A Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, responsável por planejar e executar as ações sanitárias para as populações aldeadas, foi, durante a gestão de Jair Bolsonaro, comandada por militares sem experiência no tema da saúde de povos originários. Da mesma forma, o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) foi liderado, nos últimos anos, por apadrinhados políticos de aliados de Bolsonaro em Roraima, sem atuação prévia em saúde pública e hoje investigados por corrupção.
Essas figuras eram as responsáveis pela gestão das ações de saúde no território quando começaram, em 2021, os repetidos e intensivos alertas do Poder Judiciário e de entidades indígenas sobre a situação trágica que se observava entre os Yanomami e que foi escancarada nesta semana com a declaração, pelo Ministério da Saúde, de emergência sanitária na região.
Alguns desses ex-gestores do DSEI-Y são investigados pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal por suspeita de fraude e desvio de recursos em uma compra de medicamentos que abasteceria as aldeias Yanomami.
Estão nesse grupo os dois últimos coordenadores do DSEI-Y: Rômulo Pinheiro de Freitas, que ocupou o cargo de julho de 2020 a janeiro de 2022, e Ramsés Almeida, que assumiu o posto na ocasião e ficou até novembro do mesmo ano, quando foi exonerado após operação conjunta entre o MPF e PF que cumpriu 10 mandados de busca e apreensão.
Segundo apurou o Estadão, ambos eram apadrinhados do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e do governador Antonio Denarium (Progressistas), aliados de Bolsonaro no Estado. Os nomes dos coordenadores nem passavam pelo Ministério da Saúde, vinham direto da Casa Civil, comandada no último ano por Ciro Nogueira (Progressistas-PI). Ao ser nomeado, Ramsés Almeida, por exemplo, tinha como única experiência na vida pública, de acordo com a Procuradoria, o cargo de vereador do município de Mucajaí (RR).
Em recomendação expedida no dia 30 de novembro de 2022, o MPF em Roraima chegou a pedir intervenção do Ministério da Saúde na administração do DSEI-Y por causa das “graves irregularidades” encontradas na investigação.
No texto, o procurador Alisson Marugal afirma que “os últimos dois titulares do DSEI Yanomami eram agentes sem nenhuma experiência em saúde pública ou povos indígenas e que o traço comum a ambos é o estreito enlace com atores políticos locais”.
De acordo com o MPF, uma inspeção em julho de 2022 na Central de Abastecimento Farmacêutico (CAF) constatou que “a empresa contratada para fornecer o vermífugo albendazol entregou o fármaco em quantitativo bastante inferior ao que constava em nota fiscal” e que o proprietário dessa empresa já “teria participado de outros esquemas fraudulentos de desvios de recursos destinados ao combate à covid-19 no âmbito da Secretaria Estadual de Saúde de Roraima”.
O MPF verificou ainda que “foram apuradas irregularidades generalizadas no recebimento, cadastramento e distribuição de fármacos contratados, impactando severamente o abastecimento das unidades básicas de saúde, polos bases e Casa de Apoio ao Índio”, inclusive com indícios de que servidores do DSEI estariam registrando dados falsos no Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica - Hórus Indígena, “simulando a dispensação de medicamentos para as aldeias”.
Segundo a Procuradoria, os valores reservados para a compra de medicamentos eram pagos sem a entrega dos remédios e parte desse valor “era posteriormente rateada entre os agentes públicos cooptados”. Suspeita-se que o esquema tenha sido realizado na compra de outros 95 medicamentos. Enquanto isso, era registrado aumento de casos de desnutrição, malária e verminoses entre os Yanomami, com crianças indígenas expelindo “vermes pela boca”.
O MPF diz que Almeida, então coordenador do DSEI-Y, foi notificado sobre as irregularidades em junho de 2022, mas permaneceu “inerte” e só notificou a empresa suspeita de fraude em setembro de 2022, após requisição de informações via inquérito civil.
