Como a covid longa está acelerando uma revolução na pesquisa médica

Pacientes, que normalmente eram apenas objetos do processo de pesquisa, agora estão se tornando parceiros

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Por Frances Stead Sellers
Atualização:

Quando o corpo de Liza Fisher foi atormentado por tremores logo após ela ser hospitalizada com covid-19, em 2020, ela começou uma odisseia médica de 18 meses de consultas com imunologistas, cardiologistas, neurologistas e inúmeros outros -gistas na esperança de saber como tratar suas convulsões debilitantes.

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“Eles não tinham experiência”, disse Fisher, 38 anos, ex-comissária de bordo e instrutora de ioga que agora usa cadeira de rodas. Então Fisher procurou on-line outros acometidos pela doença, juntando-se a um grupo cada vez mais ativo de cientistas cidadãos em sua tentativa de pesquisar tratamentos para a covid longa.

A experiência de Fisher – e de seus colegas – está promovendo uma revolução na pesquisa não apenas para a covid, mas também para muitas outras condições, dizem os especialistas. Os pacientes, que normalmente eram apenas objetos do processo de pesquisa, agora estão se tornando parceiros.

Profissionais de saúde transferem paciente para hospital em Hong Kong em 2 de março de 2022, durante a quinta onda do coronavírus Foto: Billy H.C. Kwok / The New York Times

Eles vêm documentando seus sintomas on-line em tempo real e ajudando a criar perguntas e estratégias e até a divulgar resultados.

É como se as cobaias estivessem trabalhando junto com os cientistas.

“Trazemos o conhecimento da experiência e temos uma perspectiva distanciada o suficiente para ver ineficiências que as pessoas de dentro do sistema não conseguem enxergar”, disse Diana Zicklin Berrent, fundadora do Survivor Corps, um grupo de defesa de pacientes que vem colaborando com pesquisadores de Yale e outros centros médicos.

É o passo mais recente no crescente entendimento de que a parceria com os pacientes não é apenas a coisa mais justa e equitativa a se fazer, mas também pode melhorar a pesquisa. No final da década de 1980, enquanto a epidemia de HIV/AIDS ganhava força, o ACT UP e outros grupos pressionaram, com sucesso, para acelerar o desenvolvimento de medicamentos. Em 2010, o Affordable Care Act injetou financiamento em pesquisas centradas nos pacientes.

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Durante todo o processo, avanços na tecnologia mobilizaram os pacientes para compartilhar apoio emocional, bem como dados em tempo real sobre seus sintomas. Essas forças se uniram em torno da covid longa, promovendo estudos em grandes centros médicos, como a Universidade da Carolina do Sul e a Universidade de Yale, que envolvem os pacientes em todas as etapas da pesquisa.

Em muitos casos, dizem os especialistas, os objetivos científicos dos pesquisadores diferem das metas dos pacientes, sobretudo durante uma pandemia em que um grande número de pacientes prioriza a descoberta de tratamentos imediatos.

“O que é relevante para os médicos e formuladores de políticas nem sempre é o mais importante para os pacientes”, disse Nabil Natafgi, professor assistente do departamento de políticas de serviços de saúde da Arnold School of Public Health da Universidade da Carolina do Sul. Natafgi disse que a pandemia forçou os pesquisadores a repensar a melhor forma de envolver os pacientes na pesquisa e torná-la mais relevante para eles.

Os colegas de Natafgi recentemente inscreveram 15 especialistas em pacientes como parte de um “estúdio de engajamento de pacientes” virtual que incluirá as experiências dos pacientes em todas as etapas da pesquisa. Um deles é Martha Griffin, coordenadora de escola em Austin que se aposentou em 2020 após desenvolver covid longa. Ela estava frustrada com pesquisas recentes que se concentravam no próprio vírus e não levavam em conta o custo de vida humano com a fadiga e a névoa cerebral, as quais tornam até mesmo pequenas tarefas, como preencher pesquisas de pesquisadores, assustadoras.

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“Gostaria que os pesquisadores entendessem: quais são as pistas que poderiam melhorar nossa qualidade de vida?”, disse Griffin, 62 anos. “E não em cinco anos. Precisamos de alguma resposta agora”.

A necessidade de encontrar tratamentos para a covid longa se faz cada vez mais urgente à medida que o país passa a aceitar o coronavírus como uma ameaça constante de nível inferior. O governo estima que entre 7,7 milhões e 23 milhões de pessoas já podem ter covid longa. No mês passado, o senador Tim Kaine, democrata da Virgínia, que ainda sente formigamentos após sofrer com a covid em 2020, apresentou um projeto de lei com o apoio de grupos de defesa de pacientes para expandir os recursos de tratamento para pessoas com efeitos de longo prazo.

