Local de internação dos dependentes químicos após a dispersão da Cracolândia, o Hospital Municipal Bela Vista – Santa Dulce dos Pobres, no centro, mudou algumas áreas internas para receber os novos pacientes. A enfermaria de saúde mental não tem os aparelhos tradicionais que acompanham os sinais vitais dos internos ou que armazenam medicamentos. Tudo foi retirado porque pode ser perigoso quando os pacientes estão agitados. O único contraste com as paredes lisas e brancas são as bandeiras coloridas de papel de seda que atestam a chegada das festas juninas.
Atrás de uma porta sem visor, a área fica isolada do restante do hospital. São dez leitos abertos em abril deste ano e ocupados por pacientes com transtornos causados pelo uso de drogas. Eles se internaram por vontade própria ou involuntariamente, ou seja, com a autorização do familiar e a assinatura do psiquiatra. Nessa modalidade, o paciente pode ser internado contra sua vontade. A medida, permitida pela lei, vem sendo adotada pela Prefeitura na capital, sob questionamento do Ministério Público Estadual.
Desde 27 de abril, 35 pessoas passaram por esses leitos – 23 contra a vontade e 12 voluntariamente. Nesta segunda-feira, 13, seis pacientes estavam internados (dois involuntários e quatro voluntários). “Estamos empenhados em melhorar esses números. Não chegamos a um volume de internações que pudesse resolver o problema de álcool e drogas na cidade de São Paulo. Estamos com várias equipes na rua tentando fazer a primeira internação voluntária das pessoas nas cenas de uso”, afirma o secretário municipal de Saúde, Luiz Carlos Zamarco.
Os médicos do hospital dizem que a internação involuntária é uma decisão técnica. “A involuntariedade é um momento sensível na vida de um paciente com transtorno mental, mas se trata de decisão técnica precisa”, diz o médico Gabriel Furian, coordenador da Enfermaria de Saúde Mental. “A gente indica quando o paciente não tem capacidade crítica sobre sua situação e pode colocar em risco a si mesmo e outras pessoas”, completa. “Nem sempre a internação involuntária pode ser uma condição difícil ou que vai dar mais trabalho”, completa o diretor técnico Emerson Moraes Santos.
A medida divide os especialistas. Na última sexta-feira, 10, nota técnica assinada por nove instituições, entre elas, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, classifica a internação sem consentimento como uma inversão do processo terapêutico, “colocando a internação involuntária como primeira opção a ser utilizada e não a última e excepcional estratégia”.
O psiquiatra Flávio Falcone adota raciocínio semelhante, com base em sua experiência prática. Em dois anos no programa Recomeço, do governo estadual, ele diz ter acompanhado mais de 100 casos de internação de dependentes químicos. Para ele, só um episódio de internação involuntário foi bem-sucedido.
“Era uma senhora que vivia sozinha e tinha problemas de alcoolismo. A filha pediu a internação, mas ia acompanhá-la toda a semana. A retomada do vínculo familiar contribuiu muito com a recuperação”, diz o especialista que atua no programa de atendimento a dependentes químicos da Unifesp.
O secretário rebate e afirma que estão sendo observados também os aspectos clínicos dos pacientes. "Eles podem ter quadros de desnutrição e insuficiência respiratória. Estamos avaliando o agravamento do problema mental, mas também situações clínicas", afirma.
Exames de espirometria (ou teste do sopro), feitos por meio de uma parceria com a empresa Boehringer Ingelheim, mostram que 46% dos dependentes apresentam quadros de Distúrbio Obstrutivo e Restritivo (DPOC) na função pulmonar de risco leve a moderado, apenas um paciente com quadro grave.
Hospital fala em dar atendimento humanizado
O Estadão visitou o Hospital Bela Vista na última sexta-feira. Por questões éticas, os médicos não permitiram a produção de imagens do local; a circulação também foi restrita. A enfermaria possui cinco dormitórios, com dois leitos e banheiro em cada um. Os médicos afirmam que querem criar um espaço mais humanizado para os pacientes. Por isso, há uma sala de convivência com poltronas estofadas pretas, bandeirinhas coloridas no teto, lembrando as festas juninas, e um espaço de leitura marcado com letras coloridas na parede.
Os pacientes não ficam apenas deitados nos leitos, mas podem circular e conversar com outros pacientes. Nesse contexto, a direção afirma que os 580 funcionários estão sendo treinados para atender os dependentes químicos “sem estigmas, preconceitos ou medo”, como afirmam os médicos.
