Desde o início da pandemia, os brasileiros ficaram menos ativos fisicamente e passaram a se alimentar pior. E o efeito da crise foi bem mais grave entre desempregados e aqueles com menos escolaridade. Isso é o que mostra o inquérito telefônico Covitel, da Vital Strategies e da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Da pré-pandemia até o 1º trimestre deste ano, o consumo de frutas e legumes entre os brasileiros que perderam o emprego na pandemia caiu 37%. A taxa de pessoas nesta catetoria que comia frutas cinco vezes por semana ou mais recuou de 42,6% para 26,7%. Já a queda no consumo de verduras e legumes entre os que perderam o trabalho teve comportamento parecido: de 44,2% para 27,6%.
Nos últimos anos, o Brasil mergulhou em crise socioeconômica, com alta no desemprego e explosão de preços. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no primeiro trimestre deste ano, o País somava 12 milhões de desempregados (11,2%). Nas outras faixas da população (aqueles que seguem trabalhando e os que já estavam sem emprego antes do surgimento da covid-19), não houve redução estatisticamente significativa desse consumo.
“Basicamente, o que a pandemia fez foi piorar tudo mais nos mais vulneráveis. Seja mais pobre, seja o negro, seja a mulher em alguns casos. É uma pandemia que causou aumento das desigualdades que infelizmente já existiam”, destaca o epidemiologista Pedro Hallal, envolvido na pesquisa.
Outros dados mostram que o impacto na alimentação foi mais forte entre os vulneráveis. A proporção dos que consomem frutas cinco dias na emana ou mais caiu 17% entre os menos escolarizados - que estudaram até oito anos. Para a população preta e parda, o recuo foi de 15,9%. Para os especialistas, por trás disso está o encarecimento da alimentação saudável somado à retração de renda.
“É só olhar preço de tomate, de verdura, de fruta. Aumentou muito”, diz Hallal. Em um ano, dos mais de 400 itens acompanhados pelo IBGE, a cenoura é a que ficou mais cara no acumulado: alta de 166,17%. Seguida do tomate (+94,55%), do pimentão (+80,44%) e do melão (+68,95%).
A piora na alimentação e a redução na atividade física preocupam, pois são fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) - sete entre as 10 principais causas de morte no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Especialistas indicam ser preciso combater desigualdades e “inverter pirâmide”, ou seja, investir mais em prevenção para gastar menos em tratamento.
O Covitel buscou aferir o impacto da pandemia nos fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) na população adulta, com 18 anos ou mais. Os mais de 9 mil entrevistados deram respostas relativas ao período pré-pandemia e ao primeiro trimestre deste ano. A pesquisa inovou ao fazer metade das entrevistas por telefonia móvel e também buscar moradores do interior do País, não só das capitais.
Por mais que tenha identificado retrocesso nos fatores de risco para essas doenças, principalmente entre os mais vulneráveis, o Covitel mostra estabilidade nos diagnósticos de diabete e hipertensão - o que pode indicar subnotificação. “Historicamente a gente sabe que está aumentando (número de pessoas com essas doenças no País)”, alerta Luciana Sardinha, assessora Técnica de Saúde Pública e Epidemiologia da Vital Strategies.
A causa da estabilidade pode ser a falta de acesso aos exames na pandemia, com a necessidade de isolamento social e o foco das redes de saúde no atendimento dos casos da covid. “Só não tivemos novos diagnósticos, o que é uma preocupação porque agora pode ser que essa população procure o serviço e a gente venha a ter um número muito alto. E o sistema de saúde vai ter de estar preparado para isso.”
Alimentação menos saudável e mais inatividade física
No País, segundo a Covitel, a ingestão de refrigerante e sucos artificiais, cinco ou mais vezes por semana, caiu 25,4%. A redução estatisticamente significativa foi entre as pessoas de maior escolaridade, 12 anos ou mais de estudo (-32,4%). E ainda mais abrupta entre os que perderam emprego (-61,2%).
Ao mesmo tempo em que a alimentação piorava, os desempregados e menos escolarizados passaram a praticar menos atividade física no tempo livre (equivalente a pelo menos 150 minutos de exercício moderado por semana). A taxa de ativos no lazer caiu 30% para os que perderam emprego; 39% para os que nunca trabalharam; e 30% para os que estudaram até oito anos.
Hallal destaca que a redução na atividade física foi um fenômeno mundial. O que preocupa é que, com o avanço da vacinação, a retomada ainda não aconteceu. “Diferente da população de outros países, a população brasileira diminuiu muito o nível de atividade física que faz no lazer e parece não ter recuperado rápido", aponta o professor da UPFPel. A inatividade, segundo ele, causa 5,3 milhões de mortes por ano no mundo.
O Covitel ainda revela que a prevalência de obesidade no Brasil, no primeiro trimestre, era de 21,7%. Taxa que era maior entre os menos escolarizados (23,8%) e aqueles que perderam o emprego (23,2%). Não houve comparação com o período pré-pandemia. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do IBGE, indica que o índice de obesos com mais de 20 anos de idade mais que dobrou entre 2003 e 2019.
Autopercepção
A taxa de brasileiros que classificam seu estado de saúde como “ruim” ou “muito ruim” cresceu 91% desde que a pandemia começou, conforme o inquérito telefônico Covitel, da Vital Strategies e da UFPel. O aumento foi maior entre as pessoas com menor escolaridade (de 125% para quem estudou de 9 a 11 anos) e aquelas que perderam o emprego durante a crise sanitária (222,7%). Entre os que estudaram 12 anos ou mais, a percepção se manteve estável.
“Um aumento de 91% no porcentual de pessoas que classificam a sua saúde de forma negativa é algo que se espera num período de dez, 20 anos num país que está piorando muito”, diz Hallal. “Em um espaço de dois anos, houve retrocesso na saúde em geral da população brasileira extremamente importante.”
Com a possibilidade de subnotificação de diagnósticos de doenças crônicas não transmissíveis, os especialistas destacam a emergência de expandir atendimentos. Porém, para frear o avanço dessas enfermidades no País, é preciso enfrentar problemas estruturais. Hallal diz que é preciso fazer a “inversão da pirâmide”. “O Brasil e a maioria dos países gasta muito mais com tratamento do que em prevenção. Não adianta (só) comprar insulina para todo diabético. Você tem de prevenir.” O cuidado preventivo é, inclusive, menos oneroso, destaca.
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