A iniciativa, dizem os especialistas, depende do envolvimento desde as primeiras fases de pessoas que têm conhecimento íntimo do que é viver com covid longa. A abordagem derruba o tradicional processo de cima para baixo, no qual os ensaios clínicos são projetados por pesquisadores em grandes centros médicos acadêmicos e exigem que os pacientes sigam suas regras: em geral, os voluntários aparecem pessoalmente nos laboratórios para colher amostras ou para outros tipos de exames. Os resultados muitas vezes são publicados em revistas acadêmicas, destinadas principalmente a responder a perguntas científicas – e não às preocupações imediatas dos pacientes.

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Foi apenas gradualmente que pesquisadores e reguladores passaram a reconhecer a importância da contribuição dos pacientes, de acordo com Mark Wolff, estrategista-chefe de análise de saúde da SAS, uma empresa global de análise de dados. Além de avaliar a segurança e a eficácia de um novo medicamento ou tratamento, nos últimos anos os reguladores começaram a incluir avaliações dos pacientes sobre o nível de risco que eles estariam dispostos a aceitar.

Katherine R. Tuttle, nefrologista da Universidade de Washington, viu como as perspectivas dos pacientes podem alterar a maneira como os pesquisadores realizam seu trabalho. Ela se lembrou de um cientista de laboratório que ficou tão emocionado ao falar com os pacientes que jurou nunca mais jogar fora um tecido não utilizado. Só mais tarde ele descobriu que as amostras congeladas seriam fundamentais para os avanços em seu trabalho.

Tuttle, estagiária em Chicago na década de 1980, e outros pesquisadores veem a epidemia de HIV/AIDS como um momento crucial para a defesa do paciente. Steven Epstein, autor de Impure Science: AIDS, Activism, and the Politics of Knowledge, lembra como grupos como o ACT UP começaram a usar suas experiências compartilhadas para avançar no desenvolvimento de medicamentos. Eles desafiaram os pesquisadores que queriam excluir os participantes que já tomavam outros medicamentos, forçando os cientistas a trabalhar com populações que se pareciam mais com o mundo real, mesmo que os dados de tal estudo pudessem resultar menos claros.

Os ativistas “aprenderam aspectos do conhecimento especializado para que as pessoas os levassem a sério”, disse Epstein, prenunciando a defesa online que se criou em torno da covid longa. “Eles tinham esse outro tipo de conhecimento pela experiência e, assim, conseguiram ganhar aliados entre grupos de especialistas”.

Em 2012, o governo estava no jogo, estabelecendo o PCORI, ou o Patient-Centered Outcomes Research Institute [Instituto de Pesquisa de Resultados Centrados no Paciente], uma organização independente sem fins lucrativos que exige que todas as partes interessadas, incluindo pacientes, estejam envolvidas em todo o processo de pesquisa.

Aí veio a covid – e a covid longa.

As restrições pandêmicas precipitaram uma nova “abordagem prática” para a pesquisa, lembrou Tuttle, com cientistas recorrendo aos correios para entregar os medicamentos do estudo e pacientes coletando amostras e monitorando seus sintomas em casa.

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Ao mesmo tempo, o vírus trouxe surpresas, desde a amplitude dos sintomas que produzia até a crescente conscientização de que alguns pacientes não se recuperavam totalmente ou desenvolviam novos sintomas – como Fisher.

Sem cartilha médica para a covid longa, Cindy Ivanhoe, especialista em reabilitação neurológica do UTHealth Houston/TIRR Memorial Hermann que supervisiona o tratamento de Fisher, disse que teve de aproveitar sua experiência com uma condição com a qual já estava familiarizada: disautonomia, ou disfunção dos nervos que regulam funções involuntárias, como frequência cardíaca, pressão arterial e sudorese.

Do ponto de vista do pesquisador, essa falta de ciência médica acumulada criou novas possibilidades.

“Não havia especialistas”, disse Harlan Krumholz, cardiologista de Yale que há muito acredita na ideia de capacitar os pacientes no processo de pesquisa. “As pessoas que tinham maior sabedoria [sobre a covid longa] eram as pessoas que a vivenciavam”. E isso, disse Krumholz, “abriu os olhos de muita gente para uma forma diferente de fazer pesquisa”.

A pesquisa muitas vezes é prejudicada por pacientes que abandonam os estudos ou não seguem os protocolos dos cientistas com rigor, disse Krumholz. E quem melhor para apresentar questões de pesquisa do que as pessoas que têm interesse em encontrar uma cura? Quem entende melhor os desafios de aparecer para colher as amostras? E quem está mais bem preparado para divulgar os resultados de um estudo do que um grupo de companheiros de sofrimento?

