BRASÍLIA - Ao sancionar o Orçamento de 2021, em abril, o presidente Jair Bolsonaro desrespeitou uma lei aprovada semanas antes pelo Congresso e retirou R$ 5 bilhões que deveriam estar sendo usados hoje para financiar a ciência e a tecnologia no Brasil, incluindo pesquisas sobre a covid-19. O dinheiro está atualmente na “reserva de contingência” — isto é, guardado para ajudar o governo a atingir a meta de resultado primário. O Ministério da Economia admitiu ao Estadão que o dinheiro está contingenciado e a verba será liberada, mas não deu prazo.
Mesmo com a liberação do dinheiro retido, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) será o menor dos últimos cinco anos, em valores corrigidos. A pasta terá à disposição pouco mais de R$ 12 milhões. As informações foram compiladas pela ONG Contas Abertas e confirmadas pela reportagem. Na ponta, a falta de dinheiro significa que diversos projetos de pesquisa, inclusive sobre a covid-19, ficaram sem financiamento.
A verba retida é do Fundo de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (FNDCT), uma reserva criada para financiar projetos de pesquisa. Nos últimos anos e ao longo de diferentes governos, esse fundo viu a maior parte de seus recursos serem alocados na “reserva de contingência”. Em julho passado, várias entidades da área se juntaram numa campanha para mudar a situação. O movimento resultou na aprovação de uma lei complementar que proibiu o Executivo de colocar dinheiro na “reserva de contingência”, a Lei Complementar 177. Quase um mês depois, porém, Bolsonaro ignorou a nova lei e sancionou o Orçamento com os R$ 5 bilhões retidos.
O presidente até tentou evitar a obrigação do financiamento de pesquisas: vetou o artigo da nova lei que impedia a alocação do dinheiro na reserva. O veto, porém, foi derrubado pelo Congresso em 17 de março. Foram 457 votos na Câmara e 72 no Senado, e a nova legislação foi promulgada em 26 de março. Ao sancionar o Orçamento em 22 de abril com o dinheiro retido, Bolsonaro cometeu uma ilegalidade, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.
Análise técnica
“Se nós olharmos para a cronologia, este item do Orçamento (os R$ 5 bilhões em reserva de contingência) é ilegal. E o Executivo vai ter de resolver ao longo do ano. Se a pergunta é se tem crime de responsabilidade (por parte do presidente da República), isso é algo que envolve um juízo político. Mas, do ponto de vista técnico, existe uma ilegalidade nesta rubrica orçamentária, e o governo vem sinalizando que vai tentar resolver ao longo do exercício financeiro”, diz o analista do Senado Leonardo Ribeiro, especialista em contas públicas.
Fundador e secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castelo Branco diz que o bloqueio dos recursos é ilegal. “O (Ministério da) Economia tem de explicar como fará, porque da forma como está é ilegal. Até porque o Orçamento foi sancionado depois da lei”, diz o economista. “Num momento em que tanto se fala sobre a importância da ciência, o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia é o pior dos últimos anos. E a liberação dos recursos do fundo, sobre a qual havia grande expectativa, acabou não acontecendo. Pelo menos até agora”, disse ele.
Procurado para comentar especificamente sobre a ilegalidade, o Ministério da Economia pediu dois dias para responder e, quando finalmente se posicionou, respondeu que caberia ao Palácio do Planalto se explicar. A assessoria do Palácio não respondeu.
Ao longo do mês de maio, o governo passou a trabalhar para liberar pelo menos parte do dinheiro — que todavia ainda não chegou aos pesquisadores. “O valor previsto para a reserva de contingência do Fundo na LOA, R$ 5.048.620.005,00, precisará ser incorporado às demais programações da unidade (FNDCT)”, admitiu o Ministério da Economia, em nota. Segundo a pasta, a liberação dos recursos foi aprovada em uma reunião da Junta de Execução Orçamentária (JEO), no dia 5 de maio.