“Foi necessária nova intervenção do MPF em 08 de novembro de 2022 para que o então Coordenador do DSEI Yanomami adotasse alguma medida para assegurar o integral fornecimento dos medicamentos contratados, finalmente providenciando novo processo de aquisição de medicamentos”, diz o documento do MPF.
Almeida foi exonerado no dia 22 de novembro, em meio à investigação do MPF. Contrariando recomendação do MPF, o Ministério da Saúde não decretou intervenção no DSEI-Y e o órgão segue sem coordenação definitiva até hoje. De acordo com a assessoria de imprensa do MPF, a investigação está em curso e ainda não foi apresentada denúncia à Justiça.
Se as suspeitas forem confirmadas, os ex-coordenadores e a empresa envolvidos poderão responder pelos crimes de fraude do caráter competitivo de processo licitatório, corrupção passiva, corrupção ativa, admissão de vantagem ilegal em favor de contratado pela Administração Pública, inserção de dados falsos em sistema informático e associação criminosa.
Procurado, Freitas afirmou que não teve acesso aos detalhes da investigação e que já prestou os devidos esclarecimentos à Polícia Federal. Ele disse ainda que tomou todas as medidas que estavam ao seu alcance para melhorar a saúde indígena, mas que alguns problemas são estruturais na região há mais de 20 anos. A reportagem não conseguiu contato com Almeida.
A assessoria de imprensa e a chefia de gabinete do senador Mecias de Jesus também foram procurados para que o senador se posicionasse sobre sua relação com os ex-coordenadores do DSEI, mas não retornaram as ligações.
A Secretaria de Comunicação Social do governo de Roraima afirmou que não houve participação do governador Antonio Denarium nem de membros da gestão estadual na indicação de qualquer ocupante de cargos em órgãos de saúde indígena sob responsabilidade do governo federal.
Coronéis comandaram pasta do ministério voltada para saúde indígena
Como coordenadores de DSEI, Pinheiro e Almeida respondiam ao secretário especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, cargo ocupado, na época da operação do MPF e PF, pelo coronel da reserva do Exército Reginaldo Ramos Machado. Ele assumiu o posto em abril de 2022 e permaneceu até o fim do governo Bolsonaro. Não determinou a intervenção, contrariando a recomendação do MPF.
Machado teve como antecessor outro coronel do Exército. Robson Santos da Silva ocupou o posto de fevereiro de 2020 a abril de 2022 e saiu em meio a críticas sobre a atuação do Ministério da Saúde na proteção das populações indígenas contra a covid-19.
Antes, liderou a pasta a indígena Silvia Nobre Waiãpi, tenente do Exército, que deixou o posto após ser criticada pelo movimento indígena. Em nota de repúdio publicada em 2019, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) declarou que Silvia e a gestão do ministério queriam acabar com a Sesai por “inanição”. Na nota, a entidade pedia a exoneração de Silvia e declarava que, além de ela “não entender nada de gestão pública, envergonha os povos indígenas do Brasil ao se colocar a serviço de interesses escusos de quem quer que seja e de um governo declaradamente anti-indígena”.
A reportagem não conseguiu contato com Machado e Silvia. Já o coronel Robson Silva, que comandou a Sesai de fevereiro de 2020 até abril de 2022, afirmou que, durante sua gestão, várias ações foram tomadas para melhorar a saúde da população Yanomami e que as medidas foram reforçadas após a primeira recomendação do MPF, em 2021, que solicitava a reestruturação da saúde indígena na região.
De acordo com o ex-secretário, foram feitas ações de combate à desnutrição e à malária na região, com medidas como a distribuição de 10 mil sachês de suplemento alimentar para crianças menores de cinco anos com déficit nutricional no segundo semestre de 2021.
Sobre as suspeitas de irregularidade e ineficiência na coordenação do DSEI, Silva afirmou que, quando recebeu reclamações de lideranças sociais sobre o coordenador Rômulo Pinheiro de Freitas, fez a troca por outro coordenador. Freitas diz que sua saída da coordenação foi iniciativa própria.
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