça do fêmur machucada. Com a ajuda de uma escova para raspas acetabulares, que parece um ralador de queijo, eles vão raspar a cartilagem restante no acetábulo (na bacia) e deixar o osso exposto.
Depois dessa “limpeza”, é hora de colocar as peças protéticas, que podem ser de metal (aço fundido ou titânio) ou cerâmica, e vão substituir o que foi removido. São duas próteses: uma é redonda, para cabeça do fêmur e, a outra, tem formato de taça, para o acetábulo. Em um procedimento um pouco menos demandado, chamado de artroplastia parcial de quadril, só a cabeça do fêmur será substituída.
Na artroplastia total, o cirurgião encaixa a haste femoral no osso, que é oco como um cano, e uma bola que fará a função da cabeça do osso. Encaixa-se então, o complemento acetabular junto a um forro de polietileno ou de cerâmica.
O médico vai fixar essas duas partes e testar o movimento da perna. Embora haja um planejamento prévio, só é possível ter certeza do tamanho da prótese durante a operação. Por isso, no dia do procedimento, há mais de uma opção de tamanho de prótese à disposição do cirurgião. Em geral, o componente acetabular tem cerca de 46 até 58 milímetros de diâmetro, já a cabeça femoral, de 42 a 54 milímetros de diâmetro. Esse teste ajuda a diminuir a discrepância de tamanho entre os membros inferiores (a perna com prótese fica levemente maior, mas, depois de um tempo, o operado nem percebe).
Para fixação, o cirurgião pode optar por usar cimento cirúrgico, composto de metil-metacrilato, que é um polímero que seca rapidamente – algo semelhante ao cimento que os dentistas usam para “prender” uma obturação. Essa escolha depende da preferência do médico e também da necessidade do paciente. Idosos com osteoporose (doença que enfraquece os ossos) costumam receber a prótese cimentada. “Quando você não usa cimento, o próprio tecido engloba o material sintético. Quando você não tem muita massa óssea ali, coloca essa massa acrílica para fixar melhor”, descreve Marco Antônio Araújo da Rocha Loures.
Após o procedimento, quando é possível voltar a andar?
Há casos em que a alta ocorre já no dia seguinte e situações que fazem a internação se estender por uma semana. Em média, o paciente fica três dias internado após a cirurgia.
Para evitar complicações, o ideal é que o paciente volte logo a caminhar. Alguns já começam a fisioterapia no mesmo dia da operação, mas é mais frequente que os primeiros passos, com suporte de muleta ou andador, aconteçam no dia seguinte.
A cirurgia no quadril é segura? Quais as possíveis complicações?
Apesar de ser um procedimento complexo e invasivo, a artroplastia total de quadril chegou a ser considerada o “procedimento do século XX” em um artigo publicado na conceituada revista científica The Lancet, em 2007. Isso se deve, conforme os médicos ouvidos pela reportagem, aos altos níveis de satisfação e baixa incidência de complicações.
“Ela tira o paciente de uma situação muito difícil e debilitada para uma condição de quase normalidade”, fala Lourenço Peixoto. “Grande parcela desses indivíduos se sente apto a fazer qualquer coisa, e leva uma vida 100% normal no pós-operatório.” Alguns chegam a ter o que é chamado de quadril esquecido. “Comentam que, no dia a dia, nem lembram de ter prótese”, fala Ejnisman.
Isso não significa que não existam riscos. Em seu mestrado no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), a cardiologista Andréa Moreira Candido se dedica a estudá-los e entender quais as condições prévias são sinal de alerta. Dentro da pesquisa, que também analisa quem passou pela substituição da articulação de joelho, ela observou 122 pacientes que realizaram a artroplastia total de quadril no Sistema único de Saúde, entre 16 de novembro de 2021 e 16 de abril de 2022. O estudo ainda não foi publicado.
“Inicialmente, quando pensamos em uma cirurgia de grande porte, assusta. Será que alguém pode morrer em uma cirurgia de quadril? Os dados mundiais mostram menos de 0,5% de mortalidade. No trabalho no Into, não tivemos nenhuma morte”, adianta.
“As complicações graves que podem levar à morte, que são infarto agudo do miocárdio, embolia pulmonar e acidente vascular encefálico, felizmente têm incidência muito baixa. No meu estudo no Into, só vimos um caso de embolia pulmonar, que não levou à morte”. Segunda ela, esses problemas têm pico de ocorrência entre o primeiro e o segundo dia de pós-operatório, período em que o paciente ainda está hospitalizado – o que pode explicar a baixa mortalidade –, embora possam ocorrer até o trigésimo dia.
“As complicações mais frequentes que vi foram anemia e infecções, que podem variar desde um quadro mais superficial até mais profundo”, diz Andrea. Muitas vezes, esses últimos são confundidos com a rejeição em um transplante, na qual o sistema imune ataca a nova estrutura. No entanto, como a prótese é de um material sintético biocompatível, não há possibilidade dessa resposta imune ocorrer.
Mas as infecções podem ser bastante complicadas de resolver. É por isso que a equipe cirúrgica faz um trabalho cuidadoso de higiene (assepsia) e o paciente é submetido a um tratamento de prevenção (profilático) com antibióticos. Segundo Ejnisman, esse inconveniente acontece em menos de 1% dos casos.
