Conheça 6 mitos envolvendo a odontologia biológica, especialidade que não existe

Modalidade não é reconhecida pelo Conselho Federal de Odontologia, mas ganhou força nos últimos anos, sobretudo nas redes sociais

PUBLICIDADE

Por Fernanda Bassette
Atualização:

Impulsionada e difundida nas mídias sociais, a chamada “odontologia biológica” tem preocupado os conselhos de classe. A área não é reconhecida pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) – nem como especialidade nem como habilitação – e, mesmo assim, vários dentistas se autointitulam especialistas em “odontologia biológica ou integrativa”, propagando desinformação sobre os cuidados com a saúde bucal.

As postagens envolvem temas conhecidos da população: tratamento de canal, restaurações de amálgama, implantes dentários e até o flúor do creme dental – sempre com críticas ao que é estabelecido como seguro e eficaz há décadas. No lugar, esses profissionais afirmam que buscam avaliar o paciente como um todo, com o objetivo de “minimizar os danos à saúde causados pelos tratamentos convencionais”.

Posts nas redes sociais envolvem temas conhecidos da população, como tratamento de canal e restaurações de amálgama Foto: Friends Stock/Adobe Stock

PUBLICIDADE

“Com o avanço das redes sociais, isso tem se multiplicado de forma assustadora. Essas pessoas têm um poder de convencimento muito grande. Eles são atenciosos, bem articulados, estão sempre bem-vestidos, em consultórios bonitos. Descobriram nisso um nicho para enganar o paciente e ganhar dinheiro. Esse é o perfil do estelionatário. Se o charlatão fosse antipático, ele não teria sucesso”, comenta o cirurgião-dentista Eudes Gondim Junior, doutor em endodontia.

O Brasil possui aproximadamente 423 mil cirurgiões-dentistas registrados no CFO, ativos e habilitados para exercer a profissão. Segundo a entidade, o profissional que divulga essa modalidade de procedimentos ou se anuncia como especialista em áreas não reconhecidas pode responder por infração ética e está sujeito a penalidades previstas no Código de Ética Odontológica.

Publicidade

Tanto o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp) quanto o CFO afirmam que existem processos éticos abertos e investigações em andamento sobre o tema, mas não informam o número de casos em análise devido ao sigilo previsto nas normas de classe.

Veja abaixo os seis principais mitos da “odontologia biológica”.

1 – “É melhor usar implante de zircônia em vez de titânio”

Qual é a desinformação?

A teoria difundida pela “odontologia biológica” defende o uso de implantes de zircônia (material cerâmico) por serem melhores esteticamente e não possuírem metal em sua composição. Alegam que o material cerâmico responde melhor às exigências mecânicas e promove menor adesão bacteriana. Dizem ainda que a zircônia oferece estabilidade química e não sofre corrosão nem conduz eletricidade. A ideia é substituir implantes de titânio pelos de zircônia.

Publicidade

Por que é mito?

De acordo com o cirurgião-dentista Jamil Awad Shibli, professor titular da Universidade Guarulhos (UnG), os implantes cerâmicos foram criados na década de 1970 e, desde então, existem controvérsias sobre suas vantagens em relação aos de titânio.

“Os implantes cerâmicos são biológica e mecanicamente menos eficazes quando comparados aos implantes metálicos. Mecanicamente são menos resistentes que os metálicos e possuem uma taxa de osseointegração igual ou inferior quando comparados às superfícies mais ativas biologicamente”, diz.

Além disso, ressalta o professor, a cerâmica é tão suscetível à colonização bacteriana quanto qualquer outro tipo de material, embora seja mais lisa do que os implantes metálicos.

Publicidade

Com relação ao processo de corrosão, Shibli explica que ele é consequência das infecções bacterianas ao redor dos implantes inseridos na cavidade bucal e que ambos os materiais (cerâmica e titânio) podem ser acometidos pela peri-implantite, doença que pode levar à perda do implante.

“Quanto à possível condução de eletricidade, os implantes, inseridos em tecido ósseo, estão isolados biologicamente do meio oral e, por isso, não servem como condutores elétricos”, afirma.

2 – “Tratamento de canal deixa um dente morto na boca”

Qual é a desinformação?

A “odontologia biológica” afirma que, quando realizamos um tratamento de canal, deixamos um “dente morto” dentro da boca porque é muito difícil eliminar as bactérias presentes na região. Esses microrganismos poderiam liberar toxinas que, uma vez na corrente sanguínea, desencadeariam uma série de problemas de saúde, entre eles doenças autoimunes, cardíacas, renais e condições neurodegenerativas como doença de Parkinson e Alzheimer. A sugestão é não tratar o canal, extrair o dente e colocar um implante de zircônia.

