ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO* - Quando conheceu o Hogeweyk, uma espécie de bairro ou vila para pessoas que vivem com demência avançada, há nove anos, Iris van Slooten confessa que não conseguiu distinguir quem era um residente, um familiar em visita ou um profissional de saúde. “Eu vi vida. Isso me chocou profundamente, porque não havia um contraste maior com o que eu conhecia da experiência em lares para idosos”, contou ela, hoje consultora e especialista no The Hogeweyk Care Concept, durante o Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado no Rio de Janeiro, no final de junho.
Fundado em 2009, fruto de discussões que datam de pelo menos três décadas, o Hogeweyk, que fica no distrito de Weesp, próximo a Amsterdã, de fato, não quer lembrar em nada o que as pessoas pensam de um lar de cuidados de longa permanência. Embora funcione de portão fechado, como um condomínio, a ideia é que tudo se aproxime ao máximo de um bairro normal.
Segundo a Be Advice, organização responsável pelo Hogeweyk e a difusão do método em outros países, a proposta deles é de “desinstitucionalização”. Por lá, contou Iris, você encontra casas para moradores com estilos de vida parecidos, mercado, teatro, restaurante e pubs (um estilo de bar europeu), onde toca de músicas tradicionais holandesas até jazz, com frequentadores dançantes e animados. Os funcionários não usam qualquer tipo de uniforme e tem como parte do trabalho conviver e se conectar com os moradores.
Na imprensa internacional, eles ficaram conhecidos como a “a primeira vila da demência do mundo”. “É um termo horrível, que foca na doença em vez das habilidades que as pessoas ainda têm. Mas se tornou viral, então, agora, ‘abraçamos’ essa denominação e a explicamos.” Vivem no local atualmente 188 idosos e o modelo tem sido replicado em outros países, como Japão, Alemanha, Itália e Estados Unidos.
Demência
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a demência é uma síndrome resultante de uma variedade de doenças e lesões que afetam o cérebro, que geralmente levam à deterioração da função cognitiva. Ela afeta cada pessoa de maneira diferente, o que depende de uma série de fatores genéticos e de estilo de vida.
Algumas causas são reversíveis, enquanto outras podem ter o avanço desacelerado se a pessoa receber os cuidados e tratamento adequado. A principal delas, a doença de Alzheimer, que pode ser responsável por 60% até 70% de todos os casos, segundo a OMS, ainda não tem uma “cura”.
Muito provavelmente a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas quando se fala sobre demência é o esquecimento. Além disso, podem haver também alterações no humor. Segundo especialistas, a “classificação” de pacientes, de demência leve até avançada, vai depender muito da avaliação da funcionalidade da pessoa. Ela consegue se alimentar adequadamente por conta própria? Consegue escolher roupas adequadas para a temperatura?
A OMS explica que os sintomas costumam se tornar mais graves conforme a passagem do tempo ou só aparecer nos estágios finais da doença. Eventualmente, afirma, a maioria das pessoas com demência precisará da ajuda de outras para as atividades diárias.
Uma nova casa
Iris contou que, caso fosse diagnosticada com demência, gostaria de continuar a viver na casa dela até quando fosse possível. “Mas e se, por qualquer motivo, isso não for mais possível? O que eu gostaria então? Tenho certeza de que ainda gostaria de viver como eu mesma. Gostaria de continuar ouvindo as músicas do Coldplay, comer minhas refeições favoritas e me conectar com outras pessoas.”
É essa a filosofia do Hogeweyk. Para colocá-la em prática, eles tentam entender ao máximo quem foi e é seu residente. Por isso, por lá, há várias casas diferentes, em geral com sete moradores, além de um profissional responsável por cuidados médicos e outro para suporte doméstico. Por exemplo, há uma casa de moradores mais urbanos, com paredes vermelhas, e também uma para os mais tradicionalistas, com tons bege e uma trilha sonora de música popular holandesa.
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Cada um desses lares oferece uma alimentação diferente. Os residentes que quiserem ajudam a prepará-las, mesmo que isso signifique manusear facas afiadas. Quando contou isso, Iris mostrou fotografias de um lar japonês, que está importando o modelo.
“Eles receberam uma faca afiada pela primeira vez em muitas semanas, meses ou até anos. No começo, tentaram cortar os vegetais com a faca ao contrário, mas descobriram sozinhos como virá-la e cortar corretamente. No início, fizeram isso hesitantes, mas rapidamente recuperaram as habilidades antigas e cortavam mais rápido que os próprios cuidadores.”
“Quem já cortou o dedo enquanto cozinhava?”, perguntou ela à audiência do Congresso Brain. “Eu já. As pessoas com demência, mesmo com demência avançada, não são loucas. Elas sabem como usar uma faca enquanto cozinham. Provavelmente, esta senhora fez isso por mais de 60 anos em sua vida. E, ainda assim, no cuidado tradicional de lares de idosos institucionais, tiramos essas coisas, como facas, porque olhamos para essas pessoas como frágeis, que precisamos proteger. Mas a que custo?”
A ideia do Hogeweyk é oferecer uma estrutura de cuidados em saúde em alta complexidade ao mesmo tempo em que permite que os residentes exerçam plenamente as habilidades e capacidades das quais ainda dispõe, mesmo que isso, às vezes, possa ir de encontro às recomendações médicas.
Isso fica claro quando Iris mostra a fotografia de um paciente fumando em uma cabana. “Para ele, fumar era um prazer muito importante em sua vida. Todos sabemos que fumar não é saudável, mas era essencial para a qualidade de vida dele. Quem somos nós para dizer que na casa de repouso ele não pode mais fumar? O que é realmente importante nesta última fase da vida?”