Recentemente, o governo enviou ao Congresso dois projetos de lei (PLNs 06 e 08 de 2021), liberando parte do dinheiro, no total de R$ 2,3 bilhões. A maior parte da verba (R$ 1,88 bilhão) foi alocada para o financiamento de projetos de desenvolvimento tecnológico de empresas privadas — um dos tipos de fomento a que se destina o FNDCT. O restante (R$ 415 milhões) vai financiar os testes clínicos de vacinas nacionais contra a covid-19. Entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) pressionaram pela liberação dos recursos.
Sobre os R$ 2,7 bilhões restantes ainda não há definição: o Ministério da Economia diz estar esperando o Ministério da Ciência e Tecnologia decidir onde colocará os recursos. Também é preciso definir os cortes que serão feitos no Ministério da Ciência e Tecnologia ou em outras pastas, de modo a respeitar as limitações do Teto de Gastos, diz a Economia.
O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) é o autor do projeto que resultou na lei proibindo o contingenciamento dos recursos. “Hoje, está na ilegalidade. Já deveria ter colocado o recurso. Até porque o FNDCT foi transformado num fundo financeiro (pela lei). Então, os rendimentos têm de ser revertidos para a ciência e tecnologia (...). Os PLNs que foram aprovados deveriam conter o valor integral. Vão ter (o governo) de fazer o ajuste disso”, disse.
Sem financiamento
Enquanto os ministros Paulo Guedes (Economia) e Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) decidem como liberar o dinheiro, pesquisadores sofrem com a falta de recursos. A restrição financeira impede projetos de irem adiante; dificulta a formação de novos cientistas; e desestimula aqueles que pretendem seguir carreira científica, segundo pesquisadores.
A geneticista Mayana Zatz é uma das principais cientistas em sua área no País, com vários prêmios nacionais e internacionais e centenas de artigos publicados em revistas científicas estrangeiras. Ela conta como a falta de recursos para a ciência e a tecnologia afeta até pesquisas sobre a covid-19. “Nós tínhamos um projeto enorme, aprovado desde o ano passado, para entender melhor a parte genômica das pessoas infectadas pela doença, e o dinheiro não foi liberado”, diz ela. O objetivo da pesquisa era entender como a covid-19 altera a expressão de certos genes nos doentes, o que poderia ajudar inclusive em possíveis tratamentos.
O projeto foi encomendado pelo Ministério da Saúde e seria financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – mais de dois terços dos recursos do CNPq vêm do FNDCT. Três centros de pesquisa seriam mobilizados pelo projeto, que acabou não saindo do papel. “É de alto interesse. Não estávamos querendo estudar a cor da asa da borboleta”, diz Mayana Zatz.
A dotação inicial total do Ministério da Ciência e Tecnologia como um todo é de R$ 12,37 milhões em 2021, sem considerar bloqueios. Em valores corrigidos pela inflação, é o menor montante desde 2016, quando a verba foi de R$ 12,27 milhões. Com exceção de 2016, é o pior orçamento desde pelo menos 2008, segundo levantamento elaborado pela ONG Contas Abertas. Além dos R$ 5 bilhões da reserva de contingência do fundo, o Ministério teve R$ 373 milhões congelados – isto é, recursos que estão retidos no momento, mas que podem ser liberados ao longo do ano por decisão do Ministério da Economia.
Nos últimos anos, diferentes governos também adotaram a prática de liberar para o FNDCT um limite orçamentário menor que a arrecadação do próprio, cujas verbas vêm dos royalties da produção de petróleo e gás natural e de contribuições de empresas da área de energia elétrica. Segundo Gil Castelo Branco, quando a Lei Orçamentária traz um limite menor que a arrecadação, o dinheiro excedente acaba ficando parado.
Renan Vinícius da Silva, de 24 anos, é mestrando em farmacologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisa dele é sobre o chamado “reposicionamento” de drogas para combate ao covid-19, ou seja, a procura medicamentos que possam ser efetivos contra a doença. A pesquisa é feita “in silico”, isto é, com base em modelos virtuais, no computador. Se Renan desejasse fazer testes “in vitro”, porém, em culturas de células, isto não seria possível hoje por falta de financiamento. “Meu laboratório está com algumas dificuldades de financiamento. Não só o meu, mas vários outros”, conta ele Renan. O jovem pesquisador agora busca alternativas para avançar com o trabalho, inclusive em fundações privadas de apoio.
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