A ocupação do espaço é limitada pelos tratamentos de cada paciente. São protocolos específicos de acordo com a substância que causa a dependência. Os usuários de álcool podem desenvolver a síndrome de abstinência nas primeiras 72 horas. Nesses casos, o protocolo indica diazepam, medicamento para transtornos de ansiedade, além da reposição de vitaminas.
No caso dos usuários de crack, que apresentam crises intensas de abstinência, os médicos usam tranquilizantes e, em alguns casos, antipsicóticos. Os leitos são adaptados para a contenção física quando necessário. “A ideia não é sedar o paciente, mas que a medicação ajude a controlar a fissura, que é muito intensa”, explica Furian.
Especialistas se preocupam com saída pós-internação
A lei federal determina prazo máximo de 90 dias de internação e o familiar pode pedir a interrupção do tratamento a qualquer momento. Especialistas mostram preocupação quanto ao momento da saída dos pacientes. “Ao se desintoxicar, a pessoa precisa de acompanhamento individualizado, além de moradia, trabalho e renda. Se não tiver isso, é como enxugar gelo”, compara Arthur Pinto Filho, promotor de Saúde Pública do Ministério Público de São Paulo.
"A internação promove uma situação de artificialidade em que pessoa não usa drogas porque está fechada e sem acesso. Um dia, ele vai voltar à vida normal. Por isso, as taxas de recaída são de 95% nas internações involuntárias", argumenta o psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Unifesp. "No atendimento ambulatorial, com psicoterapia, medicação e acompanhamento, o paciente vai aprender uma nova forma de vida sem a droga", completa.
Médicos do Hospital Bela Vista afirmam que o paciente só deixa o hospital com a chamada “alta qualificada”, que inclui o parecer de outros membros da equipe multidisciplinar, como assistência social e terapeuta ocupacional. “Questões sociais e de vulnerabilidade podem atrasar a alta médica”, afirma a médica Graziela Ultramari, supervisora da equipe multidisciplinar do hospital.
Segundo Zamarco, nenhum dos 35 pacientes ainda teve alta definitiva. Após o período de desintoxicação no hospital, que pode durar até 90 dias, eles continuam o tratamento nos 97 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) espalhados pela cidade, sendo 32 deles especializados em álcool e outras drogas. Os CAPS, por sua vez, podem encaminhar os pacientes para os Serviços Integrado de Acolhida Terapêutica (Siats) onde podem ficar até um ano.
Em outra unidade, usuário reclama de falta de internação
O andar térreo do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS IV), localizado na Praça Princesa Isabel, se parece com o pronto-socorro de um hospital. Duas salas – uma de urgência e outra de emergência - socorrem casos relacionados ao uso abusivo de drogas, como taquicardia, aumento da elevação da pressão arterial, desidratação e intoxicação. O local também atende feridos após brigas no território.
Dados da Prefeitura de São Paulo indicam que a dispersão dos usuários e traficantes nos últimos meses gerou aumento na busca de tratamento em saúde. Neste CAPS, o número de pessoas atendidas aumentou 34,7% de janeiro para maio. Os atendimentos passaram de 453 para 610 no período. De abril a maio, meses marcados por operações policiais na Praça Princesa Isabel, o aumento foi de 5,2%, de 580 para 610.
Durante a visita do Estadão, na última quinta-feira, W.T.D.S., de 42 anos, afirmou não ter conseguido uma vaga de internação para tratar do consumo abusivo de crack. “É a terceira vez que estou vindo aqui e não consegui. Eles só dão atendimento laboratorial, como dar soro e medir a pressão. Aí, a pessoa volta para a rua, usa drogas novamente e não melhora”, diz o paulista de Fartura (SP) que vive há cinco anos na capital.
Nos andares superiores do CAPS IV, a tensão do atendimento emergencial se dissipa. É um local de atendimento e também acolhimento. Um grande painel colorido à esquerda, na rampa de acessibilidade, no andar térreo. No andar de cima, desenhos feitos pelos próprios dependentes químicos enfeitam uma das paredes. Cheiro de comida. É a lasanha da oficina culinária realizada uma vez por semana como parte das atividades terapêuticas.
O local também faz internações pontuais, de até 15 dias. Dos 20 leitos, 14 estão ocupados – a equipe deixa uma sobra para as emergências. Foi ali que o técnico em Nutrição G.M. encontrou uma saída para o consumo de crack que faz há um ano. Depois de uma briga familiar no mês passado, saiu de casa na zona leste e passou a viver na Cracolândia.
