Crianças não podem ser consideradas psicopatas; entenda por que discussão é complexa

Os filmes e a literatura não explicam tudo sobre o que é a psicopatia e a discussão está longe de ter respostas definitivas

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Foto do author Leon Ferrari

Quando se fala em psicopatia, parece que todos temos na ponta da língua uma explicação sobre o assunto, mas nem tudo é tão definido quanto parece ou tão simples quanto as versões glamourizadas de psicopatas apresentadas pela indústria de entretenimento.

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Um aspecto, porém, é unanimidade entre os especialistas: antes de 18 anos, não é possível considerar que alguém seja um psicopata. “A estrutura de personalidade só é plenamente formada após essa idade”, explica o psiquiatra forense José Brasileiro Dourado Júnior, secretário-geral do departamento forense da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

“Antes disso, a gente chama de traços de personalidade”, complementa Gustavo Bonini Castellana, psiquiatra do Núcleo de Psiquiatria Forense do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

Qualquer diagnóstico relativo à personalidade antes dos 18 anos poderia levar a um estigma perigoso, alerta especialista Foto: Studio Romantic/Adobe Stock

“Nós sabemos que o cérebro da criança e do adolescente não está plenamente desenvolvido. Especialmente a região pré-frontal, que é muito importante para o processo de tomada de decisão, a avaliação de aspectos morais e o controle de impulso, é uma das últimas a se desenvolver”, afirma o psiquiatra Sérgio Rachman, coordenador do Centro de Estudos em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Qualquer diagnóstico relativo à personalidade antes dos 18 anos poderia levar a um estigma perigoso, alerta Castellana. Afinal, pode ser uma criança ou adolescente manifestando um comportamento antissocial, com condutas que ferem as regras sociais, e que vai melhorar com o amadurecimento.

Transtorno de conduta

Durante a infância e a adolescência, o que os manuais de psiquiatria trazem é o diagnóstico de transtorno de conduta, marcado por um padrão persistente e repetitivo de desrespeito aos direitos de outros, às autoridades e normas sociais. Esse comportamento é grave o suficiente para prejudicar o funcionamento pessoal e os ciclos no qual esse indivíduo está inserido, como família e escola.

“É aquela criança que tem um comportamento gravemente distorcido do que a família orienta e espera. Não é só uma birra ou uma discordância pontual, é um comportamento reiterado e que pode se estender a todo o ambiente social, não só familiar”, explica Castellana.

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Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), globalmente, o transtorno de conduta envolvendo sintomas de comportamento destrutivo ou desafiador ocorre em 3,5% dos jovens de 10 a 14 anos e em 1,9% dos jovens de 15 a 19 anos.

O diagnóstico precisa ser feito por um profissional de saúde e há tratamento, que pode ser psicoterápico e, às vezes, incluir o uso de remédios. De acordo com Dourado Júnior, a eficácia do tratamento depende do momento em que ele é iniciado — quanto antes, melhor — e de 30% a 40% dos transtornos de conduta tendem a evoluir para um transtorno de personalidade antissocial (TPAS).

O que é psicopatia?

De acordo com o livro The Oxford Handbook of Evolution and the Emotions, da Oxford University, a psicopatia está ligada a características como egoísmo, desonestidade, imprudência e falta de preocupação com o bem-estar dos outros (falta de empatia).

“A psicopatia é marcada pelo desrespeito às normas sociais, evidenciado por sua associação com uma ampla variedade de atitudes e comportamentos adversos, como agressão física, agressão sexual, mentiras e trapaças”, escrevem os autores.

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“As pessoas associam a psicopatia aos serial killers que são retratados em séries. Normalmente, a pessoa diagnosticada como psicopata não é um serial killer. A grande maioria não comete crimes violentos. Mas é alguém que engana os outros, não respeita regras sociais, não respeita o sentimento dos outros, trapaceia. São pessoas que causam estrago na vida dos outros”, comenta Rachman.

De acordo com Dourado Júnior, a psicopatia não é considerada um transtorno mental, mas sim um conceito da psiquiatria forense. “Podemos encontrá-la dentro de alguns diagnósticos, principalmente no transtorno de personalidade antissocial, mas também no transtorno de personalidade narcisista.”

Nem todas as pessoas que têm esses diagnósticos, porém, são psicopatas. “De acordo o psicólogo canadense Robert Hare, que criou uma escala para medir a psicopatia, esse quadro corresponderia a um subgrupo dessas pessoas com transtorno de personalidade antissocial. Seria um subgrupo de maior gravidade”, diz Rachman.

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O termo “psicopatia” não aparece na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), classificação mais usada nos Estados Unidos, nem como enfermidade específica na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), da OMS. Na CID, ele aparece relacionado aos transtornos de personalidade de gravidade não especificada.

Segundo a publicação de Oxford, as estimativas de prevalência para psicopatia e TPAS são “substancialmente” diferentes na literatura científica e os estudos que quantificam essa prevalência são limitados, conforme a revisão publicada na revista científica Evolutionary Human Sciences. Considerando a população geral, a estimativa é de que atinja de 1% a 3%.

Os especialistas afirmam que, em ambos os quadros, é possível pensar em tratamentos para controlar as manifestações, mas a eficácia costuma ser baixa.

