O número de mortes por transtornos mentais associados ao uso abusivo de álcool vem aumentando no País desde o início da pandemia de covid-19, com média de 8,5 mil óbitos anuais no período de 2020 a 2022, um crescimento de 33% em relação a 2019, quando esse número ficou em 6,4 mil.
Quando considerada a taxa de óbitos por 100 mil habitantes, também houve alta significativa ao longo dos últimos anos. Comparando o número de mortes de 2010 e 2022, anos das últimas duas edições do Censo (que tem dados populacionais mais confiáveis), o índice subiu 12,6%, passando de 3,71 para 4,18.
Os dados fazem parte de levantamento feito pelo Estadão no Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, e mostram ainda que o aumento de óbitos pelo consumo abusivo de bebidas alcoólicas ocorreu sobretudo entre os brasileiros mais velhos, principalmente os idosos.
Enquanto entre os adultos com idade até 49 anos houve queda de óbitos por essa causa, entre os indivíduos a partir dos 50 anos o aumento foi de 38,7%. Essa faixa etária concentrou, em 2022, 65% das mortes associadas ao uso de álcool – em 2010, esse índice foi de 49%.
O envelhecimento populacional explica parte desse crescimento, já que, quando a expectativa de vida era menor no País, mesmo pessoas que abusavam do álcool poderiam morrer de outras causas antes que a bebida levasse a uma complicação fatal.
Mas essa não é a única explicação, segundo especialistas. A pandemia de covid-19 teve (e ainda tem) efeitos sobre a saúde mental que levaram muitos a buscar no álcool um alívio para o luto, a angústia, o medo e a solidão. “De forma geral, houve um aumento de quadros de ansiedade, depressão e transtornos mentais”, diz Ronaldo Laranjeira, professor titular da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Vimos que quem usava de forma moderada começou a usar de forma abusiva. Os que já usavam de forma abusiva foram para um padrão de dependência”, diz Arthur Guerra, psiquiatra e presidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
Condição clínica dos idosos favorece complicações pelo álcool
Além do envelhecimento populacional e dos impactos da pandemia, outros fatores ajudam a explicar o aumento mais expressivo de óbitos entre os mais velhos. De acordo com Mariana Thibes, coordenadora do Cisa e doutora em sociologia, as alterações fisiológicas decorrentes do envelhecimento deixam os idosos mais vulneráveis aos efeitos nocivos do álcool porque o metabolismo das substâncias fica mais lento, o que aumenta o risco de danos.
“O álcool também pode interagir mal com medicamentos prescritos que muitos idosos tomam para doenças crônicas. O uso indevido pode causar ainda quedas e lesões, exacerbar condições médicas subjacentes e piorar o declínio da cognição”, destaca a especialista.
Ela diz que, somadas às questões fisiológicas e orgânicas, situações como solidão e isolamento, dificuldades em lidar com a aposentadoria e a piora da saúde na velhice criam “um cenário propício para muitas pessoas lançarem mão do álcool como uma ferramenta equivocada” para enfrentar esses desafios.
Além dos idosos, outro grupo que preocupa os médicos é o das mulheres. Embora 90% dos mortos por transtornos mentais relacionados ao uso de álcool sejam homens, os especialistas veem um crescimento do consumo abusivo entre o sexo feminino.
“Com a conquista de mais liberdade e com mais mulheres no mercado de trabalho, a indústria se aproveitou para focar nesse público, com propagandas mais direcionadas, patrocínios de eventos de mulheres, bebidas com embalagens e sabores mais atrativos”, destaca a psiquiatra Patrícia Hochgraf, coordenadora do Programa da Mulher Dependente Química do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
Ela diz que, além das jovens, que começam a fazer uso em eventos sociais, outro grupo que exige maior atenção é o das mulheres na menopausa. “É um momento que a mulher passa por mudanças e pode também estar vivendo a saída de um filho de casa, fica com aquela síndrome do ninho vazio”, diz. “Também já vi muitos casos de mulheres que começam a beber por causa de insônia”, afirma.
Para todos os grupos populacionais, outro fator de risco para o consumo abusivo é ter histórico familiar de dependência química. Os especialistas também ressaltam que cada vez mais estudos mostram que mesmo a ingestão de um baixo número de doses de bebida alcoólica pode trazer riscos à saúde. “Há pesquisa mostrando que mesmo a mulher que bebe uma taça de vinho por dia tem risco aumentado de câncer de mama, então é cada vez mais difícil falar em uma dose segura de álcool”, diz Laranjeira.
Álcool está relacionado com diferentes tipos de doenças
O levantamento do Estadão considerou somente as mortes registradas com o código F10 da Classificação Internacional de Doenças (CID), que refere-se aos “transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool”.