Para ela, tratar todos os residentes igualmente e/ou estipular rotinas fixas como em um hospital é um dos principais fatores que cria os desafios relatados em outras casas de repouso, como problemas de sono e residentes inativos e entediados. “Muitas vezes criamos nossos próprios problemas”, afirma.
“Nossa experiência é que quando você deixa as pessoas escolherem qual estilo de vida acham que se sentem mais confortáveis, vemos menos irritação, estresse, agitação, uso de medicação, e que a chance deles terem algo em comum e se darem bem é maior.”
Segundo Iris, por ali, os residentes permanecem com quadro de saúde mais estável por um período de tempo maior e a média de dias acamados antes do óbito é de quatro dias. “Eles estão ativos até os últimos dias. Nosso objetivo não é adicionar dias de vida a eles, mas sim qualidade aos últimos dias que lhes sobraram.”
Ela também aponta que o ambiente agradável estimula as famílias a visitarem os residentes com mais frequência e sentirem menos culpa por não poderem mais mantê-los em casa. “As famílias gostam de passar tempo no Hogeweyk. Isso é muito diferente de uma casa de repouso institucional onde você se senta em frente ao seu ente querido, talvez tenha uma conversa estranha, não tem para onde ir ou nada para fazer.” Ela contou a história de um marido que visitava a esposa praticamente todos os dias para andarem juntos de bicicleta pelo bairro.
Portões fechados
Embora estimule a autonomia dos idosos, o modelo não está imune a críticas. Por um lado, agrupar pessoas com condições de saúde parecidas pareça uma boa ideia do ponto de vista de cuidados médicos, mas especialistas e ativistas lembram que há desafios éticos e de direitos humanos a serem encarados. Apesar de terem liberdade para circular dentro da área comum do Hogeweyk, os portões para o mundo externo estão fechados, como na maioria dos lares deste tipo.
“Estamos criando guetos para pessoas com demência. Essas pessoas são excluídas da sociedade por causa da demência”, disse o ativista holandês Teun Toebes, idealizador do documentário Human Forever, sobre como pessoas com esse diagnóstico vivem pelo mundo, ao Estadão, durante o Congresso Brain. Ele admite que algumas pessoas com demência, de fato, precisam de cuidados mais intensivos, mas defende que não podemos acreditar que nossa maneira de pensar e cuidar de todos possa ser baseada nos com quadros mais graves.
Médicos também destacam que o contato intergeracional, entre pessoas de diferentes idades, é muito importante para pessoas com demência, o que pode ser dificultado em ambientes de portas fechadas.
Ao Estadão, Iris disse que eles nunca quiseram construir um “gueto”, mas sim um bairro mais inclusivo, e lembrou que quando o Hogeweyk foi levantado havia uma lei na Holanda que exigia que houvesse um portão, ou seja, os lares eram proibidos de permitir que os residentes saíssem sem autorização. Há dois anos, conta, uma nova lei entrou em vigor e impede que “as pessoas sejam trancadas, mesmo as com demência severa”, pois isso representaria uma infração aos direitos humanos.
“Mas quem é responsável (se algo acontecer com eles quando saírem)? Oficialmente, ainda é o lar de idosos. É uma discussão que está acontecendo hoje em dia”, explica.
“Eu realmente concordo com o Teun, que temos que dar outro passo à frente e abrir a única porta do Hogeweyk. Acredito que isso ocorrerá dentro de um ano. Mas você verá que a maioria das pessoas com demência avançada, nesta fase da vida, estão felizes com o conforto que este bairro oferece, porque é muito completo. Mas alguns, sim, querem ver outros lugares, e esse é um direito deles.”
Ela reforça que o Hogeweyk é um “salto quântico” em comparação com a realidade de muitos países. “Nós desafiamos (nossos parceiros) a dar grandes passos em direção a uma abordagem social em vez do modelo médico, mas eles também precisam da participação de todas as partes interessadas -família, funcionários, sociedade etc - para torná-la uma realidade e um sucesso duradouro. Por vezes, é necessário um passo intermédio para finalmente alcançar o objetivo da inclusão total. A mudança leva tempo.”
Financiamento
O Hogeweyk, assim como boa parte das casas de repouso da Holanda, é uma instituição sem fins lucrativos. Iris explicou que cada residente paga uma contribuição ao governo de acordo com rendimentos e ativos.
A instituição é paga diretamente pelo governo, há um valor recebido por residente. Iris disse que essa quantidade é igual para todas as organizações. Ela frisa esse aspecto para dizer que é preciso mais do que dinheiro: “é sobre ser criativo na forma de usar os recursos”.
“Trabalhamos com pessoas de todo o mundo, com diferentes sistemas de financiamento, diferentes regulamentações, todo tipo de obstáculos. Estamos convencidos de que é possível fazer de maneira diferente”, comenta.
Segundo ela, a inovação não está “nos tijolos e na argamassa” ou simplesmente em levantar cópias do Hogeweyk. “A verdadeira inovação é se conectar com as pessoas, conhecê-las, sentar com elas e perguntar o que é mais importante para elas. Ainda precisamos explicar todos os dias, quando um novo cuidador começa a trabalhar no Hogeweyk, e em qualquer lugar do mundo, que sentar (com os residentes) ao sol, no terraço, tendo uma boa conversa, com uma xícara de café, é uma parte muito importante do trabalho deles”, finaliza.
*O repórter viajou a convite do Congresso Brain 2024: Cérebro, Comportamento e Emoções
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