Critérios

Mas como um psiquiatra forense pode, então, classificar alguém como psicopata? Eles usam a escala de 20 itens desenvolvida por Hare:

  • Loquacidade/charme superficial
  • Senso de autoestima grandioso
  • Necessidade de estimulação e propensão ao tédio
  • Mentira patológica
  • Enganação e manipulação
  • Ausência de remorso ou culpa
  • Afeto superficial
  • Insensibilidade e falta de empatia
  • Estilo de vida parasitário
  • Controles comportamentais deficientes
  • Comportamento sexual promíscuo
  • Problemas comportamentais na infância e adolescência
  • Falta de metas realistas e de longo prazo
  • Impulsividade
  • Irresponsabilidade
  • Não aceitar a responsabilidade pelas próprias ações
  • Muitos relacionamentos conjugais de curto prazo
  • Delinquência juvenil
  • Revogação da liberdade condicional
  • Versatilidade criminal

A pontuação vai de 0 a 40. De acordo com Castellana, no Brasil, há uma convenção para considerar um psicopata quem pontua acima de 23. “Isso não quer dizer que a pessoa que pontua 22 está bem”, alerta o especialista, acrescentando que a maioria da população pontua entre 5 e 6.

É doença?

Em psiquiatria, não se usa a palavra doença porque não há clareza sobre a causa do quadro — que, muito provavelmente, deve ser multifatorial, apontam os especialistas. E isso fica ainda mais complexo quando se fala em transtornos de personalidade e psicopatia.

Segundo o livro de Oxford, a dificuldade de classificar psicopatia como um transtorno mental vai da própria maneira como eles são descritos. No DSM-5, há uma ideia de associação muito provável com um dano, no caso um sofrimento interno, enquanto a maioria dos estudiosos aponta que, na psicopatia, o dano é externo.

Há ainda uma discordância sobre a concepção do TPAS como um problema de saúde mental. “Existe uma corrente dentro da psiquiatria que considera o transtorno de personalidade antissocial como um transtorno de saúde mental, assim como a depressão, esquizofrenia. Existe uma outra corrente que entende de uma forma diferente, que é o meu caso, que o vê como um conjunto de características do indivíduo que estão expressas por sua personalidade”, explica Rachman.

Segundo ele, esse era o entendimento no DSM até a quarta edição, na qual havia uma divisão em dois eixos. Em um deles, transtornos da saúde mental e, no segundo, “condições que acompanham a pessoa durante o desenvolvimento”. Isso caiu por terra na quinta edição.

Rachman explica sua posição: “O diagnóstico de TPAS está muito fundamentado na questão moral. Se você pegar os critérios do DSM, ser indiferente em relação à segurança dos outros e o comportamento de enganar os outros, são questões morais”. “Ou será que toda maldade é reflexo de uma doença? Maldade é um sintoma de doença?”, questiona. Um “sim”, nesse caso, poderia criar precedentes jurídicos, avalia.

Origem

Qual a origem da psicopatia? “É um fenômeno extremamente complexo, que transita entre questões morais, filosóficas, sociais e biológicas. E nenhum desses determinismos, tanto o biológico quanto o social e o psicológico, explica totalmente o fenômeno”, fala Rachman.

“O cérebro do psicopata tende a funcionar de uma forma diferente, com uma ativação distinta do córtex pré-frontal, que é importante para o controle dos impulsos, e também do sistema límbico, que são estruturas mais profundas do cérebro, responsáveis pelo controle das emoções”, aponta Rachman.

Segundo Castellana, Hare define dois tipos de psicopata: o primeiro é mais inato e o segundo, mais um produto do meio. Essa subdivisão foi tema da dissertação de mestrado do especialista. Castellana analisou uma coorte de jovens infratores da Fundação Casa que não tinham pontuações consistentes para uma classificação como psicopatas, e usou a escala de Hare para avaliar se eles apresentavam traços psicopáticos diferentes em comparação com não infratores.

A resposta, conforme publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, foi sim. Mas o mais interessante: as pontuações foram mais influenciadas por aspectos ambientais do que por traços herdados.

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Evolução

À primeira vista, a psicopatia parece algo sem vantagem alguma. Pelo contrário, seria uma disfunção. No entanto, há uma linha de pesquisadores, com dados emergentes, apontando que ela pode ser vista como uma estratégia adaptativa, que “depende de engano e manipulação para obter benefícios reprodutivos de curto prazo”, conforme a revisão publicada na Evolutionary Human Sciences.

Biólogo evolucionista e pesquisador da University of Cambridge, Jonathan Goodman acredita que os psicopatas podem nos ajudar a entender mais sobre nossa espécie — e estuda isso. “Não pensar neles como ‘os outros’, mas como uma versão extrema de nós mesmos, pode ser uma visão muito mais plausível e eficaz para entender a natureza humana”, defende em entrevista ao Estadão.

“Hoje, há muito foco em como os seres humanos são fundamentalmente cooperativos. Nós trabalhamos juntos, isso é verdade, mas muito da literatura tende a ignorar esse lado mais sombrio da natureza humana, que existe”, diz Goodman.

“Todos temos um pouco dessa escuridão dentro de nós, e um psicopata é alguém que tem isso em alto grau e quase não consegue desligar. Mas todo mundo tem essas habilidades maquiavélicas e provavelmente é capaz de aplicá-las de maneira diferente, em diferentes circunstâncias.”

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