Publicidade

Por que é mito?

Segundo o cirurgião-dentista Celso Caldeira, presidente da Sociedade Brasileira de Endodontia e professor titular da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), o tratamento de canal é eficiente e não causa problemas de saúde.

“Essa talvez seja uma das grandes bobagens, dita sem nenhuma comprovação científica por pessoas que vão sugerir um tratamento mais caro e mutilador. Na verdade, é exatamente o contrário que acontece. Todas as técnicas e protocolos utilizados atualmente para o tratamento são plenamente capazes de promover uma completa desinfecção dos canais dos dentes para deixar o dente funcional e saudável, inclusive curando e salvando esse dente”, diz.

3 – “O amálgama presente nas restaurações funciona como uma antena que atrai ondas eletromagnéticas”

Qual é a desinformação?

Publicidade

A teoria da “odontologia biológica” é que quaisquer restaurações de metal ou implantes de titânio na cavidade oral atuam como pequenas antenas com efeitos transmissor e receptor de sinais eletromagnéticos que podem interferir no nosso sistema nervoso e desencadear doenças.

Por que é mito?

De acordo com o cirurgião-dentista Camilo Anauatte Neto, membro da Câmara Técnica de Dentística do Crosp, essa informação não tem lógica e não existe nenhum trabalho de pesquisa que possa embasá-la.

Ele explica que a decodificação de ondas eletromagnéticas em outros tipos de onda, como uma onda sonora, por exemplo, precisaria de um receptor e não de uma simples quantidade de metal na boca – seja uma restauração, um piercing ou um implante.

Publicidade

“Para que o efeito de ‘antena’ ocorresse, seria preciso ter um fio, um detector e um amplificador eficiente, elementos certamente incompatíveis com a cavidade bucal”, afirma.

Neto frisa que as restaurações de amálgama são seguras e que a afirmação divulgada nas redes não deve ser motivo para sua remoção. “Profissionais que disseminam essa ideia, via de regra, oferecem uma solução alternativa e cara, submetendo pacientes a procedimentos desnecessários.”

4 – “Todas as pessoas precisam substituir as restaurações feitas com amálgama por causa do risco do mercúrio”

Qual é a desinformação?

A “odontologia biológica” defende que todos os pacientes que possuem restaurações antigas feitas com amálgama devem trocá-las por restaurações de resina. A justificativa é que o mercúrio presente no amálgama traria efeitos adversos para a saúde, com risco de intoxicação, e estaria associado a quadros de fadiga, irritabilidade, distúrbios da tireoide, doença de Parkinson, autismo, dislexia, TDAH, doenças autoimunes, dores articulares, enxaqueca e até depressão. Dizem, inclusive, que o processo para troca das restaurações requer ambiente isolado e uso de roupas específicas para evitar contaminação.

Publicidade

Por que é mito?

De acordo com Neto, por cerca de 130 anos o amálgama dental foi o material mais usado para restaurações de dentes comprometidos por cárie. O declínio da sua utilização ocorreu nas últimas décadas por razões estéticas e pela evolução e melhoria da qualidade das resinas – que atualmente são o material mais usado em procedimentos restauradores.

Além disso, explica Neto, houve esforços mundiais para a redução dos níveis de mercúrio em todos os setores, o que também contribuiu para o desuso do amálgama dental como primeira opção restauradora. Segundo o especialista, as restaurações de amálgama ainda são bastante requeridas para pacientes em condições especiais e em áreas de difícil acesso aos protocolos restauradores mais sofisticados, que demandam mais tecnologia.

“Esses rumores sem fundamentação científica, relacionando o amálgama dental a possíveis efeitos deletérios na saúde das pessoas que possuem essas restaurações, preocupam a classe odontológica. Não há necessidade de remoção das restaurações de amálgama, salvo em casos indicativos de falhas. Também não há a necessidade de administração de soro ou de utilização de EPIs da Nasa para a sua remoção. Apenas os cuidados já devidamente estipulados”, frisa.

Publicidade

Adeptos da 'odontologia biológica' costumam oferecer opções mais caras para substituir tratamentos reconhecidos Foto: Vasyl/Adobe Stock

5 – “Uso de creme dental com flúor reduz QI, provoca autismo e pode levar à morte”

Qual é a desinformação?

Na visão da “odontologia biológica”, os cremes dentais que utilizamos para a prevenção de lesões de cárie possuem de 0,2% a 0,3% de fluoretos que, se forem ingeridos em grande quantidade, podem causar envenenamento e até levar à morte. Afirmam que o flúor é mais tóxico do que o chumbo e que a bioacumulação de flúor ao longo do tempo está associada à redução do quociente de inteligência (QI) e a casos de autismo.

