A tragédia do povo Yanomami, em que centenas de indígenas foram resgatados por equipes do Ministério da Saúde em condições críticas de saúde, pode ser enquadrada como genocídio, segundo juristas ouvidos pelo Estadão. Nesta quarta-feira, 25, a Polícia Federal abriu investigação sobre o caso. Os juristas defendem que a investigação apure se houve ação direta ou omissão dos agentes públicos para privar os indígenas de assistência e atendimento ao ponto de levá-los à morte. Os potenciais responsáveis – pessoas físicas que podem ser garimpeiros, ex-ministros e até o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) – poderiam ser processados pela Justiça ou por um tribunal penal internacional.
O jurista Gustavo Sampaio, professor de Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense (UFF), lembrou que uma lei federal do governo Juscelino Kubitscheck, na década de 1950, tipificou claramente o crime de genocídio. “Esse crime não está dentro do Código Penal brasileiro, mas na lei federal 2.889 de 1956 que estabelece como a prática caracterizada com o intuito de destruir no todo ou em parte um grupo nacional étnico, racial ou religioso, como parece ser o caso dos Yanomami”, explicou.
Nas hipóteses do artigo 1º da lei, estão os seguintes atos: matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física e mental; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo ou efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. “Aqui (no caso dos Yanomamis) se fala em genocídio porque existe o dolo direto de segundo grau, que é quando os meios empregados levam ao resultado desejado, ou seja, ao extermínio total ou parcial daquele grupo.”
Conforme Sampaio, quando não agiram contra a ocupação do território Yanomami pelos garimpeiros ilegais, agentes do governo anterior deram causa à mortandade de indígenas. “Ao despejarem mercúrio no leito dos rios, comprometendo a fauna e a flora, gerando enfermidades em expansão, como o câncer, quando esses agentes diminuem a capacidade de alimentação, bloqueiam o fornecimento de remédios para esses povos, ainda que o objetivo preliminar seja a satisfação de um interesse econômico, a despeito da catástrofe ambiental e humana que se cria, tendo a consciência de que essas práticas levarão ao exterminio desse povo ou à sua redução, essa ação caracteriza o crime de genocídio”, explicou.
O jurista lembrou que, durante a pandemia de covid-19, quando se dizia que Bolsonaro praticava crime de genocídio ao atrasar a compra de vacinas, por exemplo, ele discordava. “Poderia haver ali outros crimes, inclusive homicídio com dolo eventual, mas não genocídio. Aqui, os agentes públicos, do presidente da República ao agente de uma superintendência responsável pela preservação daqueles povos, aqueles que agiram no sentido de reduzir o sistema de proteção, de abastecimento alimentar, que levaram àquela tragédia humanitária, esses agentes estarão incursos no crime de genocídio”, disse.
Doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), o jurista Matheus Falivene também entende que o enquadramento do caso dos Yanomami como genocídio é possível. “Essa situação de abandono e de fome também pode configuar o genocídio, mas tem de comprovar que houve dolo, não a mera negligência. A polícia terá de comprovar a intenção de levar ao resultado que vimos, e também de quem é a culpa, se é uma ação isolada dos garimpeiros ou se houve ação sistemática de agentes do governo, inclusive do ex-presidente da República.”
Se o ex-presidente e outras autoridades sabiam que havia aquela situação em Roraima e nada fizeram, pode configurar o crime de genocídio por omissão, segundo ele. “É preciso que seja investigado, pois é uma questão relevante. É aquilo que chamamos de crime de gabinete. A ideia de genocídio surgiu após a Segunda Guerra como forma de combater o nazismo. O Hitler nunca esteve em um campo de concentração matando diretamente os judeus, mas foi o grande responsável. Aqui também se deve investigar se alguma autoridade determinou isso como política de estado.”
Ainda segundo Falivene, o genocídio só admite o dolo direto, que seria a intenção da pessoa de cometer o crime, de destruir o grupo étnico. “Se for só a negligência, o descaso com a assistência, não tem o crime tipificado como genocídio. Existe a dificuldade de se provar na prática essa intenção, mas não é impossível. A atuação em favor do garimpeiro, só ela, não constitui genocídio. Se comprovar que houve também suspensão de ajuda, de alimentação, de meios de subsistência, pode caracterizar o crime”, afirma.
Para Sampaio, era fato notório que os povos Yanomami incomodavam a atividade criminosa dos garimpeiros ilegais e dos políticos com interesse na expansão dessa atividade. “Já no caso dos agentes públicos, cada conduta deve ser analisada caso a caso. Se o Estado diminui o fornecimento alimentar, a assistência médica, a proteção, contribui para o genocídio. Me parece que nos últimos quatro anos, que coincidem com esse governo passado, prevaleceu essa campanha de expansão das fronteiras brancas, do minério, da atividade econômica em menoscabo à preservação da cultura indígena”, disse.