Deixou uma vida estruturada, com emprego formal e vendeu tênis, notebook e roupas para compras droga. Aos 24 anos, ele conta que se sentiu acolhido no centro para tentar retomar a vida como chef de cozinha e diz querer continuar o tratamento. "Eu me senti acolhido com carinho e atenção. Sei que não vai ser fácil, mas quero retomar minha vida".
A dispersão da Cracolândia trouxe vários desafios para as equipes de saúde. Um deles é continuar os tratamentos de quem precisa de remédio morando na rua, cada dia num lugar diferente. Todos os dias, as equipes saem procurando onde estão os usuários, como explica Denise dos Santos, assessora técnica de saúde mental da Supervisão Técnica de Saúde Santa Cecília.
Além da busca, eles têm de vencer o receio dos usuários após as operações policiais. “É uma situação complexa. Quando temos intervenções mais duras, para muitos usuários é difícil diferenciar quem é quem (agentes de saúde e segurança). Mas cada um está fazendo o seu trabalho”, explica Mariane Moyses, assessora técnica de Saúde Mental da Coordenadoria Regional de Saúde Centro. “Por outro lado, a dispersão faz com que os grupos menores facilitem a abordagem de saúde”, completa.
Distante cinco quarteirões dali, o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica Emergencial (Siat Emergencial) da rua Helvétia fica dentro do novo endereço da Cracolândia. Dependentes usam os banheiros químicos e aproveitam quatro torneiras para jogar água no rosto e na cabeça. Alguns se aproximam da tenda em busca de internação.
Um deles é H.R.P, de 39 anos. Ele mostrou uma senha de atendimento com entrada às 7h46 no Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras drogas (Cratod), no Bom Retiro. Depois de cinco horas, ele contou que foi dispensado porque não tinha perfil para internação. Foi pedir ajuda ali. “Já vivi na Cracolândia, mas se eu dormir aí talvez eu não acorde”, diz o dependente que vive no Itaim Paulista, zona leste da cidade.
Com a dispersão da Cracolândia, o apoio aos dependentes químicos ocorre em cada esquina, não só nos endereços fixos. No trajeto entre a rua Helvétia e a Praça Princesa Isabel, o Estadão flagrou uma mulher pedindo ajuda para a Kombi que levava H.R.P.. Agora é J.S., de 57 anos, que pede para ser internada. Chorando, com as mãos prostradas, ela autoriza um retrato. E a Kombi branca acelera pela Alameda Glete.
Secretaria diz que Caps fez quase 3 mil atendimentos
A Secretaria Municipal da Saúde informa que, somente em maio, o Caps AD IV Redenção contabilizou 362 acolhimentos, 2.948 atendimentos individuais, 37 atendimentos em grupos, 830 atenções a situações de crise e 438 atendimentos em leitos de observação disponíveis no serviço. A SMS reforça que os procedimentos médicos mais comuns do CAPS AD IV Redenção são consultas com clínico e médico psiquiatra.
Já o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (Siat) Emergencial, entre os dias 17 e 31 de maio, registrou 4.558 abordagens a pessoas em situação de rua, 857 atendimentos de saúde, 460 aplicações de vacinas e 229 encaminhamentos para especialidades da rede municipal. O equipamento também distribuiu 5.234 águas e 2.545 mantas térmicas.
Sobre o paciente W.T.D.S., a SMS informa que há o registro de duas acolhidas no CAPS AD IV Redenção com foco na internação voluntária, em outubro de 2020 e setembro de 2021. Nas duas ocasiões não houve interesse por parte do munícipe de dar seguimento nos tratamentos. O paciente possui histórico de passagens pontuais para atendimento de urgências, mas que em todas demonstrou dificuldade de aderir às propostas de tratamento após a melhora do quadro.
Na última semana, W.T.D.S. retornou manifestando interesse em ser internado. Após ser novamente ser inserido em leito de observação, precisou ser encaminhado para a UPA Vergueiro em razão de sintomas gripais. Com a alta médica, o munícipe segue em leito no CAPS enquanto é feita a revisão do Projeto Terapêutico Individual (PTS).
A Secretária de Saúde informa que o paciente H.R.P. foi acolhido na última quinta-feira, 9, no Caps AD IV Redenção e atualmente é observado enquanto é revisto o seu Projeto Terapêutico Individual (PTS). A pasta destaca que o paciente já havia passado pelo equipamento em busca de internação voluntária em 2020. Na época, após ficar em leito de observação, foi encaminhado para o Hospital Psiquiátrico Estadual Phelipe Pinel e seguiu acompanhado da equipe do CAPS.
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