Recentemente, o ativista antivacina Robert F. Kennedy Jr., apoiador de Donald Trump, escreveu no X (antigo Twitter) que a retirada do flúor no sistema de água dos Estados Unidos será uma das primeiras medidas de saúde implementadas caso o candidato republicano vença as eleições. Entre as justificativas, ele alega a associação com distúrbios do neurodesenvolvimento e perda de QI.

Por que é mito?

De acordo com o cirurgião-dentista Jaime Aparecido Cury, professor emérito da Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos principais especialistas em flúor no mundo, não existe nenhuma evidência científica que associe o uso de cremes dentais fluoretados a qualquer impacto no QI ou ao desenvolvimento de autismo. Isso porque a aplicação do creme dental ocorre por apenas alguns segundos na boca e o material é então cuspido, sem que haja bioacumulação significativa de flúor no organismo. O professor ressalta que esses produtos são, inclusive, reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como essenciais em todas as idades por seu efeito anticárie seguro e eficaz.

Risco de morte: Cury frisa que não existe risco de morte associado ao uso de pasta dental fluoretada. De acordo com o professor, a dose tóxica para o fluoreto é bem conhecida e muito maior do que a utilizada no dia a dia. “O sabor amargo e os ingredientes dos cremes dentais geralmente causam náusea e vômito se ingeridos em grandes quantidades, impedindo que doses potencialmente perigosas sejam consumidas. Nunca houve casos letais comprovados por ingestão de pasta dental fluoretada”, afirma.

Redução de QI e autismo: Segundo Cury, as alegações de que o creme dental com flúor pode levar à redução de QI ou autismo surgiram de extrapolações de estudos com populações que consomem água com flúor em concentrações muito superiores às usadas na fluoretação da água potável. Um desses trabalhos, que costuma ser apresentado como “estudo de Harvard”, é muito usado como “prova” de que o flúor é “neurotóxico”.

“Esses estudos analisaram áreas com água naturalmente fluoretada em concentrações acima de 10 ppm (partes por milhão), muito além dos níveis de segurança, que variam de 0,6 a 0,8 ppm. Os pesquisadores até encontraram uma associação entre a concentração de flúor na água e a diminuição do QI, mas eles mesmos apontaram que essa diminuição era pequena e estava dentro do erro de medição dos testes de QI empregados. Além disso, essas associações não têm robustez científica, pois foram obtidas por estudos transversais que não comprovam causa e efeito, ou seja, outros fatores não considerados podem explicar as diferenças observadas no QI”, explica.

Provoca autismo: Segundo Cury, desde 1950 o flúor da água tem sido apontado como o responsável por várias doenças de causas ainda não esclarecidas.

Na década de 80, ele foi considerado o causador da doença de Alzheimer; nos anos 90, foi associado à Aids e, agora, ao autismo. “Não há plausibilidade alguma em associar o fluoreto do dentifrício ou da água com autismo, mas isso tem sido feito de forma inescrupulosa”, critica.

6 – “Dor de dente indica desequilíbrio em outros órgãos do corpo”

Qual é a desinformação?

A “odontologia biológica” se baseia em princípios da medicina tradicional chinesa para afirmar que os dentes estão correlacionados com outros órgãos do corpo. Dessa forma, eles afirmam que uma dor de dente (dependendo do dente afetado) pode indicar outros problemas de saúde. Por exemplo: alguém com uma lesão de cárie no primeiro molar superior pode estar com problemas no baço, pâncreas e/ou estômago.

Por que é mito?

Segundo o cirurgião-dentista José Carlos Pettorossi Imparato, professor da USP e da Faculdade São Leopoldo Mandic, dor de dente não tem relação com outros órgãos do corpo humano. Ele acrescenta que a dor de dente é a manifestação clínica de alguma alteração bucal, entre elas sensibilidade, abscesso, doença periodontal (gengivite ou periodontite), fratura ou trinca no dente, bruxismo e, principalmente, lesão de cárie.

O professor explica que a cárie é uma doença que afeta o órgão dental e se inicia como uma mancha branca no esmalte. Se não for tratada, ela evolui para uma cavidade e pode levar à perda do dente.

“Quando a lesão de cárie alcança o estágio de cavitação, o paciente sente dor ao se alimentar ou beber algo. Ao atingir a proximidade com a polpa dentária, essa dor passa a afetar a qualidade de vida do paciente”, diz Imparato, enfatizando que não existe evidência científica que aponte uma relação entre dor de dente e problemas em outros órgãos.

“Com respeito à medicina tradicional chinesa, não podemos fazer essa afirmação. Essas afirmações direcionam-se para uma prática ilegal da profissão e colocam a sociedade em perigo”, alerta.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.