Nessa categoria, segundo os especialistas, podem entrar tanto quadros agudos, como intoxicação ou síndrome de abstinência, quanto óbitos por complicações da dependência. Mas nem sempre o alcoolismo é indicado como causa básica no atestado de óbito, o que faz com que nem todas as mortes associadas ao uso da substância tenham a devida menção. “Dá pra supor, portanto, que esse número de óbitos seja bem maior”, diz Guerra.
Além dos óbitos diretamente associados ao consumo nocivo de álcool, a substância aparece como “fator contribuinte” em diversas outras causas de mortalidade, como acidentes de trânsito, agressões, doenças cardiovasculares e tumores. O Cisa estima que 69 mil mortes tenham ocorrido em 2021 por causas totalmente ou parcialmente atribuíveis ao álcool.
Entre as principais doenças associadas ao uso abusivo de álcool estão a cirrose hepática, a pancreatite e diversos tipos de câncer, como o de faringe, laringe, boca, fígado e esôfago.
Outros países também viram o número de mortes por álcool subir nos últimos anos. Nos Estados Unidos, um levantamento do Instituto Nacional sobre Abuso de Álcool e Alcoolismo mostrou que os óbitos associados ao álcool cresceram 25% entre 2019 e 2020 e continuaram subindo em 2021.
Na análise, os pesquisadores dizem que “algumas pessoas aumentaram o consumo de álcool num esforço para lidar com o estresse e a ansiedade relacionados com a pandemia” e que a conduta foi “particularmente comum em pessoas com lutas pré-existentes contra ansiedade, depressão e uso indevido de álcool”. Acrescentaram ainda que a pandemia pode ter dificultado o acesso a tratamentos ou a serviços de apoio a pessoas que já lidavam com o alcoolismo.
O que especialistas tentam entender é o motivo de essas taxas seguirem altas mesmo após os dois anos mais críticos da pandemia. Para Laranjeira, o sistema de saúde não está devidamente preparado para receber esse crescente número de pacientes com questões de saúde mental.
Ele cita ainda como possível causa para o aumento do consumo abusivo de álcool (e de suas consequências) o acesso facilitado a bebidas por meio dos serviços de delivery, que cresceram também com a pandemia. O psiquiatra defende maiores restrições para venda e propaganda das bebidas alcoólicas. “O Brasil nunca teve um mercado de álcool muito regulamentado. Com as redes sociais e sites de venda, ficou pior”, diz.
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Outros dados, além do índice de óbitos, indicam um aumento de abuso de álcool nos últimos anos no País. A mais recente edição da pesquisa Vigitel, realizada anualmente pelo Ministério da Saúde com adultos das 27 capitais do País, mostra que o índice de entrevistados que afirmaram fazer consumo abusivo de álcool cresceu, passando de 18,1% em 2010 para 20,8% em 2023.
Foi considerado consumo abusivo a ingestão de quatro ou mais doses, para mulheres, ou de cinco ou mais doses, para homens, em uma mesma ocasião, pelo menos uma vez nos 30 dias anteriores à pesquisa. Segundo o Cisa, no Brasil, uma dose de bebida equivale a 14 g de álcool puro, o que corresponde a 350 ml de cerveja (uma latinha), 150 ml de vinho (uma taça) ou 45 ml de bebidas destiladas, como vodca, cachaça ou gin.
Sinais de alerta
Os especialistas alertam que nem sempre o indivíduo reconhece quando o uso do álcool torna-se problemático e indicam alguns sinais de alerta. “O mais importante é quando esse consumo começa a trazer prejuízos na sua vida: a pessoa começa a dirigir embriagado, perde dia de trabalho, cai, comporta-se de maneira inadequada, ouve reclamações de familiares ou amigos sobre esse comportamento”, diz Patrícia.
Quando há esses sinais de perda de controle, é importante que a pessoa busque ajuda médica e/ou psicológica para tratar o quadro e evitar os danos que o consumo repetido e prolongado da bebida alcoólica podem trazer à saúde física e mental.
Os especialistas também defendem mais campanhas governamentais sobre os prejuízos trazidos pelo álcool e melhor preparo das unidades de saúde para enfrentar a condição. “É mais difícil lidar com esse tipo de dependência porque beber é algo socialmente aceito e estimulado. Dificilmente uma pessoa sai para socializar sem álcool. Então tem que alertar a população sobre os riscos e alertar os serviços de saúde para pesquisar ativamente as pessoas que abusam do álcool mesmo quando elas procuram o serviço de saúde por outras razões”, diz a médica do HC.
O Ministério da Saúde foi procurado para comentar as principais ações que desenvolve para enfrentar o aumento de problemas causados pelo abuso de álcool, mas não respondeu.
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