Para Leonardo Riella, professor associado de Medicina e Cirurgia na Harvard Medical School, o avanço na compreensão de como nosso sistema imunológico se autorregula e uma técnica de edição genética, a CRISPR/Cas9 — vencedora do Nobel de Química de 2020 —, revolucionaram a Medicina. “E vão continuar revolucionando”, afirma.
Durante o Summit Saúde e Bem-Estar, promovido pelo Estadão nesta segunda-feira, 14, ele destacou como essa revolução ajudou a alcançar fatos que antes pareciam inimagináveis. Um exemplo é o transplante inédito que ele comandou em março deste ano no Massachusetts General Hospital. Um paciente recebeu um rim de porco geneticamente modificado pela primeira vez na história.
“Depois de alguns minutos da cirurgia, a gente já conseguia observar a produção de urina desse rim. A coleta de urina do primeiro dia foi de mais de três litros. Essas (novas) tecnologias levaram a gente a conseguir fazer um transplante como esse”, contou.
Sistema imune
Para explicar o quanto avançamos nos últimos 20 anos em termos de compreensão do sistema imune, Riella faz uma analogia com mapas. “Antigamente tínhamos mapas 2D, que davam muita pouca informação sobre o que estava ocorrendo. Atualmente, Google e o Waze podem determinar muitas características do que está ocorrendo naquela cidade em termos de tráfego.”
Na imunologia, essa revolução aconteceu também, segundo ele. Se antes pensávamos o sistema imune apenas como duas células principais que se diferenciavam e nos protegiam, hoje sabemos que, para ter um sistema imune eficaz, “existe um sistema de regulação extremamente delicado e sofisticado”.
“As tecnologias hoje permitem entender muito mais do que está ocorrendo no sistema imune.” Isso é importante principalmente para duas coisas, de acordo com ele: prevenção de doenças autoimunes, nas quais o sistema de defesas ataca o próprio corpo, e também na retração da resposta imune após uma infecção. “Ficou bem clara a importância disso na questão da covid-19. As pessoas acabavam morrendo não do vírus, mas da reação exagerada do sistema imune.”
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Por ora, a área que mais se beneficiou da melhor compreensão da imunorregulação foi a oncologia, segundo ele, com os avanços nas imunoterapias, que, de forma simples, são tratamentos que estimulam o sistema de defesa do corpo a combater o que lhe faz mal. “É retirar o freio do sistema imune.”
“É uma forma bem mais inteligente de lidar com o câncer em vez de tentar exterminar todas as células que têm alta proliferação com um efeito colateral muito alto (como faz a quimioterapia)”, completou.
Mas, outra área que também se beneficia desses avanços é a especialidade dele: os transplantes. “Quando você recebe um rim de um indivíduo diferente de você, o seu sistema imune vai tentar reagir e rejeitar esse órgão. A gente usa drogas imunossupressoras para tentar eliminar ou diminuir essa reação o máximo possível.”
A pele é um dos órgãos mais difíceis de ser transplantado, ele destacou. No entanto, esses avanços na compreensão de como o sistema imune se regula ajudaram, por exemplo, a possibilitar o transplante de face.
Xenotransplantes
Nas últimas décadas, especialistas buscam alternativas aos transplantes homólogos (entre humanos), diante do cenário de alta demanda de órgãos e de escassez de oferta. “Nos Estados Unidos, por exemplo, 17 pessoas morrem diariamente por falta de um órgão”, destaca Riella.
É aqui que o conhecimento aprimorado do sistema imune se junta à técnica CRISPR/Cas9 em busca de uma solução. Uma das alternativas para contornar essa escassez são os xenotransplantes. Isso é, transplantes entre espécies diferentes. O que é bastante difícil.
Isso porque, ao simplesmente transplantar o órgão de um porco em um ser humano, por exemplo, precisamos removê-lo logo em seguida, afinal, o nosso sistema imune age contra o “corpo estranho” e gera uma rejeição hiperaguda.
É aqui que entra a CRISPR/Cas, que funciona como uma “tesoura genética”. Ela permite que cientistas façam uma edição genética, com knockouts (bloqueios) e knock-ins (adições) de genes.
O cientista pega células de porcos recém-nascidos, bloqueia os genes responsáveis pela produção dos açúcares que geram a rejeição e insere genes humanos para moderar a resposta imune do paciente.
Nos últimos anos, pesquisadores fizeram os primeiros transplantes de órgãos de porcos geneticamente modificados em seres humanos. Foram os primeiros passos de uma longa jornada, mas que promete revolução.
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