Krumholz e sua esposa, Leslie, estão usando a plataforma com fins lucrativos que desenvolveram para testar a filosofia do paciente em primeiro lugar, usando tecnologia para coletar os dados de pacientes.

A Hugo Health permite que os pacientes preencham dados de saúde colhidos de registros eletrônicos, da farmácia e do smartwatch, prometendo não compartilhar os dados, a menos que os pacientes deem permissão. O primeiro estudo da Hugo em 2016 examinou a readmissão e o uso do departamento de emergência depois que determinado paciente recebia alta do hospital.

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A plataforma hospeda uma comunidade específica de covid, a Kindred, onde os pacientes podem obter suporte de colegas e informações de especialistas, além de responder a pesquisas e enquetes, fechando a lacuna entre a experiência do paciente em tempo real e a pesquisa acadêmica. Harlan Krumholz e sua colega imunologista de Yale, Akiko Iwasaki, planejam lançar um estudo usando dados da comunidade para identificar pessoas com padrões de sintomas semelhantes a possíveis mecanismos biológicos, como evidências de vírus persistentes no corpo ou alterações no funcionamento do sistema imunológico.

Iwasaki colaborou com o Survivor Corps em um estudo anterior, aproveitando a participação do grupo para ajudar na elaboração de um estudo que investiga como as vacinas podem melhorar os sintomas da covid longa.

A abordagem contrasta com o trabalho dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), que há mais de um ano receberam US$ 1,15 bilhão do Congresso para lançar uma iniciativa de quatro anos para identificar suas causas.

A iniciativa RECOVER é composta em grande parte por ensaios epidemiológicos e observacionais envolvendo dezenas de milhares de pacientes de todos os 50 estados, além de pessoas que não foram infectadas para servir de comparação.

“Quando estiver de pé, será um tesouro nacional”, disse Bruce Levy, pesquisador-chefe de uma parte da iniciativa, o Grupo de Recuperação da Covid da Grande Boston. “Mas de fato não foi estruturado para dar respostas rápidas, com certeza”.

O projeto adota uma abordagem centrada no paciente, disse Levy, enfatizando a inclusão de diversos grupos de pacientes. Levy, que qualificou o apoio de grupos de defesa de pacientes como “extremamente útil”, disse que suas vozes às vezes podem abafar as pessoas menos versadas nos grupos de apoio online. “As comunidades negras não têm o mesmo nível de defesa”, disse ele.

O escopo da iniciativa dos NIH vai além da covid longa, de acordo com Walter Koroshetz, diretor do Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame dos NIH e copresidente do RECOVER. “É aquele tipo de projeto que se pergunta: ‘como a gente pode chegar à Lua?’”, disse ele, visando também entender as condições pós-virais, como fadiga crônica, que intriga os cientistas há décadas. “Se houver uma resposta rápida e alguém de qualquer país descobrir essa resposta, seria ótimo”, disse ele.

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Mas a ambição arrebatadora dos NIH frustra alguns médicos, bem como grupos de defesa de pacientes: o que era o padrão-ouro para coletar dados sobre, digamos, ataques cardíacos, que passaram por décadas de pesquisa antes que os médicos apresentassem o melhor tratamento, é pouco adequado para uma emergência generalizada, dizem eles.

“No caso das doenças cardíacas, não era como se todo homem de 50 anos tivesse ataques cardíacos”, disse Kavita Patel, médica de cuidados primários e especialista em políticas de saúde. “A diferença desta vez é que nunca tivemos um planeta inteiro sofrendo com tanta morte e devastação”.

Berrent acredita que a covid longa mudará a forma como se faz pesquisa. “Depois de ver a ciência avançando na velocidade da luz, você não volta nunca mais”, disse ela.

Ela e Fisher agora estão listados junto com outros membros do Survivor Corps e pesquisadores de Yale e da Universidade da Pensilvânia como coautores do estudo, que ainda não foi revisado por pares, sobre tremores entre pessoas com covid longa.

Usando informações de aproximadamente 200 mil membros do Survivor Corps, os pesquisadores conseguiram identificar temas comuns nas descrições de seus sintomas, bem como nas respostas de profissionais da saúde.

Fisher nunca pensou que seria coautora de um estudo científico. Mas era difícil prever qualquer coisa que aconteceu nos últimos dois anos.

“Aceitei ser cobaia quando estava no hospital. Parecia piada, mas depois vi que não era piada”, disse Fisher. “Quero passar por tudo isso ajudando os outros”.

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Com isso, ela quer dizer as outras pessoas além da comunidade de covid longa que ganharão com a pesquisa centrada no paciente.

“Não acho que seja só uma tendência. É uma transformação”, disse Fisher. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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