Outra preocupação dos médicos é com a trombose (formação de coágulo que bloqueia o fluxo de sangue e causa inchaço e dor). Para evitá-la, a equipe médica coloca logo o paciente para caminhar, além de oferecer medicamentos anticoagulantes e orientá-lo a usar uma meia elástica compressiva.
Um cuidado que se estende por mais tempo – talvez para a vida toda – é o de evitar a luxação da prótese (o deslocamento das peças). O paciente, então, passa por um trabalho de fisioterapia para adaptação. Ele também pode andar, enquanto achar necessário, com ajuda de andador, muletas ou bengala. Nos primeiros três meses, é preciso evitar certos movimentos, como ficar de cócoras, sentar em bancos baixos, fazer movimentos de rotação e permanecer em posições de muita flexão de quadril (acima de 90°).
Alguns pacientes serão aconselhados a evitar atividades de impacto, como corrida e alguns esportes – às vezes, de forma permanente. Segundo Lourenço Peixoto, não há consenso sobre a prática esportiva após a cirurgia do quadril. Vai de caso a caso. “Tenho pacientes surfistas e lutadores profissionais de jiu-jítsu e MMA que têm prótese do quadril e se sentem aptos a seguir no esporte”. De qualquer forma, é necessário realizar consultas periódicas para avaliar o estado das próteses.
No estudo de Andrea, ela identificou alguns sinais de alerta principais para complicações na fase pós-cirurgia: ter outra doença não relacionada ao quadril em estágio descompensado; sedentarismo; baixa capacidade funcional (de fazer movimentos cotidianos) e colesterol elevado. Em média, os pacientes analisados tinham 56 anos, o que não permitiu fazer inferências sobre o risco de problemas com o avançar da idade.
Quem tem os melhores resultados com a cirurgia de quadril?
Se em 1960, quando o procedimento começou a ser realizado, a cirurgia estava praticamente restrita a pacientes mais velhos, hoje em dia cada vez mais jovens passam por ela. Na avaliação dos médicos ouvidos pela reportagem, isso tem a ver, entre outras coisas, com o reconhecimento do sucesso da artroplastia do quadril e com o fato de termos uma população jovem mais ativa fisicamente, que pode estar demandando mais da articulação. Abaixo dos 80 anos, os resultados da cirurgia tendem a ser melhores, de acordo com Lourenço Peixoto.
O tempo de espera também pode ser determinante em termos de benefícios ligados ao procedimento, segundo Peixoto. O período entre a indicação cirúrgica e a colocação da prótese pode significar perda do tônus muscular e mais rigidez articular, situações que têm o potencial de prejudicar o pós-operatório.
Conforme o Ministério da Saúde, o gerenciamento de filas de cirurgias no SUS é de responsabilidade dos Estados. Uma solução para consolidar uma fila nacional está em desenvolvimento. A pasta reconheceu que “o problema das filas para cirurgias eletivas no acesso à rede pública de saúde foi agravado e potencializado nos últimos anos, em decorrência do represamento causado pela pandemia e do desmonte da gestão de saúde no governo anterior.”
Por isso, foi lançado o Programa Nacional de Redução das Filas, com previsão de repasses de R$ 600 milhões para o ano de 2023. Já foram liberados R$200 milhões até agora, segundo a pasta informou ao Estadão. Dentro do programa, os Estados definiram quais as filas prioritárias para sanar. Nove Estados e o Distrito Federal não elencaram nenhuma das artroplasias de quadril.
Entre os que declararam, o Estadão somou 8.346 procedimentos em espera, que representavam cerca de 1,05% de todas as cirurgias eletivas definidas como prioridade pelas unidades federativas. Segundo a Saúde, só nos primeiros cinco meses do ano (janeiro a maio), 11.963 próteses de quadril foram feitas pelo SUS. Ao todo, em 2022, foram 28.831 e, em 2021, 20.748. Em 2020, o número ficou abaixo dos 20 mil, com 19.783 cirurgias realizadas.
Prótese no quadril tem prazo de validade?
A prótese não tem um prazo de validade definido, mas também não dura para sempre. Em média, os médicos ouvidos pela reportagem apontam uma durabilidade de 20 anos.
Esse tempo pode ser maior, conforme estudo publicado em 2019 no The Lancet, que analisou registros nacionais de substituição articular com mais de 15 anos de seis países (Austrália, Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia, Noruega e Suécia). Esses dados eram tanto de hospitais privados quanto de públicos. “Assumindo que as estimativas dos registros nacionais são menos prováveis de serem tendenciosas, pacientes e cirurgiões podem esperar que uma substituição do quadril seja necessária depois de 25 anos em cerca de 58% dos casos”, concluiu.
Perspectiva de avanços
Apesar de o procedimento ser considerado “vitorioso” devido às altas taxas de satisfação e baixos índices de complicação, avanços na prática são almejados. Os especialistas ouvidos pelo Estadão afirmaram que há uma busca constante por materiais mais duráveis e por métodos de aprimorar a recuperação após a cirurgia, que já é bastante rápida. O uso de robôs para o planejamento da cirurgia (com avaliação mais precisa do tamanho da prótese) já realidade e está em aprimoramento.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.