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Psiquiatria e sociedade

Opinião | Cadê o lítio?

O carbonato de lítio é um dos medicamentos mais eficazes para o tratamento do transtorno afetivo bipolar

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Foto do author Daniel Martins de Barros

Havia uma pedra no meio do caminho do patriarca da independência do Brasil, Jose Bonifácio. Não por acaso, é verdade, já que antes de enveredar pela política, ele desenvolveu estudos importantes de mineralogia, e em 1800 estava na Suécia justamente em busca de novas pedras. Entre os minerais descobertos por ele estava a petalita, rocha que chamou sua atenção pois, quando lançada ao fogo, emitia bela chama avermelhada. Essa observação levou outro cientista, o jovem sueco Johan August Arfwedson, quase vinte anos depois, a identificar na petalita o lítio, metal cujo nome foi inspirado em litos, que significa pedra em grego.

Certamente a maioria dos leitores já ouviu falar desse metal, onipresente nas baterias de celulares, tablets, smartwatches, notebooks e carros elétricos. As baterias de lítio, de fato, foram revolucionárias para a indústria de tecnologia, pois trata-se de metal muito leve e com grande capacidade de armazenamento de energia. Ou seja, ótimo para equipamentos cada vez menores com demandas crescentes por eletricidade. Como o número de traquitanas eletrônicas só faz crescer e há pressão enorme pela adoção de energia limpa, a demanda por esse metal deve aumentar cada vez mais.

A bateria de lítio Foto: Patrick Gillooly/MIT/ DIVULGACAO

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Sinal de que esse é um negócio promissor é a notícia recente de que Bill Gates irá investir US$ 20 milhões numa startup de mineração do lítio, a Lilac Solutions. Suas maiores reservas estão em lagos de salmoura na Bolívia, Chile e Argentina, sendo preciso bombear milhares de litros de água, deixá-los evaporar e então retirar o lítio, num processo caro e danoso ao ambiente. Gates quer soluções mais sustentáveis e baratas. Além disso, deseja desenvolver tecnologias de reciclagem, pois já se fala em escassez e esgotamento das fontes.

Nem tudo o que é minerado vai para baterias, contudo. Há vários usos para ele, com cerca de 5% da produção mundial indo para a indústria farmacêutica. E aqui, finalmente, entramos no tema médico da coluna. O carbonato de lítio é um dos medicamentos mais eficazes para o tratamento do transtorno afetivo bipolar.

Esse quadro é caracterizado classicamente por fases depressivas – nas quais os pacientes perdem a alegria, a energia e o interesse –, alternadas com fases eufóricas – em que o oposto acontece, havendo excesso de energia, agitação e perda de controle dos próprios atos. Há, claro, uma variação ampla de gravidade entre as pessoas, mas a melhor forma de evitar esses extremos é utilizar medicamentos estabilizadores do humor, dentre os quais o lítio.

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Tal ação foi descoberta por acaso: o psiquiatra australiano John Cade usava-o só para diluir uma solução que injetava em cobaias quando notou que os ratos se acalmavam. Após ingerir ele mesmo a substância, garantindo sua segurança, resolveu testá-la em pacientes com transtorno bipolar na fase de agitação, atestando a eficácia. Assim, embora seja dos mais antigos, até hoje está entre os mais eficazes estabilizadores do humor. Toda essa história não explica, contudo, a grave situação que estamos atravessando hoje no Brasil. 

Como têm notado todos os psiquiatras do País, os estoques de tal medicamento acabaram. A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) publicou nota técnica de esclarecimento, além de notificar o ministro da saúde e o Conselho Federal de Medicina sobre a magnitude do problema. Dados da literatura médica mostram que a interrupção repentina desse tratamento leva a recaída de 80% a 90% dos pacientes, e 70% deles em três a quatro meses.

Mas se não é a disputa por mercado com as bateria, o que está por trás de mais esse desastre iminente no País? Não se sabe. A ABP pediu oficialmente informações à Anvisa para esclarecer a situação.

Aguardo uma resposta, porque não sei se a culpa é da indústria – que quer produtos mais lucrativos –, se é do governo – que não monitorou a situação – ou do mundo – que está mais interessado em baterias. Só sei que a culpa não é do paciente, que no fim é quem acabará pagando a conta. Precisamos brigar por eles para que isso não aconteça.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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