Ele lembrou uma reunião ministerial em que o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (PL) falou sobre “aproveitar a oportunidade para passar a boiada”, mostrando que o governo não estava preocupado nem com o ambiente, nem com os índios, mas com a expansão da fronteira branca. “Como opinião minha, entendo que a tragédia humanitária geradora de responsabilidade penal e possivelmente genocídio, se deu nos últimos quatro anos e isso deve ser severamente investigado. Crianças raquíticas, esqueléticas, morrendo, o que não aconteceu ao longo de 80 mil anos, veio agora com a expansão das doenças, a redução de apoio médico hospitalar, tudo isso.”
Para o jurista Acacio Miranda da Silva Filho, doutor em Direito Constitucional e mestre em Direito Penal Internacional, se ficar comprovado que houve genocídio, o caso Yanomami pode ser levado a julgamento em um tribunal penal internacional. “O genocídio é previsto em duas legislações, uma brasileira de 1956, que decorre de uma determinação da ONU (Organização das Nações Unidas) por conta da Segunda Guerra, e mais recentemente, em 1998, do Estatuto de Roma, que prevê os crimes que podem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional Permanente”, diz.
Segundo ele, tanto a legislação interna quanto o fato de o Brasil ser signatário do estatuto romano permite que brasileiros que cometam esses crimes sejam julgados por esse tribunal. “O genocídio é você ter como objetivo extirpar determinada raça ou etnia. É o extermínio deliberado das pessoas que estejam nesta condição. Obviamente, é preciso comprovar se eles (agentes públicos) agiram deliberadamente nesse sentido, e aí foi algo intencional, ou se foi uma política pública capenga que não foi capaz de atender essa população. Se foi só falta de capacidade, aí não há crime.”
Para o jurista, o genocídio pode ser praticado também de forma omissiva. “Isso ocorre quando você tem uma obrigação e não cumpre de forma deliberada para que aquele resultado de extirpar uma raça ou um povo seja alcançado. Comprovado isso, temos duas possibilidades: o julgamento pelo Judiciário brasileiro ou pelo tribunal penal internacional. A tendência, dadas as circunstâncias, é que a Justiça brasileira abra mão para que os responsáveis sejam julgados pelo tribunal internacional.”
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Conforme Silva Filho, o tribunal externo tem mais afinidade com a matéria e haveria um julgamento melhor sob o ponto de vista técnico. Também seria um julgamento destituído de paixões ideológicas, segundo ele. “Infelizmente vivemos no Brasil essa divisão ideológica quase sanguinária e isso acaba afetando quem não deveria ser afetado, como os tribunais de primeiro piso e de segunda instância. No julgamento internacional, esse contexto estaria afastado”, diz.
Já o jurista Sampaio entende que a jurisdição do tribunal penal internacional só se estabelece quando o Estado de origem do crime não age. “Espero que o Brasil investigue, acuse e condene os responsáveis para que não fiquemos sujeitos a uma ação internacional. É um compromisso assumido pelos Estados que são parte do Tratado de Roma, de julgar e condenar seus criminosos. Se não formos capazes disso, daremos à comunidade internacional um recibo de incompetência e leniência que vai enxovalhar ainda mais nossa imagem no exterior”, afirmou.
Em canais nas redes sociais, Bolsonaro disse que o alerta sobre o caso Yanomami é “mais uma farsa da esquerda” e afirmou que a saúde indígena foi uma das prioridade do seu governo, destacando a atuação durante a pandemia. O Estadão tentou contato, mas não obteve retorno do ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga sobre o caso.
Ataque em 1993 foi julgado como genocídio
O primeiro caso de genocídio julgado no Brasil aconteceu justamente na Terra Indígena Yanomami, em 1993, quando 12 indígenas foram assassinados por garimpeiros. Na manhã do dia 23 de julho, os garimpeiros invadiram a área onde estavam alguns membros da tribo e mataram a tiros e golpes de facão um homem adulto, duas idosas, uma mulher, três adolescentes, quatro crianças e um bebê.
O caso, que ficou conhecido como o Massacre de Haximu, foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e, em 1996, cinco garimpeiros foram condenados pela Justiça Federal de Roraima pelo crime de genocídio – tentativa de extermínio da etnia. A sentença chegou a ser modificada para crimes de homicídio pelo Tribunal Regional Federal (TRF), mas, em 2000, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, retomou o entendimento de que houve genocídio.
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